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2. VALOR E CONCEITOS DE SOLIDARIEDADE, AMIZADE, DIREITO E JUSTIÇA

2.3. TEORIA CLÁSSICA DA JUSTIÇA

2.3.2. Marco Túlio Cícero

2.3.2.1. Justiça e Amizade para Cícero.

As idéias de Aristóteles sobre a ética, a justiça e a amizade marcam, profundamente, a filosofia helenista. Elas reverberam no ceticismo, no epicurismo e, especialmente, nos estoicismos grego e romano. Em muitos pontos, a filosofia de Marco Antônio Cícero é herdeira desta ética aristotélica. No livro “Dos

deveres”, Cícero retoma a articulação estabelecida por Aristóteles entre a justiça

e a amizade. Como para Aristóteles, a justiça ciceroniana pauta as relações de amizade. Para haver justiça nas relações de amizade, é preciso aprender a honrar a palavra e a respeitar os acordos. 68

Pelo menos num ponto, Cícero se distancia das análises de Aristóteles. Para Cícero, há uma verdadeira amizade, 69 justamente aquela que Aristóteles considera a mais rara e perfeita, possível, apenas, entre homens virtuosos e que só querem o bem do amigo. Portanto, a amizade pelo prazer da companhia e,

67 ARISTÓTELES, op. cit., 1170a. 68 CÍCERO, Dos deveres, I, VII, 23.

69 Neste ponto, Cícero aproxima-se de Platão, que já defendia a tese de uma amizade verdadeira (alethés

especialmente, a amizade por interesse não devem ser vistas como formas puras de amizade, porque contaminadas por interesses outros.

Cícero preocupa-se em definir a justiça ao lado da injustiça, e as condições para a amizade ao lado das condições para a inimizade. É preciso conhecer bem o amigo e suas verdadeiras intenções para poder julgar sua amizade. Mais ainda, é preciso saber-se o dono de determinadas virtudes para poder estabelecer um laço de amizade verdadeiro: “Quem contempla um amigo verdadeiro contempla como que uma imagem de si mesmo.”70

A amizade funciona como espelho e critério para o próprio exercício da justiça e da virtude. Antes mesmo de saber escolher os amigos, é preciso fazer- se merecedor da amizade verdadeira:

Muitos homens, porém, contra a razão, para não dizer sem vergonha, erram ao querer ter um amigo tal qual eles mesmos não conseguem ser, esperando dele serviços que eles mesmos não lhes prestam. Ora, antes de tudo convém ser homem de bem para depois procurar um semelhante. Entre pessoas assim é que a estabilidade na amizade, da qual vimos falando, se pode consolidar, desde que elas, unidas pela benevolência, primeiro dominem as paixões que escravizam os demais, depois amem a equidade e a justiça, assumam suas obrigações recíprocas, só peçam umas às outras serviços conformes à moral e ao direito e, além da estima e do amor, se proporcionem respeito mútuo. 71

A amizade verdadeira não coincide com a idéia de reciprocidade dos pitagóricos. Não é preciso dar exatamente o que se recebeu para provar a amizade verdadeira. Exige-se, muito mais, a constância e a generosidade do que o cálculo entre o dar e o receber. Este desprendimento material é justamente o que baliza a amizade verdadeira:

A meu ver, há bem mais largueza e generosidade na amizade verdadeira, que não cuida em minúcia se perdeu mais do que ganhou. Pois não se deve recear perder o que ofertou, semear sem colher ou exceder-se em sua diligência. 72

Essas idéias de Aristóteles e de Cícero sobre a justiça e a amizade marcam profundamente os filósofos cristãos. Por um lado, o cristianismo sustenta, como faz Aristóteles, a possibilidade de um laço entre os homens que

70 CÍCERO, Lélio – da amizade, VII, 23. 71 CÍCERO, Lélio – da amizade, XXII, 82. 72 Ibidem, 58.

seja o reflexo de suas virtudes e o motivo de suas felicidades. Por outro lado, como faz Cícero, o cristianismo elege a generosidade como elemento fundamental da forma de amor que todo homem deve ter pelo outro: a caridade.

2.3.2.2. A República, a Lei e o Direito em Cícero

Marco Túlio Cícero (106-13 a.C.), dentro do quadro do estoicismo, ofereceu também uma teoria de República, em que o Estado se encontra definido como uma união natural.

O direito natural é a razão divina a governar o mundo, ao modo do contexto estóico. Entre outras obras, escreveu: Da República (De republica, libri VI, cerca dos anos de 54 a 51 a.C.) e Sobre as leis (De legibus, libri III, c. do ano 52 a.C.).

Defendeu a existência de uma lei natural, interpretada como a razão divina a governar o mundo, este de acordo com a concepção estóica, isto é, de um monismo constituído de um logos a reger a matéria, como um todo monístico.

Sobre a lei natural:

Existe uma verdadeira lei, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna; sua voz ensina e preserva o bem; suas proibições afastam o mal. Ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem anulada, nem alterada em parte. Nem o povo, nem o senado podem dispensar-nos de seu cumprimento; não há que procurar para ela outro comentador nem intérprete, não é uma a lei em Roma, e outra em Atenas, uma agora, e outra depois, senão uma lei única, eterna e imutável, que obriga entre todas os povos e em todas os tempos; um só será sempre o seu imperador e mestre, Deus, seu inventor, sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-lo sem renegar-se a si mesmo, sem despojar-se de seu caráter humano e sem deixar de atrair sobre si as penas máximas, ainda que tenha conseguido evitar os demais suplícios.73

Cícero defendia a igualdade da natureza no sentido mais geral, da capacidade, efetivamente. Isto deixou claro neste outro texto:

De todo o material das discussões dos filósofos, sem dúvida não há nada mais valioso do que a plena percepção de que nascemos para a Justiça, e de que o direito se baseia, não nas opiniões dos homens, mas sim na Natureza. Esse fato será evidente de imediato se tivermos a concepção clara da confraternidade do homem e da união com seus

semelhantes. Porque nenhuma coisa é tão parecida com a outra, tão exatamente sua contraparte, como todos nós somos uns dos outros.74

Diz Clarence Moris75, citando Sabine:

(...) Cícero é o canal através do qual a teoria do direito natural flui dos gregos para os antigos cristãos, e depois para os grandes escolásticos medievais. ‘Dessa maneira’, diz Sabine, ‘a crença em que a justiça, o direito e a igualdade e o procedimento eqüitativo deveria fundamentar a lei tornou-se lugar comum na filosofia política européia.