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3 TRANÇAR AS LINHAS E CRUZAR OS FIOS: O TRATAMENTO DIDÁTICO

3.2 OS SABERES, O TRATAMENTO DIDÁTICO E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

3.2.1 Tratamento didático como instrumento de trabalho: a transformação do professor

Inês Signorini, no prefácio do livro Gêneros catalisadores: letramento e formação de professores (2006, p. 8), diz que gêneros catalisadores são a gêneros discursivos, orais ou escritos, produzidos por professores em contextos de formação, inicial ou continuada, que, ao mesmo tempo, desencadeiam e potencializam “ações e atitudes consideradas mais produtivas para o processo de formação, tanto do professor quanto de

seus alunos”. Em outras palavras, os professores, ao produzirem um relato de experiência ou reflexivo, uma sequência didática, um artigo científico, ministrarem suas aulas, etc., estão combinando elementos teóricos de seus estudos e/ou práticos de suas ações em sala de aula provocando um processo de mudança em sua própria formação que se estende a seus alunos.

Esses gêneros discursivos, segundo Gomes-Santos e Seixas (no prelo, pp. 2-3), podem ser chamados de “gêneros da formação docente” e quando circulam no campo da formação dos professores transformam-se, por dotar o professor de conhecimento, em “instrumentos de ensino constitutivos da caixa de ferramentas” que o professor dispõe para o exercício de sua profissão. Esses instrumentos que, primeiramente, chegam ao professor como artefatos para a sua formação em tempos e espaços específicos (na universidade, em sua formação inicial, em agências públicas ou privadas que promovem cursos de formação continuadas, nos documentos oficiais – parâmetros e diretrizes curriculares -, nos materiais didáticos, em textos teóricos e nos locais de suas atuações, durante o exercício de sua profissão) transformam-se em “ferramentas” que são utilizadas durante o exercício de sua profissão. Nessa direção, a metáfora da “caixa de ferramentas” seria o conjunto de saberes que um professor dispõe para o exercício de suas funções no ensino. A “caixa de ferramentas” é, então, constituída, peça a peça, pelos saberes para ensinar e pelos saberes a ensinar. Os primeiros reúnem as ferramentas que fazem parte da formação (conhecimento curricular, didático e pedagógico) e os segundos as ferramentas específicas dos conteúdos gerais e específicos da disciplina de atuação. Essas ferramentas, por serem construídas e agrupadas discursivamente, são permeadas pela linguagem que, segundo Schneuwly (2009b) e Gomes-Santos e Seixas (no prelo), funcionam como o dispositivo central na criação de mecanismos de ensino. Estes mecanismos, ao mesmo tempo, produzem e usam essas/dessas ferramentas, uma vez “que [é] por ela e nela [linguagem] que se materializa a intencionalidade didática do trabalho de ensino” (GOMES-SANTOS e SEIXAS, no prelo, p. 3). Assim, estas ferramentas não estão montadas, acabadas e a disposição dos professores para serem utilizadas a qualquer momento. Elas, ao serem entendidas como discurso, vão se construindo durante a carreira, à medida que o professor mobiliza seus saberes e conhecimentos em favor de sua atuação em sala de aula.

Assim, as ferramentas didáticas, por serem produzidas discursivamente - e por isso determinadas sócio-historicamente pelo movimento que organiza a escola (teorias, currículos, materiais didáticos etc.) e, principalmente, pela “interação em sala de aula entre professor e aluno” (GOMES-SANTOS e SEIXAS, no prelo, p. 3) -, se constituem de formas diferentes e são objetos de usos variados. Ao longo da sua formação e de sua carreira, o professor adquire, cria, modifica, substituí, abandona, adapta determinados instrumentos às situações específicas de uso (de ensino), (re)organizando e (re)significando seus próprios saberes.

Diante disso, entendemos que o professor, ao produzir material didático como um espaço para a sua formação continuada, está produzindo, com as ferramentas didáticas que construiu ao longo de sua carreira, um instrumento de trabalho que, ao mesmo tempo, liga e transforma os três elementos que pertencem ao processo de ensino e aprendizagem: o objeto de ensino (conteúdo da disciplina), o próprio professor que produziu e utiliza o objeto de ensino e aprendizagem e o aluno que tem contato com esse objeto. Entendemos, neste caso, que estes três elementos (o aluno, o professor e o conteúdo da disciplina) são o tripé que sustenta a ação do professor que produz um MD. Sob esse prisma, o MD produzido por um professor pode guardar em si uma dupla face de formação: forma o professor que o produz, cooperando na possível modificação de sua forma de trabalhar (suas ações profissionais e verbais), pois ao elementarizar o objeto de saber, tornando objeto de ensino e de aprendizagem, está também re-trabalhando, a priori, a sua ação de professor, que deve seguir uma lógica própria e, ao mesmo tempo, articulada à ação da aprendizagem escolar, diretamente ligada à lógica dos alunos (SCHNEUWLY, 2009b); forma o aluno que ao estudar os conteúdos de um determinado objeto de saber por meio do MD produzido pelo professor terá contato com conteúdo pensado para ele (aluno), a partir da realidade em que está inserido e isso deve modificar seu modo de pensar, de agir e de falar (SCHNEUWLY, 2009b).

Nesse sentido e nos baseando nas teorias de desenvolvimento de Vygotsky (1930, 1931) e nas palavras de Schneuwly (2000), podemos dizer que o MD, um objeto físico e mediador, em sala de aula, entre o professor e o aluno, guarda em si artefatos ou

instrumentos psicológicos com a função de, duplamente, transformar comportamentos no ensino (do professor e do aluno), pois relaciona e organiza as relações das funções psicológicas superiores aos conteúdos e as suas significações, encaminhando, principalmente, os alunos do senso comum em direção ao conhecimento mais elaborado.

A didatização seria, nesse processo, como uma função antecipadora de algumas das ações de ensinar que acontecem em sala de aula. A construção do objeto a ser ensino passa pela antecipação da cena didática, exigindo a criação das atividades (a seleção dos textos e a construção das atividades de leitura, de estudo dos conhecimentos linguísticos, da produção de textos – oral ou escrito). Para isso, o professor-produtor do MD precisa pensar em diferentes procedimentos que envolvem diferentes instrumentos de ensino e de aprendizagem: “objetos, textos, fichas, exercícios, situações-problemas”88

ou outros recursos tecnológicos e midiáticos, como o computador, a TV, o DVD, o rádio, o jornal, a revista etc. para que quando estes objetos de ensino forem para a sala de aula cooperem para o desenvolvimento dos alunos e permitam com que eles consigam estabelecer as relações de significação entre o objeto de saber estudado e as ações sociais e culturais (SCHNEUWLY, 2009b).

Diante disso, o procedimento de organizar um objeto de ensino, elementarizando o objeto de saber para servir a propósitos didáticos, coloca em cena a necessidade do professor-produtor mobilizar, pelo menos como planejamento do trabalho de sala de aula, três conjuntos (um comum a qualquer disciplina do currículo escolar, e dois ligados diretamente à disciplina de atuação do professor que produz o MD) de instrumentos pedagógicos presentes em sua “caixa de ferramentas”. Neste momento ele mobiliza, complexificando, (re)organizando e (re)siginificando seus saberes sobre:

i. a prática docente, a atuação em sala de aula e as ferramentas comuns a qualquer disciplina e que são constitutivos institucional e materialmente da escola: o conhecimento do “tempo e do espaço da classe, incluindo os móveis; os instrumentos genéricos como a lousa, o retroprojetor, as fichas

88

de exercícios, os livros, os cadernos, os computadores”89, a TV, o DVD, o rádio, etc.;

ii. o conjunto de material escolar relativo ao desenvolvimento das atividades específicas da sua disciplina de atuação em sala de aula, permitindo aos alunos condições de manipular, observar, decompor, estudar, analisar e compreender o conteúdo desenvolvido , tais como: “livros didáticos, apostilas, materiais visuais e sonoros, cadernos de exercícios, fichas escolares, etc.”90

;

iii. as formas de apresentar verbalmente aos alunos o conteúdo do objeto de saber, permitindo com que eles compreendam as dimensões essenciais do objeto. Essas formas compreendem “o conjunto de discursos elaborados pela escola sobre o objeto de ensino, as maneiras de dizer, falando, apresentando verbalmente o objeto de saber através da lição”91

. Ou seja, é necessário que a elementarização do objeto de saber no MD seja guiada pela ideia da possibilidade de encaminhar o aluno para a compreensão do conteúdo e a consequente construção do conhecimento.

O professor em processo de formação continuada, especialmente na ação de produzir MD, movimenta esses três conjuntos de instrumentos pedagógicos – os da ordem material e os da ordem discursiva – para conseguir semiotizar o objeto de saber, tornando-o objeto a ensinar e objeto ensinado. Nesse processo, não é o professor que transforma o modo de pensar, de falar e de agir dos alunos, mas sim as condições que ele cria, discursivamente, para que os próprios alunos procedam à transformação. Dito de outra forma, a transformação ocorrida com o conhecimento dos alunos é resultado da movimentação e do alinhamento das atividades no MD e depois na atuação em sala de aula

89 « Le temps e l’espace de la classe dábord, y compris les meubles; les outils génériques que constitue le

tableau noir, le rétroprojecteur, les feuilles de papier, les livres, les cahiers, les ordinateurs. » (SCHNEUWLY, 2009b, p. 33).

90 « Manuels, enregistrements visuels ou sonores, cahiers d’exercice, affiches scolaires, etc. »

(SCHNEUWLY, 2009b, p. 33).

91 « L’ensemble des discours élaborés par l’école sur l’objet à enseigner, les manières de le dire, d’em parler,

que o professor faz quando utiliza das ferramentas didáticas que ele foi construindo ao longo de sua carreira.

Então, retomando o que dissemos no início desse item, há ações discursivas produzidas pelos professores que podem ser caracterizados como gêneros catalisadores que potencializam ações formativas de professores e alunos. Ou seja, a produção desses gêneros, ao mesmo tempo, favorece a construção do conhecimento por parte do professor, enriquecendo sua “caixa de ferramentas” profissionais, sendo gêneros para ensinar, como também impulsionam a produção do conhecimento pelos alunos, permitindo a eles mudanças no pensar, agir, falar, sendo gêneros a ensinar (GOMES-SANTOS e SEIXAS, no prelo)

Diante disso, resta nos perguntar como, ao produzir material didático, o professor faz uso das ferramentas de trabalho que construiu ao logo de sua carreira e, ao mesmo tempo, como o MD produzido (um instrumento que reúne ferramentas de trabalho do professor) pode transformar o trabalhador? Resposta a esse questionamento será buscada nos próximos capítulos.

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PONTO A PONTO, PASSO A PASSO: AS ESCOLHAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

Duas estradas se bifurcavam em um bosque amarelado e, infelizmente eu não podia caminhar pelas duas. Sendo eu um viajante, fiquei muito tempo ali olhando uma delas até tão longe que meu olhar se perdia numa curva da vegetação. Então, peguei a outra, também tão bela e satisfatória, talvez com uma intenção melhor, porque esta era gramada, esperando para ser aparada.92 O objetivo deste capítulo é apresentar as escolhas teóricas e metodológicas que regeram a geração e as análises dos dados de nossa investigação. Além disso, apresentaremos o pano de fundo de nossa pesquisa – o PDE 2007/2008 -, especificamente no que se refere às produções desenvolvidas na disciplina de Língua Portuguesa e conheceremos os professores participantes desta pesquisa.