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CAPÍTULO 2 – EXPLICITAÇÃO DO INSTRUMENTAL TEÓRICO DA PESQUISA 83 

2.2 ALVO DE ATENÇÃO: CONCEITOS E PRÁTICAS RELIGIOSAS DAS NRJ 85 

2.3.8 Sincretismo Como Processo de Ressignificações 100 

Uma religião que se pretenda universal e fundamente sua argumentação na crença de que o absoluto Deus concentra-se na relatividade de um ser localizável no tempo e no espaço, não pode, honestamente, desconsiderar a análise dos benefícios e limites do sincretismo (SOARES, 2003 p.17).

Vários autores brasileiros se ocuparam do estudo do sincretismo em se tratando, sobretudo, de religiões afro-brasileiras e de catolicismo popular em que tradições de três diferentes continentes – África, América e Europa – se inter-relacionam e criam uma matriz religiosa brasileira singular. Naturalmente, o sincretismo religioso visto no Brasil jamais será igual a qualquer sincretismo de outra parte do mundo. No entanto, processos sincréticos, de bricolagem, hibridismo67 e/ou a/in-culturações infalivelmente ocorrem no encontro de diferentes religiões ou crenças ao longo da história humana. Este é o caso de religiões japonesas, como a IMMB, que se inter-relacionam com a religiosidade brasileira tão, a priori, marcada por outros sincretismos.

No encontro de religiões que atravessam terras e mares, tem-se um processo de transplantação, em geral, caracterizado por atrito entre os missionários da religião estrangeira e a liderança local nativa. À medida que a religião estrangeira, que até então era irrelevante, se torna mais significativa e enraizada na cultura local, o processo passa a ser chamado de indigenização, inculturação, contextualização ou sincretismo. A opção terminológica depende da perspectiva acadêmica ou juízo teológico. Nas ciências sociais, indigenização refere-se ao processo de transformação sofrido por religiões estrangeiras em decorrência do contato com a religiosidade e cultura nativas. No círculo teológico-missionário, a indigenização do Cristianismo é chamada de inculturação ou contextualização do Evangelho.

No caso de religiões transplantadas, certamente os primeiros missionários contribuem para um processo de transformação cultural através do seu esforço de ‘tradução’; contudo, em última estância, a indigenização depende do esforço criativo da cultura local. Por outro lado, não é surpresa que missionários enviados, por vezes, também resistam a certas adaptações tentando preservar a identidade e segurança da tradição em suas formas originais

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do início da transplantação. Nestes casos, tais adaptações seriam tidas pois como “produção religiosa não-autorizada” ou “sincretismos ilegítimos” (MULLINS, 1998, p. 6).

O termo sincretismo é alvo de críticas devido ao seu uso pela teologia com sentido negativo e pejorativo para designar articulações cristãs que não são consideradas suficientemente “puras” ou “ortodoxas”. O termo foi problematizado especialmente pelas ciências da religião e ciências sociais a partir dos anos 1960, quando também se começou a questionar a possibilidade de uma religião ser “pura” ou “não-misturada”.

Historiadores e antropólogos têm discutido sobre a chamada “invenção da tradição” e criticado conceitos como “pureza cultural”, “totalidade” ou “autenticidade”. Na antropologia pós-moderna, uma visão mais otimista a respeito dos processos sincréticos vem surgindo. Esta visão não associa o processo sincrético apenas à religião ou rituais, mas a um “predicado da cultura”, em termos genéricos.

Concordo com Maeyama que define como simplesmente nociva a pesquisa sobre sincretismo que não foca o processo criativo68 do encontro de religiões. Sua expectativa é que as futuras pesquisas sobre o tema sejam norteadas pela idéia central de Lew69 (ゲラャダス・ ファン・デャ・ヤ-ウ) em “Dinâmica da Religião” (宗教 力学) que vê “o sincretismo como a interação ininterrupta entre religiões”. (1992, p. 171)

A proposta de uma análise mais interpretativa do universo simbólico implícito no sincretismo da religião messiânica supera a visão reducionista do fenômeno sincrético como um simples conglomerado de crenças ou religiões. A exemplo da identidade da religião messiânica, originariamente forjada a partir de crenças nativas japonesas e que, a certa altura, passa a utilizar o termo cristão “messias”, o encontro de múltiplas religiões em diferentes

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Schmidt (2006) descreve em seus estudos o dinamismo criativo da hibridação cultural e religiosa no caso dos migrantes caribenhos em Nova York.

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Em japonês, o nome do autor está grafado como ゲラャダス・ファン・デャ・ヤ-ウ. Até o presente, não consegui identificar a grafia em alfabeto romano.

espaços e tempos é por demais complexo para ser reduzido a conceitos fixos e estereotipados. Sem dúvidas, ao longo da integração da IMM no Brasil – um país eminentemente católico –, este processo dinâmico e criativo de integração religiosa e cultural ganha novos contornos até mesmo inimagináveis para a religião messiânica originária no Japão.

Opto por ver o sincretismo70 como um processo de ressignificação de realidades e relações decorrentes do contato intercultural de diferentes grupos humanos em que as relações aprendidas no mundo do outro servem de apoio para a ressignificação do seu próprio mundo. Ampliando a idéia de que ressignificações sincréticas são partes intrínsecas da cultura sendo, pois, parte de um princípio dinâmico de ordenamento e transformação, é possível encarar o sincretismo como um processo perfeitamente natural em favor da integração religiosa e cultural.

Presumo que as peculiaridades do sincretismo original da religião messiânica possam impulsionar novas ressignificações de realidades e relações de diferentes ordens durante o processo de integração no exterior. Contudo, o próprio sincretismo das NRJ pode decorrer da capacidade de ressignificar dos fundadores de NRJ, em suma, ser carregado de maior ou menor subjetividade do Fundador.

A título de referência, vejamos o caso da Seicho-no-Ie (SNI), que já vem sendo estudada a partir de semelhante perspectiva.

Buscando identificar as raízes da SNI brasileira, Diniz aponta a capacidade do fundador Taniguchi de “acompanhar as mudanças sociais e culturais” exigidas à sobrevivência da SNI em seu país de origem. Taniguchi re-elaborou a doutrina da SNI e, após a 2a Guerra, introduziu elementos do Cristianismo mesclando-o com Xintoísmo e Budismo presentes. Objetivava com isso “criar uma super-religião que englobasse todos os

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Baseio-me nas idéias do antropólogo brasileiro Pierre Sanchis, que vê o sincretismo como um “príncípio dinâmico de ordenamento e transformação”; “um processo que cria a si próprio, tanto quanto cria o seu produto, nunca acabado” (1996, p.155)

ensinamentos, interpretados à luz da cultura oriental”. Em sua visita oficial ao país, em 1963, Taniguchi disse em sua mensagem que o Brasil “é o país apropriado para divulgar o

verdadeiro cristianismo” (DINIZ, 2005:4-6) (grifo meu).

Semelhantemente a Taniguchi com sua ‘super-religião’ (1893-1985), Meishu-Sama pretendeu que a Messiânica fosse uma ‘ultra-religião’71 que abarcasse todos os campos da cultura humana. Contudo, teve menos tempo para acompanhar e adaptar-se às mudanças sociais e culturais do Japão do pós-guerra. Cinco anos antes de seu falecimento em 1955, promovera a unificação de duas igrejas propondo uma denominação nova, de caráter mais universal: Sekai Meshiya Kyo (que originou a denominação “messiânica”). Em 15/6/1954, realizou a celebração provisória do “natalício do Messias”72, ocasião em que explicitou sua missão como messias.

Observando os periódicos da época, nota-se que o Fundador buscou conscientizar os membros através de textos explicativos sobre sua ligação com o messias e, de certa forma, fez aproximações com o Cristianismo. Contudo, após sua morte, na IMM, o tema da divindade ou da “messianidade” de Meishu-Sama tende a ser retomado em ocasiões específicas. No início da década de (19) 80, por ocasião das comemorações pelo Centenário de Meishu-Sama, e da fase final de consolidação da Unificação da Igreja (ichigenka), foi publicado no Japão um material de estudos exclusivo para ministros73 que aborda a questão do estado de união

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Sobre ‘ultra-religião’, vide capítulos 4 e 5.

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Em japonês, Meshiya Koutan Kari Shukuden メシヤ降誕仮 典. A tradução oficial é “Cerimônia de Comemoração Provisória da Vinda do Messias” que, particularmente, eu traduzo de forma diferente. Os dois ideogramas que compõem a palavra koutan significam, respectivamente, descer e nascer. Opto por focar no ideograma que significa “nascer” pois penso que a opção entre os termos “nascimento/natalício” ou “vinda” refletirá, em certa medida, aspectos de opção identitária. O uso do termo “vinda” pode levar a associações com a expressão “Segunda Vinda de Cristo”. Já o termo “natalício”, inclusive usado em “Culto de Natalício de Meishu-Sama” celebrado anualmente em 23 de dezembro, em tese, reforçaria o simbólico messiânico ao invés do imaginário cristão brasileiro (conjecturas minhas, a partir dos conceitos de imaginário e simbólico em PAIVA 2006).

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deus-homem em Meishu-Sama. Após 2000, com a Reconciliação das três Igrejas, o Quarto Líder Espiritual (Kyoshu-Sama) vem esclarecendo em suas orientações pontos relativos à idéia de messias com relação ao próprio Meishu-Sama e aos messiânicos.

Além da pesquisa bibliográfica, as entrevistas junto a fiéis messiânicos, sobretudo convertidos mais antigos de ascendência japonesa, permitiram um confronto entre traços “originais” do universo simbólico messiânico e uma possível “ressignificação sincrética nipo-brasileira”74 da IMM decorrente do contato de culturas. A hipótese de uma (ou várias) “ressignificação sincrética nipo-brasileira” começou a ser delineada a partir de reflexões sobre os estudos de Matsuoka (2007) e diálogo com o Rafael Shoji, pesquisador do CERAL – Centro de Estudos de Religiões Alternativas no Brasil.

O termo ressignificação que utilizo na expressão “ressignificação sincrética nipo-brasileira” fundamenta-se na visão de Sanchis (1996, p. 155) sobre a ressemantização de realidades pertinentes à dinâmica do sincretismo. Algumas ressignificações observadas e descritas ao longo desta pesquisa exprimem parte da dinâmica de construção da identidade da religião messiânica, que sofre recomposições no processo de integração no Brasil.