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O corpo e a dualidade cartesiana

O pensamento acima que durou por anos e vem a ser questionado por Descartes que faz emergir o sujeito ao afirmar em sua frase mais conhecida: “Cogito, ergo sum”,

ou “Penso, logo existo”. Essa frase tem sido utilizada em sua formulação lógica e na

teoria do conhecimento. Esse pensamento inaugura o racionalismo da modernidade, sendo também considerado a base do pensamento científico moderno.

Descartes afirmava que, para se conhecer a verdade, seria necessário que puséssemos todos os nossos pensamentos em dúvida e que somente deveríamos acreditar em algo se seu fundamento tivesse veracidade. Em seu livro, o “Discurso do

Método”, consagrado como um manifesto da razão, o autor afirma que a única certeza

Talvez seja Descartes o grande responsável pelo pensamento dicotômico gerador

da “dualidade corpo e mente”. Como o corpo seria um mecanismo regido por leis

imutáveis, cada efeito seria produto de uma causa e a mente teria uma atividade racional e concebida como substância independente.

Soares (2012, p. 07) lembra que a grande questão, para Descartes, em relação ao

homem é pensar o “estatuto de seu próprio corpo, de como o que não pode ter lugar, a consciência, encontra um lugar e se encarna”. Tal questão se estende na busca de uma

compreensão, de uma união substancial de corpo e mente tratado como Leib na fenomenologia, do próprio corpo abordado por Merleau-Ponty, do Dasein de Heiddeger.

Na tradição pitagórica, a sabedoria e a ciência estariam ao alcance somente de uns poucos iniciados. Descartes amplia essa visão afirmando que o conhecimento estaria ao alcance dos que teriam bom-senso. No “Discurso do Método” sinaliza que

“bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída, porquanto cada um acredita estar

tão bem provido dele que, mesmo aqueles que são os mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa, não costumam desejar tê-lo mais do que já têm” (DESCARTES, 2009, p.13). Para o autor, todos os homens têm a razão ou bom senso de forma igual para julgar e distinguir o verdadeiro do falso, sendo a diversidade de opiniões o que nos leva a trilhar os pensamentos por caminhos diferentes. Podemos dizer que se trataria do método que cada um poderia adotar para conduzir sua razão. Para ele, na filosofia, encontram-se diferentes opiniões sobre a mesma matéria e somente uma seria

verdadeira. Seriam os fundamentos “firmes” que garantiriam ao indivíduo não ser enganado por falsas promessas, pelas más doutrinas ou por aqueles que “acreditam saber mais do que realmente sabem” (idem, p.18).

Descartes encontra mais verdade no raciocínio do homem comum, que seria punido na vida por um erro, que nos letrados, que não pensam nas consequências do que falam. Nesses homens comuns encontrava a mesma diversidade encontrada nos filósofos, o que o levou ao estudo de si mesmo, através da reformulação de seus pensamentos, da construção do seu modelo, ainda que recomendando que ninguém o imitasse. A sua busca era pela verdade, estaria na razão, não necessariamente de um povo, mas poderia estar com um único homem. Assim concebe seu método baseado nos princípios de:

- nunca aceitar alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal...

- dividir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis de conhecer...

- conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como que por degraus, até o conhecimento dos mais compostos... (DESCARTES, 2009, p.27).

Desse modo, Descartes acreditava usar em tudo a sua razão, ainda que não de modo perfeito. Deus havia concedido ao homem a razão para que ele encontrasse a

verdade. Verdade para ele inquestionável, contida na premissa “Penso, logo existo”. Também elabora a questão de que poderia “pensar’ que não possuía corpo, nem mundo,

nem qualquer lugar que pudesse existir, tendo mais certeza de sua existência, a não ser que parasse de pensar. Assim, concebe-se a ideia de que, para existir, não é necessário nenhum lugar, mas somente o pensar, concluindo que sua alma é totalmente indistinta

do corpo, ou que “a natureza inteligente é distinta da corporal” (DESCARTES, 2009,

p.42).

Entretanto, Descartes salienta que, para conhecer a alma, é necessário elevar o espírito para além das coisas sensíveis e que tudo o que em nós existe vem de Deus. Ele propõe a si mesmo pressupor somente os princípios da existência de Deus, da alma e de não aceitar a verdade nas demonstrações dos geômetras.

Ao pensar como Deus faria um corpo, contenta-se em supor que fosse exatamente igual nosso, no aspecto exterior e no interior, com cada órgão tendo sua função sem precisarmos pensar nisso, sendo a alma totalmente distinta do corpo, com a função exclusiva de pensar. Por isso, somos diferentes dos outros animais, que não possuem alma para pensar. Descartes, ao descrever o corpo humano e de outros animais, conclui que o homem não teria condições de produzir algo de tamanha complexidade, o que caberia somente a Deus, que também nos dota da alma. O fato de os animais não conseguirem falar, pensar, articular um discurso para entendimento do outro seriam prova de que não possuem qualquer razão.

Descartes esclarece que a alma não estaria somente alojada no corpo, sendo

“necessário que esteja junta e unida mais estreitamente com ele para ter, além disso, sentimentos e desejos semelhantes aos nossos e assim compor o verdadeiro homem”

(DESCARTES, 2009, p.60). A alma seria imortal.

Para o homem tornar-se mais sábio, dependeria do temperamento e do bom funcionamento dos órgãos do corpo, de modo que, para elevar sua sabedoria, deveria

buscar na medicina as soluções para as doenças, para o envelhecimento a fim de que pudesse viver mais.

Essas observações de Descartes o levaram, no entanto, a buscar compreender o mundo, introduzindo a questão da “causa e efeito” como método ou o método dedutivo, que muito influenciou as ciências durante toda a modernidade. O filósofo observa que,

em primeiro lugar, procurou “encontrar em geral os princípios ou causas primeiras de

tudo o que existe ou pode existir no mundo....Depois disto, examinei quais eram os

primeiros e mais usuais efeitos que podem ser deduzidos dessas causas...”

(DESCARTES: 2009, p.66). O autor considera que pode obter explicações sobre todos

os “objetos” apresentados a seus sentidos e que coisas, que pareciam verdadeiras, depois

de observadas, passaram a parecer falsas e, assim, busca constantemente a verdade.

Para Soares (2012), o pensamento “pedagogista” colocou Descartes como seu

vilão, atribuindo tudo de negativo ao cartesianismo. Entretanto, o autor aponta que a pedagogia seria radicalmente cartesiana, ao acreditar, por exemplo, na interdisciplinaridade, uma vez que Descartes retoma a importância da dimensão filosófica para a formação do indivíduo e condiciona o pensamento do desenvolvimento das ciências e técnicas à filosofia ou à unidade do pensamento humano.

Na atualidade, vem se tentando, nas escolas, instituir um currículo integrado, buscando a interdisciplinaridade. Entretanto, Silva (2011) ressalta que os primeiros a realizar a interação disciplinar foram Descartes junto com Galileu, aproximando a Física com a Matemática, o que colocou em xeque os fundamentos da ciência em sua época. Isso resultou na prerrogativa da razão sobre os dados sensíveis, juntamente com a predominância de dados quantitativos sobre os das essências e das formas que tiveram sua origem na filosofia tradicional.

Retornando a Soares (2012), o autor declara também que Descartes contraria o senso comum e as formas de positivismo, ao inverter o modo de se considerar o mundo e afirmar que, ao se situar na consciência, toda consideração científica requer uma reflexão filosófica anterior. Também podemos considerar que a perspectiva cartesiana sobre a razão humana, mesmo que por opção política filosófica, veio a democratizar, na atualidade, o acesso ao conhecimento pela escola.

Na contemporaneidade, a concepção cartesiana de corpo-mente ainda se encontra presente, embora outras perspectivas também tenham passado a ser consideradas, principalmente as ligadas ao pensamento fenomenológico.