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Maffesoli e o fim de um tempo: modernidade ou pós-modernidade?

As reflexões de Maffesoli sobre a sociedade moderna e pós-moderna diferem de alguns autores, pois, mesmo criticando a razão abstrata, não abdica do uso de outras razões, como a razão interna ou sensível.

Para Maffesoli (1999, p. 228), a passagem da modernidade para a pós- modernidade é um questionamento de questões que, até então, eram evidências, dentre elas, o fato de que não nos satisfazemos mais com uma história soberana e linear, de que

“o projeto político não exerce o mesmo fascínio, a natureza não é um objeto inerte, o indivíduo não é mais o sentido como a razão última de toda uma vida em sociedade”.

O pós-moderno não seria nem a superação da modernidade, nem oposição a ela, mas sim sua derivação e sua dissolução. Para Maffesoli (1999), a sociedade pós- moderna seria uma sociedade pós-secular na qual a ênfase no “trend” secularizante, deixado de lado, permite perceber numerosos fenômenos de desecularização.

Maffesoli pensa a contemporaneidade distanciando-se das análises políticas econômicas, que não deram conta de todas as explicações como se pretendeu na lógica da modernidade, em que chegaríamos a uma sociedade perfeita. Nessa lógica, seríamos sujeitos individuais, associados a outros sujeitos contratualmente.

Haveria várias questões que apontariam o que está em jogo na pós-modernidade.

Barros (2008) sintetiza algumas dessas questões em Maffesoli, como: a “infra-estrutura social” utilizada por Freud; a invenção do indivíduo filosófico por Descartes (“penso, logo existo”); os apontamentos de Weber, que mostrou o indivíduo religioso que traria o

desenvolvimento do capitalismo e a economia da salvação agostiniana que seria a base da sociedade moderna; a invenção do sujeito político na filosofia das luzes e da Revolução Francesa; a invenção do sujeito jurídico no século XIX pelo código napoleônico; a invenção do indivíduo que é o pivô que constrói o contrato e Foucault, que mostra como se inventa a instituição social.

Também em sua obra “Elogio da Razão sensível”, Maffesoli indica que

começamos a viver uma mutação radical na compreensão da sociedade contemporânea. Depois de um período que vigorou uma ideologia progressista, ressurgem valores arcaicos, uma espécie de doxa, que exprime a vida cotidiana.

Para Maffesoli (2005), na Idade Média, predominou o estilo ideológico, na modernidade, o econômico e, na pós-modernidade, pode-se apontar o lugar do coletivo em uma nova ordem que se esboça. É a partir dessa ordem que se deve buscar, conforme Nietzsche, a profundidade na superfície das coisas.

Para isso, é necessário olhar novamente para as coisas buscando uma nova identificação com as várias culturas e tribos, apreendendo e apreciando cada coisa a partir da nossa coerência interna e não a partir de um julgamento exterior que dita o que ela deve ser.

Em “No fundo das aparências”, sem querer oferecer uma definição precisa à

pós-modernidade, o autor ressalta que seria um tempo em que se pode ver a conjunção do arcaico e do contemporâneo. A conjunção do arcaico-desenvolvimento tecnológico está produzindo um novo modo do estar juntos original, havendo a complementaridade de afetividade e tecnologia.

Nesse sentido, a pós-modernidade inauguraria uma forma de solidariedade social

que não se reduz ao “contratual”, mas que é elaborada por um processo complexo feito

de atrações e repulsões, de emoções e de paixões, que contém uma forte carga estética. Hoje também impera a convivência de valores contrários, cada um defendendo seus valores, sem a necessidade de que o outro tenha de adotá-lo. Estamos na lógica do já é, do cotidiano que substitui o dever-ser. A atualidade é antifuturista e prevalece o presenteísmo, vive-se o momento. O autor utiliza o termo “organicidade”, para apontar o que mantém juntos elementos contrários, ou mesmo opostos, que seria a mistura orgânica desses elementos.

Boaventura Santos (2001) também aponta que estamos em uma cultura de transição paradigmática com uma mudança societal modulada pelo “princípio da

comunidade” e sentido “estético-expressivo”, remetendo para um entendimento estético

e hermenêutico da vida social.

Maffesoli assevera que o sentido dado à estética é o de tudo que faz estar juntos, do vivido em comum. Para Santos, a vida em comum na modernidade foi fundamentada no paradigma da racionalidade técnico-científica ou pela predominância da racionalidade cognitivo-instrumental. Assim, o autor propõe um novo paradigma que

1987, p.46), que deve observar a dimensão societal e epistemológica da cultura, que seriam as vias de construção da realidade social.

Santos (1987) se aproxima de Maffesoli, ao abordar a dimensão estético- expressiva, que está fundamentada no princípio de comunidade. Os autores têm interesse na questão do senso comum, em uma outra epistemologia. Para eles, nesse tempo, estaria se construindo um novo senso comum, no qual as ideias de solidariedade (dimensão ética), de participação (dimensão política) e de prazer (dimensão estética) estariam presentes.

Para Santos (1987), um conhecimento-emancipação poderia se converter em senso comum, ao estar presente nas relações sociais. Ele defende a solidariedade como uma forma de conhecimento necessária à prática política.

Também Lash (1997) é um dos autores que convergem com as fundamentações

observadas por Maffesoli. O autor aponta a “alta modernidade” que teria

analogicamente os mesmos princípios que levaram Maffesoli a classificar o tempo atual como pós-modernidade, como um princípio da comunidade, em uma realidade ético-

estética, exaltando o nós em detrimento do eu. O autor constrói uma “teoria da reflexibilidade hermenêutica”, em que os signos, a informação e a comunicação, as

práticas e obrigações cotidianas, o viver comum são valorizados, criando sentidos e

significações culturais, como se estivessem inscritos nos corpos e que, “ao fazer parte

de uma comunidade de gosto, que assume a facticidade da comunidade, envolve significações, práticas e obrigações compartilhadas” (LASH, 1997, p.194). A proposta do autor é de uma reflexão hermenêutica acerca da vida social, já que estaríamos em uma mutação ontológica do fenômeno de comunidade na modernidade tardia.

Outras noções surgiram com a saturação dessas lógicas em que o homem comum passa a reconhecer seus limites, não se prendendo mais em um saber trágico. Maffesoli ressalta que os valores instituídos que foram consolidados na modernidade tornaram-se incômodos.

Os movimentos de “lutas”, as resistências à opressão não se dão mais através da

contestação, o que no Brasil seria muito característico. Acreditamos que quase todos já tenham ouvido diversas conversas em que se falou sobre uma passividade ou conformismo do brasileiro no que se refere ao político e social, sobre exigências de uma sociedade melhor que deveriam estar postas, mas que o povo não faz movimentos de

contestação ou protestos massivamente, diferentemente do que acontece em relação ao futebol, por exemplo.

Entretanto, sob o olhar de Maffesoli, não seria propriamente essa afirmação que o fato revela. O que ocorreria seria uma recusa em participar, no caso da política, como modo de contornar o que causa desconforto. Como a promessa de união em uma sociedade idealizada não se consolidou, as pessoas se juntam pelo presenteísmo, em que a conversa fiada, as questões afetivas, o trabalho, a família, a sorte no horóscopo, a banalidade do cotidiano são fatores de reunião.

Dessa forma, para Maffesoli (1987, 2006), essas reuniões, essa conjunção se consolidam pela formação das tribos pós-modernas, nas quais se pode contemplar um processo de desindividualização, formando as tribos afetuais, as comunidades emocionais da pós-modernidade que vêm se contrapor aos grupos sociais, contratuais, da modernidade.

Para o autor, a sociedade moderna seria asséptica, exageradamente racionalizada, preocupada em banir o risco e, com sua saturação, o bárbaro retorna, não sendo uma coisa má, o que nos livra de morrer de tédio, como falou Le Play, já que não se morreria mais de fome.

As tribos urbanas suscitam a urgência de uma socialidade empática, em que as

emoções e afetos possam ser partilhados. Estaríamos escorregando, passando da “Pólis” para a “Thiase”, de uma ordem “política” para uma ordem “fusional”, que marca a

saturação da lógica da identidade. O tribalismo carregaria o sentimento de pertença a um lugar, a um grupo como fundamento essencial de toda a vida social.

Maffesoli (2007, p. 100) diz que estaríamos em um tempo da “revanche de Dionísio”, no qual a vida social carrega a ambiência erótica. Entra em cena, retomando a expressão de Ortega y Gasset, o “imperativo atmosférico” em que a ambiência estética

apresenta a dimensão transindividual, coletiva e cósmica, sucedendo o imperativo categórico kantiano da moral, ativo e racional.

Na contemporaneidade, as razões e afetos locais ganham lugar e o que Maffesoli

chama, em “O instante eterno”, de “pensamento dos sentidos”, passa a assumir os

sentidos, as paixões e as emoções comuns.

Para Maffesoli, estamos marcando o fim de uma época, que foi organizada a partir do primado do indivíduo e temos o retorno da comunidade, nas grifes do

tribalismo: destino comunitário, comunidades de destino, retorno da barbárie que são ocasiões de regeneração do corpo social. Para Maffesoli (1998), na atualidade, o bárbaro não se encontra mais em nossas portas, estando ele, antes, em cada um de nós e nada serviria para julgá-lo ou negá-lo.

No trabalho denominado “Elogio a razão sensível”, Maffesoli remete à razão,

em um questionamento à modernidade. A tese do autor é a de que as razões da razão racionalizante, vigente durante estes dois mil e quinhentos anos no pensamento ocidental, teria esgotado a sua capacidade de compreensão do mundo atual. Daí ele sugerir uma nova proposta teórica que, por oposição às razões da razão racionalizante, instituir-se-ia sobre as intuições e as reluzencias da razão sensível.

A razão sensível procura compatibilizar pares até então dicotômicos: objetivo- subjetivo, intelecto-intuição, razão-emoção etc. e sua eficácia epistemológica residiria na maneira de abordar o real em sua complexidade fluida, levantando a topografia do imprevisível e do incerto, seguindo as linhas de fusão e efervescência do social e apreendendo o rumor abafado das redistribuições da vida coletiva.

Para o autor, não poderíamos afirmar que seria a pós-modernidade, mas faltando, ainda hoje, um termo que melhor definisse esse tempo, passa a assim chamá- lo. Interessa-nos, neste caso, não a discussão do uso ou não do termo pós-moderno, que, sabemos, é controverso, mas o modo pelo qual o autor busca compreender o tempo presente. Em relação ao termo, voltaremos a discuti-lo mais adiante.

Observa-se não haver um consenso sobre a narrativa social da atualidade que a denomine e caracterize por uma única expressão. Se houve consenso sobre as denominações anteriores como a Idade Média, o Iluminismo e a própria modernidade, ainda não se pode definir para onde irá essa transição, por isso as controvérsias sobre o tempo presente. Entretanto, destaca-se que existem características comuns nas observações de diversos autores que apontam para um tempo de transição e, fôssemos caracterizar o presente, somente podemos nos utilizar da expressão contemporaneidade.

Concordamos que há um paradigma emergente e, para compreendê-lo, seria necessário fazer o resgate do tempo social intitulado como modernidade e que avança até a atualidade. No imaginário moderno, emergiu a crença de que o homem dominaria a natureza, emergindo o mito do progresso, da racionalidade técnica com o

desenvolvimento científico e tecnológico, aflorando o individualismo e levando à transformação nos modos de organização social e política.

Percebe-se, na contemporaneidade, que houve avanços, contudo, as promessas modernas parecem não ter sido cumpridas. Vivenciando o rompimento com a secularização, o questionamento do triunfo razão, colocamos o corpo em risco, o que leva a se pensar no esgotamento da modernidade, ou em termos weberianos, no desencantamento do mundo.

Também há indícios de que também o individualismo vem se esgotando e que transpomos para um período de coletividade, saindo de um período de racionalidade para um tempo no qual a emocionalidade vigora. Encontramo-nos em um tempo que se encerra, um tempo em que o corpo individual abre espaço ao corpo coletivo. O espírito do tempo é outro, uma nova ordem se esboça. Para Maffesoli, a ideologia progressista cede lugar a valores arcaicos, ao conhecimento da vida cotidiana e passamos de um corpo individual a um corpo coletivo. A pós-modernidade inaugura um tempo de solidariedade social não reduzida ao contratual, em que a emoção, as atrações, as paixões emergem e compõem uma ordem estética em que o estar juntos, o vivido em comum passa a vigorar e as pessoas passam a se juntar pelo presenteísmo em que qualquer banalidade pode se constituir como um fator que leva à reunião. Ressurge, nesse tempo de emocionalidade, o mito dionisíaco no qual o corpo ressurge.

Em sequência ao tema, no próximo capítulo, abordaremos sobre as concepções modernas do corpo e como ele vem sendo discutido na contemporaneidade.

COMPREENDENDO O CORPO

2. O CORPO

Ao longo desta tese, trataremos da compreensão dos corpos humanos para que a escola possa melhor situá-lo nos discursos e práticas pedagógicas. Concordando com Schüller (2001, p. 106), "há um saber corpo... O corpo sabe o mundo, convive com ele. Sabe as coisas ao tocá-las. Conhece e reconhece. Os corpos comunicam-se, interpenetram-se" ou, remetendo-nos a Merleau-Ponty (1975, p. 438), que nos aponta que somos " esse animal de percepções e de movimentos que se chama corpo".

Temos o corpo da linguagem, o corpo que sentimos, o corpo que se transforma através de outras linguagens humanas. Por muito tempo, a escola tem colocado o corpo à margem em seus projetos, tratando do seu conhecimento sustentado pela dimensão da racionalidade técnica. É necessário a escola reinventá-lo, a fim de buscar a dimensão da percepção no tratamento dado ao conhecimento de forma sistematizada.

Assim, temos “o corpo”. O que compreendemos ao ouvirmos o termo? A

constatação que temos é a de que, sem ele, o homem não existiria, ou seja, conforme afirma Le Breton (2011, p. 18), a condição humana é corporal, sendo que nada é mais misterioso para o homem de que seu próprio corpo, por mais óbvio que ele pareça. O

autor pontua também que “o corpo é uma construção simbólica” e que, desse modo,

bem como uma definição de pessoa, sendo o corpo “recinto do sujeito”. Ao mesmo tempo, o corpo está dissociado do sujeito na modernidade, existindo somente quando construído culturalmente pelo homem.

Conforme Le Breton (2011, p. 395), se o corpo fosse realmente uma máquina, ele não estaria submetido ao envelhecimento, à precariedade e à morte. O autor lembra

que “não se compara a máquina ao corpo, compara-se o corpo a máquina”. Não

obstante, ele é orgânico.

Os saberes sobre o corpo nascem do saber médico, com os anatomistas e com os fisiologistas, o que o torna objeto da ciência, através da qual foi dissecado, manuseado, tendo sua massa medida, bem como seu volume, sua densidade, uma ciência que também analisa seu movimento (CORBIN, 2008).

Entretanto, Le Goff e Truong (2010) nos lembram de que o corpo foi ignorado por historiadores durante muito tempo, tendo sido considerado parte da natureza e não da cultura, princípio que somente foi quebrado, no decorrer do século XX, por autores como Norbert Elias, Marc Bloch, Lucien Lebvre e Michel Foucault.

Assim, sustentado pelas recentes compreensões sobre o corpo, Corbin (2008, p.

09) observa que, na atualidade, podemos afirmar que “o corpo é uma ficção”. Temos

hoje um corpo diferente do corpo do prazer, da dor, do lugar das sensações, da experiência, da carne, da espiritualidade, do corpo social, coletivo, sujeito, individual, corpo explorado, corpo negado, que passa também a ser alvo de estudos, de outras formas de saber.

Para Courtine (2008), o século XX é que teria inventado teoricamente o corpo, com a psicanálise, que valoriza a expressão do corpo por meio do inconsciente. O autor lembra que, para Husserl, o corpo é berço de toda significação; com Merleau-Ponty, o corpo é encarnação de toda consciência e, finalmente, com Marcel Mauss que, por meio da observação das técnicas corporais, elaborou a reflexão histórica e antropológica sobre o corpo que se estende até hoje.

Sennet (1997, p. 15) nos aponta como, a partir do entendimento da experiência corporal do povo, as marcas da história se inscrevem nas próprias posturas corporais dos membros da comunidade.

Dessa forma, discutir e pesquisar a questão do corpo e educação faz-se necessário. Mudanças culturais ocorreram ao longo da modernidade até a atualidade.

Coincidindo com o processo de escolarização em massa e com o advento das ciências, do progresso, uma nova ordem foi estabelecida para a formação.

Oliveira e Vaz (2004) ressaltam que, nesse período, surge a redefinição do papel conferido ao corpo ou à corporeidade dos alunos no novo modelo escolar que se instaurava. Dentre o que foi instaurado, Soares (2001) salienta que a escola delimitou espaços, estabeleceu o que cada um pode ou não fazer, impôs marcas, que influem e interferem na relação dos sujeitos com a instituição escolar, como utensílios, móveis e sua a própria arquitetura que projetou espaços específicos que expressam a ideia de educação do corpo e de um projeto político de ordem.

Assim, compreender em que lugar se encontra o corpo na atualidade é uma discussão relevante.