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Nietzsche, niilismo e Maffesoli

No documento Corpo, contemporaneidade, juventudes e escola (páginas 134-139)

Algumas noções em Maffesoli têm sua origem em suas reflexões sobre Nietzsche. O autor a que se refere Maffesoli analisa que, na passagem do pensamento mítico para o lógico-científico, teriam se perdido a proximidade com a natureza, sucumbindo Dionísio e fazendo emergir Apolo, o deus da racionalidade, o que foi possível com a emergência da razão.

Marcondes (2005, p. 244) sinaliza que Apolo prevalece em detrimento de Dionísio, que pouco a pouco é reprimido com tudo o que ele representa, o desejo, as

emoções, os sentimentos e tudo o mais. O autor ainda cita que Nietzsche “zomba do

racionalismo crítico moderno, de sua pretensão de fundamentar nosso conhecimento e

nossas práticas”.

Dentre as noções abordadas por Nietzsche, a do niilismo tem uma forte influência no pensamento de Maffesoli. O niilismo, em um primeiro entendimento, remete ao mundo sem valores. Entretanto, a noção nietzcheniana volta-se para a

superação de um mundo sem valores, deslocando-se para um mundo com outros valores, o que repercute no pensamento de Maffesoli.

A perda ou desvalorização dos valores supremos é atribuída por Nietzsche (2004) à morte de Deus, o que não significaria destruir o que havia de sagrado no mundo. Assim, entre um Deus vivo e morto, é apresentada a ideia da transvaloração.

Nietzsche pergunta “para onde foi Deus? Eu já lhes direi! Nós o matamos, você e eu”(NIETZSCHE, 2004, aforismo 125 do Livro III). Entretanto, o autor parece

questionar nossa arrogância e ainda pergunta se esse ato não seria demasiadamente grande para nós, de modo que, para merecermos Deus, deveríamos nós mesmos tornarmo-nos Deus.

Nietzsche se recusou a revisar o conceito de razão e depositou suas esperanças na inconstância e indeterminação da experiência estética, conclamando um levante dionisíaco contra o Ocidente decadente que oprimiu a mutabilidade da própria vida em nome do universalismo da razão.

Conforme Lima (2008), Nietzsche afirma que, para superar o niilismo,

importaria a transvaloração dos valores, o que significaria dizer que “livrar-se das crenças metafísicas e religiosas requer assumir a própria existência” (LIMA, 2008,

p.234). Nessa perspectiva, assumiríamos o domínio da terra, de modo a fazer nascer um novo homem, elevado e livre, o super-homem nietzschiniano, que não supõe assumir o lugar do divino.

Segundo Nietzsche (2004, p. 193), a renúncia à crença em Deus levaria à transformação do homem num ser elevado, pois, “talvez o homem suba cada vez mais, já não tendo um Deus no qual desaguar”. A grandeza desse ato possibilitaria aos homens se libertarem da domesticação proporcionada pelos processos civilizatórios, sendo necessária ao homem a superação da negação e a decadência do cansaço que

acomete a sociedade civilizada pelo rebanho. Para ele, “estamos cansados do homem”

(NIETZCHE, 2002, p.35).

O tribalismo maffesoliano seria, então, uma reação ao niilismo, ao cansaço do homem. Maffesoli (1987, p. 78) considera um sintoma da pós-modernidade a conduta cética e cínica em relação à ordem social, que se manifesta pelo desprezo à política e

pela não intenção em se construir um projeto para o futuro, advertindo que “podemos

aproveitar esse presente, tomar a vida pelo lado agradável seria uma das características da atualidade, o que o autor chamou de presenteísmo, que se relaciona ao nomadismo e à errância, traduzindo a inquietude dos indivíduos diante da tragicidade11 vivida.

Lima (2008, p. 238) pontua que a sabedoria trágica se apresenta, quando, ao mesmo tempo, reclamamos das adversidades da vida e concordamos ser esta a única forma de existência. Para a autora, “seriam formas de resistir ou de se enganar a arbitrariedade da existência, ao andamento do tempo, instantes de fuga e refúgio, que representem pequenos nadas cotidianos, que são os verdadeiros atos responsáveis pelo clima generalizado de vitalismo e resistência resignada”.

Nesse sentido, Maffesoli (1987) aponta que o tribalismo é também uma forma de resistir e construir realidades sociais alternativas, seria a manifestação da sabedoria trágica, na qual se apresenta a capacidade humana de se ajustar, de acomodar e se conformar em viver sob as condições desfavoráveis e sofridas, encontrando momentos de efervescência e celebração da vida.

Nietzsche (2002, p. 87-88) esclarece que a falta de sentido e o sentimento de vazio provocam um vácuo, e que, como tem um “horror ao vácuo”, precisa de um

objetivo “e preferirá ainda querer o nada a nada querer”.

Para Maffesoli (1999), essa vontade de nada como uma forma de se proteger da falta de sentido para a existência é uma das características do tribalismo. O autor aponta que o hedonismo coletivo pulsante da atualidade expressa o sentimento de urgência para

aproveitar intensamente todo instante: “carpe diem! Desse modo, Lima (2008, p. 238) salienta que temos, na contemporaneidade, “o desejo coletivo de intensificar a vida se expressa através das festas, atos violentos, momentos lúdicos e ações inconseqüentes” .

Maffesoli (2001, p. 11) reflete que as errâncias da pós-modernidade, mesmo anunciando uma celebração irrestrita da vida, transformam a aceitação em indiferença,

entretanto, esse movimento não “contemplaria a travessia do deserto niilista”. Seria

uma passagem do amor fati (amor ao destino em Nietzsche) para o amor mundi, no qual

“o mundo só é miserável para aqueles que nele projetam sua própria miséria”.

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Nietzsche inspirou Maffesoli na diferenciação entre o drama e a tragédia. O drama é uma ação que deve ser solucionada e também uma concepção judaico-cristã encontrada no marxismo, que tem como instrumento a dialética. O trágico, chamado de instante eterno, é justificado porque não se procura uma eternidade, mas, sim, o presente, o gozo, de onde o prazer teria relação com o trágico.

A modernidade prometeu a superação social e sua não consolidação fez com que, na atualidade, o social carregue esse fardo, o que poderia levá-lo a sucumbir em um conformismo e na resignação. Entretanto, para Maffesoli (1999, p.312) as efervescências vitalistas assumem um agir afirmativo e criam a si mesmas. Para o autor, na socialidade, os indivíduos se anulam em função do desejo de estar juntos e se confundem com os outros, criando identificações coletivas, por meio das quais buscam possuir inúmeras máscaras ou personas. Isso não retira as possibilidades do indivíduo, uma vez que, na pós-modernidade, a subversão, que desafia as imposições sociais, institui diversos abrigos e refúgios fundamentais para as existências individuais.

Assim, para Nietzsche (2005a, p. 153), a sociedade do rebanho, que é

consequência da condição niilista, coloca inerte a ascensão do homem para a “auto- superação do homem”. O autor também se afastou da ideia de igualdade, posicionando- se a favor do “nivelamento” entre os indivíduos. Com isso, em vez da igualdade, passa a

defesa da diferenciação, denominada pathos da distância, que é uma crítica à sociedade do rebanho e representa a necessidade de superação da ordem estabelecida pela moral da civilização judaico-cristã. Para a diferença, não é necessária a dominação de alguns indivíduos sobre outros.

Lima (2008, p. 241) observa que superar o niilismo, para Nietzsche, é gerar uma

nova forma de existência superior e livre dos constrangimentos morais, abandonando “o

sentimento de culpa e sofrimento ressentido sobre a vida e aceitar e criar novos sentido

existenciais significa constituir uma existência digna de ser eternamente afirmada”.

Para Lima (2008), em Nietzsche, a perspectiva artística traduz a melhor maneira de enxergar o mundo. O artista não faz para consolar, mas aprecia e cria a realidade, com superficialidade e, ao mesmo tempo, com toda a profundidade. Assim, Nietzsche (2004, p. 15) procura escapar da crença em um mundo além da superfície na qual se vive e, para isso, remete aos gregos, afirmando que eles eram adoradores da aparência:

“Esses gregos eram superficiais – por profundidade!” Ser “superficial por profundidade” significa perceber que a realidade se constitui de representações de

fenômenos, mas não possui uma verdade além da aparência, ou seja, “reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor, e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal” (NIETZCHE, 2005a, p. 11). Assim,

Lima (2008, p. 93) argumenta que “seria a inverdade que possibilitaria reconhecer a

profundidade das aparências como verdadeira realidade, composta de verdades mutáveis

e realidades incertas”.

Para Nietzsche, a compreensão do mundo, uma vez que o conhecimento verdadeiro se desestruturou, não se daria pela razão, mas pela vontade de poder, apontada por Lima (2008) como um princípio segundo o qual se define a vida, não pressupondo este uma teoria da unidade, mas implicando multiplicidade.

Para a autora (2008), a tese nietzschiana sobre a relação entre a vida e a vontade de poder é elaborada em oposição à teoria da vontade de Schopenhauer, que atribui confiança na causalidade da vontade. A autora destaca que, em uma palavra, Nietzsche (2005a, p. 40) procura definir a vontade atuante na própria vontade, isto é, a força:

em suma, é preciso arriscar a hipótese de que em toda parte onde se reconhecem 'efeitos', vontade atua sobre vontade – e de que todo acontecer mecânico, na medida em que nele age uma força, é justamente força de vontade, efeito da vontade.

A força atuante na vontade não corresponde à vontade relacionada com o querer, tampouco seria uma adequação à causalidade, visto que a vontade de poder causa, antes, uma pluralidade de efeitos, incontroláveis e imprevisíveis. A vontade de poder critica a crença metafísica de que há uma verdade única e questiona a consideração moral sobre a uniformidade imposta aos indivíduos, que os transforma em rebanho.

Daí Nietzsche vem apontar a superação desses valores. A vontade de poder exprime a incessante superação que rege a vida. A força atuante da vontade de poder também assume o sentido de vontade criadora, capaz de avaliar e criar valores que superem o niilismo no qual impera a desvalorização de todos os sentidos. A vontade de poder permite atravessar o niilismo sem a vontade de veneração que se submete aos deuses.

Trata-se da vontade veraz ou “vontade de leão”, que se expressa pela atitude destemida, faminta e violenta (NIETZCHE, 2005b, p. 132-133), além de insaciável em relação ao conhecimento. Nietzsche (2005b, p. 246) cria ficções para transformar todos os valores em criações demasiadamente humanas. A vontade de poder criadora e destruidora se empenha por superar o desejo de “nada desejar”, que acomete os fracos e cansados do mundo: “o querer liberta, pois querer é criar”.

Segundo Lima (2008), percebe-se que, em Maffesoli, como as análises nietzschenianas foram utilizadas para compreender de que forma a sociedade pós- moderna, considerada herdeira da história niilista, consegue subverter a ordem, por meio de transgressões que esbanjam vitalismo. No entanto, a atual sociedade permanece, em geral, acolhida pelo rebanho, embora venha resistindo, visto que apresenta uma postura reativa. Na atualidade, parece que, nos casos de resistência, não há enfrentamento combativo, mas desvios e fugas que constroem caminhos alternativos; as transgressões representam uma forma de escapar das imposições sociais sem transvalorar completamente a realidade social.

Teria Nietzsche o inspirado a pensar na ideia de pessoa e de tribo, na saturação do indivíduo e na emergência do tribalismo? Assumir uma transvaloração que reordene a realidade significa, enfim, transformar-se em herói da própria tragédia, fazendo-se obra artística.

Para Maffesoli (1999), assim como Nietzsche, o não racional não significa irracional. O não racional seria da ordem das paixões, da emoção e do afeto. Enfim, Maffesoli (1999, p. 249) propõe a vida como obra de arte, noção de inspiração

nietzschineana, afirmando que “assumir uma transvaloração reordenadora da realidade

significa, enfim, transformar-se em herói da própria tragédia, fazendo-se obra artística”.

No documento Corpo, contemporaneidade, juventudes e escola (páginas 134-139)