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Nomadismo e errância

No documento Corpo, contemporaneidade, juventudes e escola (páginas 128-132)

Outra noção apontada por Maffesoli (1999, p. 28) é o retorno cíclico de outro arcaísmo, o nomadismo que, cada vez mais presente na atualidade, constitui uma tendência desse tempo. O nômade é o não-ser, o oco, o vazio, o dinâmico, a ausência de estabilidade do ser, a ausência de substancialidade existencial, presentes na pós- modernidade, o que, para o autor, vem se configurando a partir de uma vagabundagem existencial que se desenrola a partir desse oco, da "sede do infinito" e do desejo de outro lugar. O autor descreve o desejo da errância como "sede do infinito". Uma "sede do infinito", que se põe em movimento pelo desejo de evasão. "É uma espécie de pulsão

migratória” (MAFFESOLI, 1999, p.227), que incita o indivíduo a “mudar de lugar, de

hábito, de parceiros, e isso para realizar a diversidade de facetas de sua personalidade" (MAFFESOLI, 1999, p. 51). Essa pulsão aparece aí como resposta a um tédio existencial. A sede de infinito, a busca de si trazem o retorno da tendência nômade do

homem. O autor afirma que “somos andarilhos em busca do Graal” (MAFFESOLI,

1999, p.186). Buscamos outro lugar e esse lugar é metaforizado pela busca do Graal9,

da aventura, do invisível, daquilo que não sabemos ao certo o que é. “Sair de si para a

realização do si, eis-nos vivendo o mito do Graal” (MAFFESOLI, 1999, p. 187) é uma premissa que representa o caminho entre o bem e o mal, entre o medo e o desejo.

A errância, a sede de infinito, desse modo, possuem um lado místico, que é também de "religação". Não no sentido religioso, mas sim no sentido de "religação" com o outro, de ideais e modos de vida que não se reduzem ao racional, ao utilitário. Dessa forma, o nômade carrega uma verdadeira espiritualidade. O autor afirma que "os fanatismos contemporâneos, as diversas vagabundagens e múltiplas anomias são, mesmo que inconscientemente, convocações mais ou menos violentas a um ideal

comunitário” (MAFFESOLI, 1999, p.41).

O nomadismo funda uma mística do acolhimento, tão necessária na atualidade que traz múltiplas formas de exclusão, tendo uma predisposição a acolher o outro, o da pequena tribo à qual aderiu, o amante, o amigo, o próximo, o conhecimento, o inimigo, o indiferente, mas também o grande outro, da alteridade absoluta, da natureza, da divindade, da estranheza ou da morte.

Na modernidade, o sedentarismo, associado por Maffesoli (1999) ao não movimento e à territorialização individual (marca de identidade) ou social (marca da instituição), estariam dando lugar ao nomadismo e à errância, noção que o nomadismo carrega.

O autor explica que o nomadismo e a errância se manifestam em ciclos e que existiria uma antinomia10 no par nomadismo - sedentarismo que se expressa e constitui um "dado mundano", ganhando a forma de uma espécie de "enraizamento dinâmico". Nesse sentido, ele adverte que "ainda será preciso que os dois pólos dessa ambivalência

possam se articular harmoniosamente” (MAFFESOLI, 1999, p.103).

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Maffesoli trabalha em uma lógica contraditorial, em uma dialética em que os opostos permanecem em contínua tensão, denominada dialética antinomista ou trágica, sendo própria de pensadores antigos e modernos como Zoroastro, Heráclito, Proudhon e Nietzsche. Nessa perspectiva, as antinomias não se resolvem, sendo complementares e irredutíveis.

Além disso, afirma, ainda, que a dialética destruição-construção expressa a vida no seu sentido soberano. A vida, portanto, é apreendida essencialmente como ruptura, movimento, mudança.

O arcaísmo do arquétipo nômade retorna em ciclos que se sucedem e retornam no tempo histórico seguindo uma dialética, "como o vaivém das peças que dão equilíbrio às máquinas, aquele pólo que se descuidou retoma a importância" (MAFFESOLI, 1999, p.103), e é nesse ciclo que o arcaísmo do arquétipo nômade

retorna. Para Maffesoli (1999, p. 90), “o habitante das megalópoles seria, em certo

sentido, um novo tipo de nômade, um errante que muda de aparência e de papéis na vasta teatralidade social".

O ambiente pós-moderno é caracterizado por uma generosidade de ser, em que as pessoas desenvolvem formas de solidariedade, multiplicam expressões de compaixão e manifestações caritativas, havendo essa pulsão que empurra para o outro, recusando o

status quo.

A liberdade do errante seria a da pessoa que busca, de um modo místico, a experiência do ser. Essa experiência, é antes de tudo, comunitária, pois é necessária a

ajuda do outro e “o outro pode ser aquele da pequena tribo à qual se aderiu, ou o grande

Outro da natureza, ou de tal ou qual divindade" (MAFFESOLI, 1999, p. 70).

Dessa maneira, a religiosidade, ligada à ideia de procura, exílio e volta ao caminhar existencial, retornaria, assim como os mitos encarnados em expectativas coletivas, no desejo de outro lugar, tendo como exemplo Dom Quixote ou os Rolling Stones.

O nomadismo restaura o pequeno individual no si global, fortalecendo a

divindade que está em cada um e cada coisa, o que pode se chamar do “divino social”.

O teórico aponta, como fruto do nomadismo contemporâneo, uma orientalização que se expressa por técnicas corporais, ecologia, astrologia, retiros espirituais, práticas

religiosas de diversos tipos, antes ocultadas pelo racionalismo da modernidade, “e disso

faz o centro da sociabilidade contemporânea" (MAFFESOLI, 1999, p. 69).

O nomadismo e a errância se relacionam com a pluralidade de valores e papéis, levando-nos a uma errância estrutural, a uma variação permanente de papéis desempenhados pelo indivíduo, o que leva a um politeísmo de valores, que seria causa e efeito de uma vida errante.

Maffesoli (1999, p. 21), para caracterizar a necessidade da errância, afirma que, "em breve, quando não houver fome, vai-se morrer de tédio ou desespero". A pulsão da errância seria, portanto, resposta a um mundo que não satisfaz mais, onde as fronteiras se atenuam, os valores flutuam ao ritmo dos acontecimentos quase sempre incontroláveis. O presente é inatingível, volátil. Há fluência e circulação.

Na pós-modernidade há uma circulação, que transparece no movimento nômade, nas migrações do trabalho e do consumo, na fuga dos finais de semana para a praia, serra, shopping, nas migrações induzidas por desigualdades econômicas, transitando entre a trágica tensão da segurança e sufocamento do lar e a atração pela aventura, colocando-nos na impossibilidade de uma solução segura, como queria a modernidade. A alma, diz o autor, tem necessidade de se afastar do que é demasiado familiar, de afastar-se do lugar comum, de explorar novas paragens, novas aventuras, de perder-se para se reencontrar.

Para ele, a errância é um remédio para as vidas pessoal e coletiva, reprimidas por fechamentos territoriais, políticos, identitários, é um modus operandi que permite abordar o pluralismo estrutural dado pela pluralidade de facetas do "eu" e do conjunto social e também um modo de vivê- lo. Em seu sentido mais estrito, é uma êxtase que permite escapar simultaneamente ao fechamento de um tempo individual, ao princípio de identidade e à obrigação de uma residência social e profissional. Esse êxtase, que

anteriormente se encontrava em um religioso separado, agora “está na origem das

epidemias de massa, esportivas, musicais, religiosas, políticas, culturais" (MAFFESOLI, 1999, p. 113).

A pulsão migratória e o desejo de estar em outro lugar pode ser gerado pelo tédio e pela solidão que se instala, em que o presente parece ser impossível de ser

vivido, e a “festa”, por consequência, é sentida sempre como sendo em outro lugar.

Para se escapar do mal-estar existencial próprio da nossa sociedade, quer se a chame de capitalista, pós-moderna, sociedade de consumo, sociedade do espetáculo, sociedade moderna etc., o nomadismo enfatiza a dimensão qualitativa da existência.

O autor ainda atribui mais uma função à errância. Embora a compreensão do termo venha a significar uma imperfeição, é ela que permite ao mesmo tempo ter a intuição da perfeição. Enfim, a errância pós-moderna permitiria "lançar uma ponte entre o mundo contemporâneo e os valores tradicionais" (MAFFESOLI, 1999, p. 112).

Assim, o nomadismo prevaleceria nas épocas em que o gozo do presente assume grande importância, ligando-se a um outro fenômeno, o presenteísmo, que busca viver o presente.

No documento Corpo, contemporaneidade, juventudes e escola (páginas 128-132)