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3 TRANÇAR AS LINHAS E CRUZAR OS FIOS: O TRATAMENTO DIDÁTICO

3.1 DIDATIZAÇÃO, MODELIZAÇÃO E TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA

3.1.1 A transposição didática e a forma escolar

Segundo Schneuwly (2009a), a implementação e o desenvolvimento da TD na escola são determinados pela própria forma de organização escolar. A escola, como a conhecemos hoje, guarda características de organização que tem raízes profundamente marcadas e ligadas à criação do Estado-Nação e às condições de ampliação do acesso a

69 Grosso modo, essa é a definição de transposição didática (CHEVALLARD, 1985) e que será retomada ao

escolarização, servindo aos interesses do desenvolvimento econômico e das novas formas de divisão do trabalho. Dessa forma, também está ligada à organização da sociedade, às lutas de classes, à busca pela democracia e à possível participação mais geral das pessoas nas relações sociais. Ainda, segundo esse teórico suíço, esta característica da escola impulsiona para uma ruptura com as antigas formas de “transmissão de saberes”, que eram da ordem do saber fazer, e visa ao estabelecimento de mecanismos para a “construção de uma relação com o mundo mediado, notadamente, pela cultura da escrita e, de modo geral, com os sistemas de saber formalizados e sistematizados”.70

Destaca-se, ainda, que a criação dessa nova relação com o saber não se faz a partir da vida cotidiana, mas na ruptura com ela.

Nesse processo histórico, a aprendizagem que acontecia no seio familiar ou nos locais de atividades profissionais, no desenvolvimento de trabalhos manuais, como demonstrou Petitat (1994), foi sendo substituída pela aprendizagem institucionalizada e circunscrita na forma escolar: com espaço, tempo e relações didáticas específicos. Nasce, com a institucionalização da escola, o controle da aprendizagem, circunscrita ao prédio, às salas de aula, a divisão por idade e desenvolvimento (seriação, ciclos, notas), à organização curricular, às matérias, às disciplinas e aos conteúdos a serem desenvolvidos com os alunos e à participação de professores especialistas, que demonstram o outro lado da organização escolar.

Nessa direção e ao longo da história, a escola é vista como um lugar físico (o prédio e o seu mobiliário) que delimita e dá forma ao espaço onde se movem e agem os principais atores: o professor e o aluno, cuja relação é definida pelas funções de ensinar e aprender. E é este espaço, circunscrito por seus objetos que determina, de certa maneira, o que é possível e o que deve ser feito em termos de desenvolvimento do conhecimento, com programação, horas, dias, semanas, anos, cursos, controlando e impondo um percurso de estudos para o desenvolvimento dos sabres a cada um que adentre a instituição escolar (VERRET, 1975).

70 « La construction d’um rapport au monde médiatisé notamment par la culture de l’écrit, et plus

Neste contexto de organização, institui-se o que Schneuwly (2009) chama de “relação entre as pessoas, baseada em uma definição de papeis precisos [criados] institucionalmente”.71 De um lado, estaria o professor, um profissional contratado e pago para o desenvolvimento das atividades educativas, tendo como função a implementação e controle dos instrumentos para desenvolver as capacidades de aprendizagem dos alunos. O professor nesta relação é caracterizado como o representante dos saberes e, ao mesmo tempo, assumindo uma posição de poder, impõe e controla, em muitos casos, de maneira coercitiva, as aprendizagens dos alunos. Do outro lado, os alunos, que liberados do trabalho produtivo, em um espaço e tempo definidos, estariam submetidos a um programa de ensino, composto por sansões e seleções diversas, para, precisamente, desenvolverem a aprendizagem.

Essas organização e característica da escola, em um primeiro momento, cooperam para a criação de mecanismos para o desenvolvimento das atividades de ensino que se iniciam externamente ao processo didático. Isto é, a criação dos currículos, das políticas educacionais e das discussões teóricas, os conteúdos a serem ensinados ficam diretamente ligados ao perfil de escola que se constitui. Em um segundo momento, determina-se a criação e a transposição de instrumentos para o ensino e a aprendizagem. A primeira dessas criações pode ser caracterizada como a constituição dos cursos escolares e a estruturação das disciplinas e, depois, dos meios para a transposição e modelização dos conteúdos nos materiais didáticos para serem, em outros meios, transpostos pelo professor, por meio de suas ações de ensinar, no ambiente de sala de aula.

Neste sentido, Petitat (1994) expressa com muita propriedade que o currículo foi a maneira encontrada pelos sistemas escolares de organizar o tempo e o espaço da aprendizagem, a partir do momento que a expansão das cidades ganha ênfase, bem como foi uma das estratégias de disciplinação e de disciplinarização do comportamento e do conhecimento. Aqui, estamos entendendo, segundo as ideias de Petitat, que a disciplinação do comportamento é uma ação de formar o corpo, a alma e o espírito do homem moral; e

71 « Relation entre personnes, basée sur une définition institutionnelle précise de rôles » (SCHNEUWLY,

por disciplinarização do conhecimento, o conjunto de disciplinas que servem para a formação intelectual do homem (PETITAT, 1994). Estas estratégias assumidas pela escola demonstram a relação que os saberes ensinados têm com a espacialidade e a temporalidade, ou seja, a escola forma homens para momentos históricos específicos.

Para Magda Soares (2002), disciplinarizar um conhecimento é o mesmo que escolarizá-lo; é “instituir um certo saber a ser ensinado e aprendido na escola, um saber para educar e formar através do processo de escolarização” (SOARES, 2002, p. 155, ênfase da autora). Nessa mesma direção, encontramos em Petitat (1994) a ideia de que a organização dos saberes escolares está diretamente ligada à substituição do aprendizado coorporativo, de tradição oral e ligado ao fazer, pelo aprendizado escolarizado, de tradição escrita e ligado ao saber sobre (como apresentamos acima, a partir das discussões de Schneuwly (2009)). À medida que o ensino é organizado em torno do aprendizado escolarizado, surge a necessidade de organizar o espaço e o tempo de aprendizagem.

Segundo Petitat (1994), o período que compreende a Renascença até perto da Revolução Industrial constitui o momento em que a criação de Colégios atinge os mais altos índices da história. A proliferação das instituições de ensino por todo canto se deu graças à concorrência religiosa e também às exigências sócio-históricas mais gerais. Nesse período, os Colégios já apresentavam uma organização curricular que primava pela “concentração dos cursos dentro dos estabelecimentos, gradação sistemática das matérias, programa centrado no latim e no grego, controle contínuo dos conteúdos adquiridos, supervisão e disciplina” (PETITAT, 1994, p. 76).

Para que houvesse um bom desenvolvimento dos aprendizes, agora organizados em um espaço específico, seria necessário, também, uma mudança na organização interna do aprendizado a ser oferecido a uma clientela de idades e desenvolvimentos variados. Assim, surge a escola: prédio, salas, divisão por idade e desenvolvimento (seriação, ciclos, notas), a organização curricular, as matérias, as disciplinas, os materiais didáticos que organizavam os conteúdos a serem desenvolvidos com os alunos e a participação de professores especialistas, tal qual a organização escolar que conhecemos hoje.

Essa organização exige outras mudanças internas no ambiente educacional: estabelece-se uma hierarquia de poder e a “escola constitui-se, assim, fundamentalmente, como uma instituição burocrática” (SOARES, 2002, p. 156). Sobre essa organização escolar burocrática, Soares (2002, p. 156), pautada nas ideias de Hutmacher (1992), diz que no quadro dessa instituição burocrática que é a escola, também o

conhecimento é “burocratizado”, transfigurado em currículo, pela escolha de áreas de conhecimento consideradas educativas e formadoras, e em disciplinas, pela seleção, e consequente exclusão, de conteúdos, processo através do qual se instituem os saberes escolares. (ênfases da autora). Os reflexos das mudanças educacionais iniciadas na Idade Média são sentidos ainda hoje no bojo de nossa organização escolar. Como dito acima, a escola burocratizou- se, hierarquizou-se enquanto sistema e enquanto conhecimento, exigindo, assim, a criação de um currículo que representasse essa organização, pois “o currículo diz respeito à seleção, à sequenciação e à dosagem de conteúdos da cultura a serem desenvolvidos em situações de ensino-aprendizagem” (SAVIANI, s/d, p. 2). Nesse sentido, ao longo da história da educação, a organização curricular procurou obedecer aos preceitos culturais, sociais, econômicos e políticos de momentos históricos específicos. Assim, em alguns casos, os currículos não se originaram (se originam?) em favor de uma educação de qualidade e emancipadora, preocupada com o desenvolvimento dos educandos, mas procuravam servir a interesses políticos particulares (como vimos rapidamente no capítulo anterior, quando descrevemos parte da história do ensino de LP no estado do Paraná). Nessa mesma direção e para concluirmos, é importante destacar que

o currículo é o espaço onde se concentram e se desdobram as lutas em torno dos diferentes significados sobre o social e sobre o político. É por meio do currículo, concebido como elemento discursivo da política educacional, que os diferentes grupos sociais, especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto social, sua “verdade” (SILVA, 2001, p. 10).