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Relações Entre Identidade Cultural e Sincretismo Japonês 105 

CAPÍTULO 2 – EXPLICITAÇÃO DO INSTRUMENTAL TEÓRICO DA PESQUISA 83 

2.2 ALVO DE ATENÇÃO: CONCEITOS E PRÁTICAS RELIGIOSAS DAS NRJ 85 

2.3.9 Relações Entre Identidade Cultural e Sincretismo Japonês 105 

Cultures are made and remade from old and new elements (MULLINS,1998, p.9).ょ

A história japonesa é marcada pela mescla de religiões, crenças nativas e religiões transplantadas de outras culturas. A tradição budista foi introduzida no século VI e o cristianismo católico romano transplantado, no século XVI. A partir da segunda metade do

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É interessante assinalar que as ressignificações no campo do ritual da IMMB se deram, em sua maioria, de forma institucionalizada. Quando não, apresentam-se de forma isolada, por ação individual ou regional.

século XIX, posteriormente à abertura do Japão ao Ocidente, diversas denominações protestantes iniciaram esforços missionários. Devido à literatura que defende uma suposta “homogeneidade japonesa”, tende-se a esquecer que a população japonesa pré-moderna era dividida em vários aspectos e que somente após a Restauração Meiji desenvolveu-se um senso de solidariedade política e unidade nacional baseado na crença da divindade do Imperador, entre outros pontos.

As instuições religiosas do Japão pré-moderno também contribuíram para esta visão de nação dividida. A identidade comunitária dos diversos povoados era reforçada por uma unidade suscitada pelos cultos xintoístas locais. O Xintoísmo servia com um “legitimador de submundos” que fora incapaz de integrar o Japão num “dossel sagrado”, como diria Berger. Mullins qualifica a religiosidade japonesa pré-moderna como um “sistema sincrético com superposições de obrigações”. A participação popular em festivais e rituais de templos xintoístas e budistas era basicamente motivada por um senso de responsabilidade e obrigação presente na comunidade e não especificamento por um credo ou conjunto de crenças definidas (MULLINS, 1998, p.7-8).

Não é novidade a idéia de que as religiões mudam. Contudo, como uma instituição intrinsecamente dedicada ao fixo75 na vida pode ser um exemplo de constante mudança? Uma possível solução a esse paradoxo é considerar-se que a religião “não é o divino” mas “uma concepção sobre o divino”. Neste sentido, as imagens que revelam ou orientam tal concepção dependem do lugar, do tempo e da posição76 da cultura. Portanto, o que acontece a um povo também acontece à sua fé e aos símbolos que a formam e sustentam (GEERTZ, 2004, p. 67).

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Questiono a idéia de fixo ligado ao divino, sobretudo, no caso da dinâmica das religiosidades orientais.

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À idéia do autor de relatividade do tempo e espaço, acrescento a noção de ‘posição’ com base na noção messiânica de

Tomemos o exemplo concreto do ocorrido com a sociedade japonesa na virada do século XIX – ocasião da modernização do país a partir da Restauração Meiji. Um povo isolado do restante do mundo por mais de três séculos que, a partir de um dado momento, é forçado a se adaptar ao “novo mundo” e encontrar povos e culturas distintas. A difusão da cultura ocidental no Japão não se restringiu à política, comércio e ciências em geral. A religião77, ou melhor, a religiosidade japonesa, também sofreu profundas transformações. Surgiram as primeiras NRJ, dentre as quais, algumas incorporaram padrões de cultura ocidentais até mesmo inusitados, geralmente tidos como uma espécie de sincretismo doutrinário ou reinterpretações a partir da visão de seus fundadores78.

Um exemplo significativo é o caso da Seicho-no-Ie, cujo emblema expressaria a junção da essência do Xintoísmo, Budismo e Cristianismo. Uma análise apressada, ainda mais tendo como foco o êxito da Seicho-no Ie no Brasil, poderia levar a interpretações de que seu sincretismo é uma simples estratégia de expansão com vistas ao público ocidental, por exemplo. Nesta linha de pensamento, o Fundador Masaharu Taniguchi poderia até mesmo ter lançado mão de aspectos doutrinários originais da religião cristã a fim de ser melhor compreendido fora do Japão.

Contudo, não se pode esquecer que, em seu período de fecundação e nascimento, as NRJ constituíram uma verdadeira tentativa de adequação ao sistema simbólico religioso da época em que democracia e nação moderna eram temas indispensáveis à lógica do poder da modernidade (SHIMAZONO, 1994, p. 104). A partir desta realidade, acredito que a

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“Até o começo da era moderna, a língua japonesa não possuía nenhum termo genérico significando ‘religião’. A palavra moderna para religião, shukyo, é uma invenção do século XIX, etmologicamente derivada das palavras seita (shu) e ensinamentos (kyo)”. (NORBECK apud PEREIRA,1992, p.23)

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Em seus estudos sobre a Seicho-no Ie, Albuquerque transcreve trechos de entrevistas com adeptos brasileiros que revelam “sucessivas e profundas experiências religiosas reinterpretadas à luz da doutrina” que, para eles, significa “um aprofundamento de suas crenças anteriores e não uma nova religião”. (1999, p.54)

incorporação de elementos doutrinários do Cristianismo no caso da Seicho-no-Ie tem profunda ligação com a identidade cultural do Japão do início do século XX.

A respeito do sincretismo nas NRJ transplantadas para o Brasil, Maeyama aponta o caso da Seicho-no-Ie exemplificando com o próprio símbolo da organização que reúne o sol, símbolo do Xintoísmo; o manji 卍 , que representa o Budismo, e a estrela ao centro simbolizando o Cristianismo. Também cita a ordem dos cânticos sagrados: salmos cristãos, salmos budistas, salmos do Kojiki e, por último, os salmos pela união das religiões (bankyo

kiitsu). Longe de pretender reduzir o fenômemo a um simples “conglomerado de religiões”,

Maeyama acrescenta que Seicho-no-Ie é uma organização religiosa sincrética, composta por ex-afiliados do Budismo e católicos com ou sem ascendência japonesa que se integraram em uma comunidade multifuncional. Para ele, mais do que analisar a esta NRJ dentro dos padrões de sincretismo, deve-se investigar como os fiéis, em sua maioria não-descendentes de japoneses de tradição católica, vivenciam e interpretam o simbolismo proposto pela religião ou como eles repensam o atual catolicismo brasileiro. Também cabe averiguar a sua receptividade quanto às interpretações da Seicho-no-Ie sobre a teoria do universo, visão do homem ou do pecado original. E mais, como eles comparam a distinta realidade entre os dois países – de um lado o Japão tido como nação do milagre econômico e do outro sua terra natal – o Brasil, tão marcado pela miséria, dívida externa e inflação (MAEYAMA, 1992, p. 170-171; tradução minha).