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A Tênue Fronteira Entre Práticas Mágicas e Religiosas 149 

CAPÍTULO 3 – RELIGIÃO MESSIÂNICA: INTERAÇÃO DE TENDÊNCIAS DIVERSAS 132 

3.3 TENDÊNCIAS DE CRENÇAS POPULARES: A IMM COMO UMA RELIGIÃO DO POVO

3.3.3 A Tênue Fronteira Entre Práticas Mágicas e Religiosas 149 

Enquanto no Ocidente as diferenças entre magia e religião são por vezes transformadas em oposições recíprocas, Weber afirma que países orientais, a exemplo da China e Índia, eram como “jardins encantados” cuja “religiosidade dos estratos intelectuais nunca foi capaz de desalojar a magia; o máximo que conseguia era por uma outra no lugar” (PIERUCCI, 2003, p.173).

A despeito das dificuldades da completa aplicação de certas teorias sociológicas e antropológicas ao estudo das religiões orientais, considero a relação entre magia e

religiosidade japonesa partindo, na medida do possível, da contextualização histórica com ênfase em aspectos lingüísticos, sobretudo, no caso do kotodama. Em se tratando de NRJ, o diálogo com Shimazono e Nakamaki permitiu distinções entre religiosidade mágica e ética cotidiana. Ainda que não sejam marcadas pela oposição ferrenha entre magia e religião, as implicações sobre ética, salvação e praxis das NRJ merecem maior detalhamento em estudos futuros.

Entretanto, a meu ver, é a perspectiva antropológica de Mary Douglas (1975) – que não discute a diferenciação entre religião e magia – a que mais contribui para a compreensão das NRJ. Vejamos. De acordo com ela, mais do que o conteúdo do ritual, importa sua inserção ou função social, especificamente na vida da pessoa ou do grupo. Isto porque “a religião e a magia expressam uma enorme complexidade ritualística social e individual que inclui fatores econômicos, políticos, culturais, sociais e da personalidade”119. Os rituais tendem a ser “mágicos” tanto mais fortemente marcada pelos sacerdotes é a relação entre as pessoas e os seres espirituais. Se o poder localiza-se junto aos seres sobrenaturais, o ritual tende a ser mais “religioso”. Esta postura que classifica os rituais a partir de tendências mágicas ou religiosas, em certa medida, guarda mais pontos de semelhança com a tipologia criada por Shimazono para classificar as NRJ.

Seguindo a lógica de Douglas, seria plausível considerar o fato de que um mesmo ritual pode se tornar mais “mágico” ou mais “religioso” conforme o contexto, inserção social ou época. Um exemplo disso é o caso do johrei que, nos últimos tempos, tem sido alvo de grande interesse dos africanos. Dentre outros milagres, estes têm vivenciado até mesmo casos de ressurreição, citados pelo reverendíssimo Tetsuo Watanabe – presidente mundial da IMM – em palestra proferida no Solo Sagrado de Guarapiranga por ocasião do Culto às Almas dos Antepassados em 2/11/2006:

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DOUGLAS, 1975. Autora mencionada em apresentação de aula proferida pelo prof. James Farris na UMESP em 9/11/2006.

Assim, com muitas experiências como esta, os membros africanos estão confirmando cada vez mais que Meishu-Sama é o Salvador. Esta convicção é que está dando grande energia para a expansão da difusão. E também, depois que eles passaram a ministrar o Johrei junto com a “Prática do Sonen120”, começaram a acontecer milagres inacreditáveis. Só neste ano, 15 pessoas que foram consideradas mortas, algumas até com atestado de óbito, ressuscitaram graças ao Johrei e à “Prática do Sonen” Os senhores acreditam nisso? Realmente, são experiências impressionantes e é difícil acreditar assim, de imediato. Toda vez que o Rev. Francisco voltava da África, ele me contava muitas experiências de ressurreição. Mas, quando eu ouvia, falava: “Ah é? Então está bom...” mas, no fundo, eu ainda tinha minhas dúvidas... “Será que ele não está exagerando?” – eu pensava. Por isso, quando estive na África, fui confirmar se era verdade ou não (JORNAL MESSIÂNICO, nº359, novembro-dezembro, 2006).

Cura de doenças, solução dos problemas cotidianos e até mesmo ressurreições podem ser vistos como resultados de ações mágicas ou não. Tudo depende. Isto porque

... para quem concebe a magia enquanto uma visão de mundo complexa, (...) não há “problema”que não possa ser abarcado pelo sobrenatural, como não há solução que não se relacione, ao menos em parte, com o sagrado; não há, também, situações em que a medicina, a economia, ou a fisica, constituam cursos de ação excludentes da religião. Segundo esta ótica, não há utilitarismo na conduta mágica pois não se vive a ruptura de planos entre o céu e a terra; não há uma carreira oportunista de idas e vindas à religião mas um recurso explicativo vinculado a uma visão de mundo totalizante segundo a qual todo o mal e todo o bem se iniciam no plano místico (ORO, 2002).

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Grosso modo, a prática do sonen consiste em três passos: 1) reconhecer que muitos dos sentimentos humanos são manifestações dos sofrimentos de seus antepassados; 2) comunicar que encaminhará tais sofrimentos ao Messias Meishu-Sama e 3) rogar ao Messias Meishu-Sama que perdoe, purifique e salve estes antepassados.

Em um material redigido em língua japonesa sobre a história da IMMB, K.Y., ao descrever a imagem da instituição por parte da sociedade no início da década de (19)70, usa a expressão “grupo de magia121”:

Na época, a religião messiânica ainda não era compreendida pela sociedade em geral, sendo apenas conhecida como um grupo de magia. (...) Acolhendo as sugestões de pessoas com conhecimento do assunto, em especial, de brasileiros, optou-se pela instituição de uma entidade jurídica voltada para aspectos sociais e culturais (YAMAMOTO K., 1995, p.88) .

Em japonês, lembro-me de ter ouvido a expressão “aru majinai wo shite ageru” como convite à ministração de johrei. Isto é, associar o johrei a uma prática mágica não seria motivo de surpresa, sobretudo enquanto se é desconhecido. Membros messiânicos brasileiros, de formação cristã/espírita, ao oferecerem johrei a alguém pela primeira vez dão explicações desta ordem: “Vou fazer-lhe uma oração” ou “O johrei é como um passe espírita; uma bênção”.

As considerações sobre o tema da magia fornecem referências uteis à compreensão sobre as transformações do método do johrei desde sua criação por Meishu-Sama.

Magia é menos um sistema de crenças e mais um conjunto de práticas; as chamadas “leis da magia” pressupõem, sobretudo, “o domínio da tecnologia a ser empregada, a escolha acertada dos objetos a manipular e das fórmulas verbais a recitar. Além, é claro, da meticulosa

mise en scène do ritual” (PIERUCCI, 2001, p.63). A “lei da similaridade”, a mais amplamente

usada no campo da magia, descreve exemplos de magia em que ritos se estruturam em cima de comparações feitas expressamente com palavras cujos princípios estruturadores são metafóricos ou analógicos.

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Naturalmente, a ministração do johrei pressupõe domínio de uma técnica que, ao longo do tempo, veio sendo modificada e simplificada. Conforme a reminiscência122 transcrita abaixo, observa-se a aplicação do kotodama em que o poder da palavra era manipulado para fins utilitários e restrito a casos especiais sob permissão do Fundador. Na época, o johrei não existia tal qual hoje é praticado.

O fato a seguir ocorreu na época em que Meishu-Sama desenvolvia a Obra Divina em Omori123. Certo dia o espírito de um lutador de judô faixa preta, terceiro dan encostou num homem chamado Matsuhiko. Nessa ocasião, Meishu-Sama aplicou pela primeira vez o tratamento pelo espírito das palavras. Após unir as mãos como se fosse entoar uma oração, Meishu-Sama disse: “Itamissarê” (“Desapareça, sofrimento”) e imediatamente o espírito deixou o corpo. Nesse momento, Meishu-Sama dirigindo-se a mim, afirmou: Chegou a hora de você começar a atuar pois, em dois ou três dias algo acontecerá.” No dia seguinte, eu estava fazendo os preparativos para o culto mensal quando Matsuhiko e seu irmão mais novo chegaram e começaram a brigar. Quando tentei apartá-los, Matsuhiko segurou meu braço direito com força, empurrou-me longe e eu quebrei o braço. Recebendo Johrei de Meishu-Sama, logo sarei. Ele me orientou: “A partir de hoje, você tem a permissão de utilizar o poder da palavra. Se Matsuhiko vier, diga reibaku, (N.T.: “Domino-te, espírito”), e o espírito negativo se acalmará.” Assim, quando Matsuhiko chegou dizendo agressivamente, “vou quebrar seu outro braço”, repeti reibaku três vezes e seu corpo foi perdendendo as forças e caiu no chão, inerte” (FUNDAÇÃO MOKITI OKADA, 2003, p.108) .

Dentre os relatos de reminiscências sobre o Fundador da IMM, há ainda alguns poucos exemplos aplicáveis à tipologia de “magia por similaridade”. Um deles diz respeito às caligrafias escritas por ele e que tinham o poder de transformar o ambiente em que eram colocadas. Conta-se que certa vez ele caligrafou a expressão “suave brisa da primavera” e

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Depoimento de um servidor intitulado “O poder da palavra reibaku”. In: Reminiscências de Meishu-Sama, SP: Fundação Mokiti Okada, 2003.

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presenteou um responsável de unidade religiosa cujo local era muito frio. Como conseqüência, o local teria se tornado mais ameno e agradável.

“Lei da contigüidade” ou “magia de contato” é a segunda lei apresentada por Pierucci a partir das nomenclaturas criadas por James Frazer em 1890. Muitos são os relatos de historiadores sobre magia em que o toque está presente. O contato físico (direto ou indireto) é fundamental na magia. Na tradição indígena tupinambá crê-se nos poderes de cura e do exorcismo do sopro e da chupada.

A propósito, este é um campo em que, muitas vezes, rituais mágicos se assemelham a rituais religiosos realizados por sacerdotes e a fronteira entre religião e magia novamente torna-se tênue.

Como exemplo de ritual de imposição de mãos, em alguns casos, o johrei é comparado ao passe espírita das religiões mediúnicas brasileiras, aos benzimentos da religiosidade católica popular ou ao reiki. Muitas vezes, a associação com a religião japonesa é até enfraquecida dada às semelhanças “técnicas” entre o johrei e outras práticas religiosas presentes na religiosidade brasileira.

Ainda sobre a lei de contigüidade, na religiosidade popular é comum o hábito de trazer consigo talismãs, amuletos, patuás e outros objetos míticos que aumentam o poder de defesa do usuário quanto mais diretamente em contato com o corpo.

A IMM e a Mahikari guardam semelhanças neste sentido. Os membros messiânicos carregam consigo, pendurado no pescoço, um cordão contendo uma medalha chamada ohikari (tradução literal: luz), que lhes possibilita a ministração do johrei que, literalmente, significa “purificação do espírito”. Aprendem que o ohikari é o elo que os une a Meishu-Sama (tradução literal: senhor da luz).

A seguir, vejamos a religiosidade mágica da Arte Mahikari que guarda semelhança em alguns pontos da IMM.

Os kumitês (canalizadores) do okiyome recebem, após um curso de iniciação que dura três dias, uma medalha denominada omitama cujo símbolo estaria ligado diretamente a Deus através de ondas espirituais. Esta característica relaciona-se à “magia por contato”, isto é, a crença de que um objeto possibilita a ligação com poderes supra-naturais.