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A transfiguração do político

No documento Corpo, contemporaneidade, juventudes e escola (páginas 143-147)

Maffesoli (1997) nos lembra que, ao longo da história humana, sempre existiu uma força imaterial, imaginal que deu sustentação ao político. Entretanto, esse tempo da política passa a ser objeto de desconfiança, por esta não estar mais capacitada, ou desacreditada, para enfrentar os desafios do momento. Conforme o autor, hoje em dia,

de maneira geral, o político não merece consideração, pois “é visto sob suspeita de

corrupção, como um histrião de gesticulação e linguagem estranhas, tendo como sua

preocupação essencial ser visto na mídia” (MAFFESOLI, 2007, p. 09).

Todavia, o autor aponta que a política teria perdido força de atração porque as pessoas não querem mais adiar o gozo, não querem mais esperar o paraíso celeste ou outras formas de sociedades futuras reformadas, revolucionadas ou mudadas. Somente importaria o presente vivido aqui e agora com outros.

Por mais de dois séculos de modernidade, valorizamos a ação dos sistemas políticos que se basearam na administração racional de tudo e de todos. O desinteresse do povo pela política sempre foi visto como expressão de ignorância, desinformação, apatia. No entanto, tais comportamentos não seriam meras passividades frente ao poder político, mas a expressão de um movimento subterrâneo que, em silêncio, por intermédio da indiferença, da ironia e da inércia estaria solapando as bases sobre as quais os sistemas políticos têm se apoiado ao longo da modernidade. Esse movimento

rejunta e induz a uma outra relação com a alteridade com o outro que é o próximo e com a natureza. Essa criança sabe que, para aquém das convicções, dos projetos e objetivos mais ou menos impostos, a vida existe com toda sua riqueza, sem finalidade nem utilidade: simplesmente a vida.

estaria baseado na não-ação, em que o político cede lugar à contemplação, em uma espécie de orientalização do mundo, um tempo social mais descontraído, que deixa as coisas correrem.

Assim, para o autor, o povo se distancia da política porque ela sempre se baseou em um projeto, em uma visão teleológica da história, de sentido único, e, portanto, totalitária, que entra em contradição com a diversidade da vida em sociedade que não se deixa encerrar em uma via reta.

O fim e o sentido devem estar aqui e agora e não constituírem uma utopia exterior, de modo que aprendamos a aceitar o mundo pelo que ele é. Os atuais regimes democráticos estão marcados por uma reação orgânica do corpo social que, não se reconhecendo mais nos seus representantes, busca um novo equilíbrio capaz de traduzi- lo melhor. O homem, não sustentando mais as esperanças, necessita viver o aqui e o agora.

Haveria um desprezo aos regimes, manifestado pelo consentimento discreto à opressão, que desmonta o que sustentaria um regime, a fascinação. Nesse sentido, Maffesoli destaca que nenhum regime resiste muito tempo aos efeitos do distanciamento interior induzido pelo desprezo, podendo explodir em levantes incontroláveis ou exprimir-se através da desafeição em relação à coisa pública.

Para o autor, a política tem negado as paixões e teria se esquecido de que elas desempenham importante papel na luta política. Os governantes, os regimes políticos são obcecados por tudo abstrair e a tudo racionalizar. A coisa pública assume um caráter de exterioridade, afastando-se, com isso, da vida que flui, que não segue necessariamente os cânones da razão.

Maffesoli (1997) aponta a morte da política ou sua transfiguração, que denota novas maneiras de exercer a atividade da polis e não propriamente o seu fim. A ideia de morte nos remete a um sentido do fim de sua existência, o que não é o que o autor deseja apontar. Por isso, talvez, o uso da expressão transfiguração seja mais adequada e faça mais sentido.

Assim, o político é uma instância que determina a vida social, limita-a, constrange-a e permite-lhe existir. Na origem de qualquer coletividade sempre existe uma ideia fundadora sustentada pelo mito, história racional, fato legendário, ou outra, que serve de substrato à dominação legítima do estado.

A transfiguração se daria porque os indivíduos, na contemporaneidade, estariam propensos a se integrar em um todo orgânico, sem objetivos pré-estabelecidos, sem projetos políticos, sem a pretensão de adiar o gozo, mas preocupados somente em viver e dar ênfase ao presente, ao aqui e agora, compartilhando sentimentos, pequenos prazeres da vida na companhia dos outros. O que permite compreender essa transfiguração seria o presenteísmo13. Para Maffesoli (2004), o comando do social começa a ser tomado por baixo, pelas microtribos, a partir da emoção, do afeto e não da razão.

A questão do político na atualidade, para Maffesoli (1997), é que o pacto que lhe deu sustentação parece ter se rompido ao longo da modernidade. Nesse período, o político se baseou na razão monovalente, em uma visão linear e progressista e, portanto, teleológica da história que não comporta a pluralidade da vida social, e que, por muitas vezes, tem desembocado em várias formas de totalitarismos. Antes do imaginário totalitário, que se transcreveu politicamente no Estado-nação, prevaleceu o equilíbrio conflitual, em uma realidade de múltiplas facetas.

Para qualquer denominação adotada para a detenção do poder, este se cristaliza na energia interna da comunidade, mobiliza a força imaginal que a constitui e assegura o bom equilíbrio entre esta e o meio circundante, tanto social quanto natural. Nos regimes existiria uma servidão voluntária, uma curiosa pulsão que força a submissão a outro, a aceitar chefes, um efeito de estrutura ou lei natural inexorável que incita a dobrar a espinha e a aceitar de alguém ou alguns a lei, seja verdadeiro ou o falso, o bem ou o mal, o desejável ou o indesejável. No absolutismo, ela ocorre com a coerção que se torna a marca do político.

Assim, o poder se legitima contratualmente, por consentimento, ou mesmo impondo a coerção. Esta, entretanto, é consentida e, para funcionar, deve-se aceitar a

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Maffesoli (1997) utiliza o termo presenteísmo como uma expressão do paradigma estético, que tem a função de nos ligar uns aos outros fazendo com que tenhamos confiança no mundo que partilhamos. Também pelo presenteísmo, o autor (1997) explica que ele permite compreender a transfiguração do político. O êxtase doméstico, satisfeito em possuir com outros um momento e um lugar bem delimitados vem sucedendo a ação prometéica, ao êxtase revolucionário ou político. Ocorreria uma suspensão do tempo. O instante e o momento vivido representam a alternativa à filosofia da história ou do progresso que predominou na modernidade.

evidência de sua autoridade moral e, de certa maneira, ter fé nela, repousando sobre uma forma de aceitação.

Segundo o autor, a implosão do político está ligada à saturação da lógica de identidade, à qual chama de patriarcado e que prevaleceu na modernidade. O poder construiu-se e reforçou-se na gestão e na regulação de organizações, nas associações organizadas racionalmente como as de identidades sexuais, profissionais, classes, categorias sócio-profissionais, ideológicas, religiosas, filosóficas ou políticas. Entretanto, uma vez que o sujeito encontra-se fragilizado, o contrato estabelecido entre ele e outros sujeitos históricos também está.

Na atualidade, esse sistema está cedendo lugar a uma outra lógica, chamada de identificação, que ele denomina também de matriarcado. Este conota um estado civilizacional mais frouxo, diverso, estilhaçado, mais próximo da vida em suas diversas potencialidades. Na nova ordem que vem surgindo, aparece a fusão das emoções comuns, dos fanatismos religiosos, dos movimentos de massa, do desabamento dos sistemas ideológicos, em sucessão à distinção das representações separadas que não se baseiam em convicções racionais, mas em representações sobre a fascinação e a

contaminação resultantes da pressão irresistível de um “nós fusional” cujo cimento é

feito de ideias comuns que contaminam, um a um, multidões cada vez maiores.

Como uma característica fundante da nova ordem, Maffesoli vê surgindo uma tendência para a vida em comunidade, em grupos. Os indivíduos estariam propensos a se integrar em um todo orgânico, em um nós fusional, sem objetivos preestabelecidos, sem preocupação com o futuro, sem projetos políticos, sem a pretensão de adiar o gozo, preocupados somente em viver o presente, o aqui e agora, compartilhando sentimentos, pequenos prazeres da vida na companhia de outros.

Nessa saturação do político, apresenta-se essa nova socialidade que não tem objetivos precisos, que tem sentido no momento presente partilhado aqui e agora, que não é dramático como a política que busca soluções, mas que funciona como um sentimento trágico, pouco importando o objetivo a atingir. Vive-se uma estética, entendida como o experimentar emoções, sentimentos, paixões comuns, nos mais diversos domínios da vida social. Assim, a transfiguração do político denota novas maneiras de exercer a atividade da polis e não propriamente o seu fim.

Em uma entrevista concedida no Brasil na Unisinos, em 2007, Maffesoli fala sobre a transfiguração do político, sobre o nascimento de ícones hipermodernos e a tentativa de refletir sobre as transfigurações da ética e do imaginário, em tempo de pós- democracia. Nessa entrevista, o autor faz uma discussão sobre o político e suas configurações no imaginário atual, apontando para uma teatralização do político, justificando que ocorre um retorno na história e nas vivências humanas. Para ilustrar, cita Calígula, Heliogábalo, na festa da deusa Razão durante a Revolução Francesa, nas cerimônias inúteis e de ritos profanos que têm circundado ou circundam a nossa vida.

Segundo Maffesoli, nessa entrevista, o bom velho Marx disse que toda coisa que se apresenta na nobre forma da tragédia é destinada, antes ou depois, a representar-se, mas transfigurada em farsa ou em vulgar comédia. A transfiguração do político na atualidade estaria, assim, regida por um deslocamento fundamental de nosso eixo político: a passagem da convicção à sedução. Essa tendência à sedução corresponderia à saturação de todos os canais emotivos, fato que nos leva a nos perguntarmos, para o futuro, quais serão as novas formas do viver, do sentir e do estar juntos.

Para Maffesoli, a crítica política ainda não teria entendido essa passagem da convicção à sedução. O fato é que surgem novos estilos de vida comunitária, em que o arcaico e as tecnologias convivem, em que existem resíduos de racionalismo, de atitudes irracionais em que, em uma análise superficial, poderíamos apontar uma confusão geral. Maffesoli destaca, na referida entrevista, que, nessa perspectiva, um pouco literária, um pouco anarquizante, o estar juntos poderia nos aproximar de uma federação de microentidades autônomas, ligadas transversalmente por novos meios de comunicação interativa. Nessa sinergia formar-se-iam as tribos pós-modernas.

No documento Corpo, contemporaneidade, juventudes e escola (páginas 143-147)