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2 REDUCIONISMO E VISÃO INTEGRAL NA HISTÓRIA DO MUNDO

3.3 AS DIMENSÕES DO SER HUMANO COMO CATEGORIAS DE

3.3.1 Fundamentos identitários do ser humano: a condição humana

3.3.1.2 A trindade humana: do desenraizamento à unidade múltipla

A pergunta acerca de quem é o ser humano encontra no pensamento complexo uma resposta de integralidade: o ser humano é, a um só tempo, plenamente biológico e plenamente cultural, detentor da unidualidade originária que comporta a super e a hipervida (MORIN, 2002d, p. 52). Expresso dessa maneira, o ser humano é visto como aquele que conseguiu desenvolver a hipertrofia do “egoísmo” e do “altruísmo”, sendo capaz de provar tanto o êxtase quanto os ardores orgásticos e orgásmicos da embriaguez. O ser humano que tanto se perscruta é um ser plenamente biológico e cultural

A humanidade é consequência de processos trinitários justapostos. Incluem-se nesses processos os circuitos: indivíduo-sociedade-espécie, cérebro-mente-cultura; razão-afeto- pulsão. Esses circuitos elaboram o conceito de ser humano integral, em que a pluralidade dos elementos compõe a unidade e a unidade contempla a pluralidade que nela se forma. Não há mistura de realidades, assim como não há identificação substancial entre os termos. Há, sim, diferenças antagônicas que, por assim serem, estabelecem um processo de dialogia e de reestruturação criadora.

O circuito cérebro-mente-cultura expressa a ideia de que a humanidade se afirma como humanidade pela e na cultura. O cérebro humano (aparelho biológico dotado de competência para a ação, percepção, saber e aprendizagem) é componente sine qua non da cultura. A mente (mind), por sua vez, enquanto capacidade de consciência e pensamento, inexiste sem a cultura, pois a mente humana é uma criação que surge e se firma a partir da cérebro-cultura. Há um processo de retroação e intervenção da mente no funcionamento cerebral. “Há, portanto, uma tríade em circuito entre cérebro/mente/cultura, em que cada um dos termos é necessário ao outro. A mente é o surgimento do cérebro que suscita a cultura, que não existiria sem o cérebro” (MORIN, 2002d, p. 52-53).

O circuito razão-afeto-pulsão é uma tríade bioantropológica que se distingue do circuito cérebro-mente-cultura e decorre da concepção do cérebro triúnico de Mac Lean, adotada por Morin como ponto de partida, mas que só passa a ter sentido usual na perspectiva complexa, que não sobrepõe um elemento ao outro, mas os supõe. Nessa perspectiva,

O cérebro humano contém: a) paleocéfalo, herdeiro do cérebro reptiliano, fonte da agressividade, do cio, das pulsões primárias, b) mesocéfalo, herdeiro do cérebro dos antigos mamíferos, no qual o hipocampo parece ligado ao desenvolvimento da afetividade e da memória a longo prazo, c) o

córtex, que, já bem desenvolvido nos mamíferos, chegando a envolver todas

as estruturas do encéfalo e a formar os dois hemisférios cerebrais, hipertrofia-se nos humanos no neocórtex, que é a sede das aptidões analíticas, lógicas, estratégicas, que a cultura permite atualizar completamente (Ibid., p. 53).

A partir dessa concepção, percebe-se a integração entre animalidade e humanidade, uma integrada na outra. A teoria de Mac Lean é falsa na sua percepção simplificadora, quando a mesma superpõe os três cérebros, porém, torna-se viável e compreensiva na sua versão complexa do cérebro triúnico, que revela a integração cerebral humana da herança animal superada, mas não abolida: “o importante, na ideia de cérebro triúnico, não está na tripartição, mas na trindade que, complexa como no dogma católico, é uma mesmo sendo tripla, o que nos permite considerar o cérebro humano como um complexo:

Figura 8 – O desenvolvimento humano na lógica da complexidade

Fonte: (MORIN, 1999b, p. 104)

Não há sobreposição entre razão-afeto-pulsão. O que há é uma conexão complexa, a partir da qual a racionalidade não domina a afetividade e a pulsão. Inclusive a razão pode ser dominada pelas outras duas, mesmo no mais racional dos seus princípios (matemático, científico, filosófico). Mas aí, há também uma mobilização dos afetos e pulsões presentes nos sujeitos desses princípios, tais como a agressividade, a paixão etc. Há uma relação instável, permutante e rotativa entre as três instâncias. A razão é

uma instância concorrente e antagônica às outras instâncias de uma tríade inseparável, e é frágil: pode ser dominada, submersa ou mesmo escravizada pela afetividade ou pela pulsão. A pulsão homicida pode servir-se da maravilhosa máquina lógica e utilizar a racionalidade técnica para organizar e justificar suas ações (MORIN, 2002d, p. 54).

Para Edgar Morin, “O ser humano define-se, antes de tudo, como trindade indivíduo/sociedade/espécie: o indivíduo é um termo dessa trindade” (MORIN, 2003b, p. 51). Se o indivíduo é parte dessa tríade, então, as interações são elementos causadores que recaem sobre o próprio processo causante. Isso quer dizer que a sociedade é produzida pelas interações individuais e esta, retroagindo sobre a cultura, torna os indivíduos propriamente humanos. “Assim, a espécie produz os indivíduos produtores da espécie, os indivíduos produzem a sociedade produtora dos indivíduos; espécie, sociedade, indivíduo produzem-se; cada termo gera e regenera o outro” (Ibid., p. 52).

A complexidade humana é compreendida associada aos elementos que a constituem: “Todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana” (MORIN, 2002d, p. 54-55).

Figura 9 – A trindade complexa

Fonte: (MORIN, 2002d, p. 54-55).

Indivíduo

O indivíduo é reprodutor da espécie humana (enquanto realizado por dois indivíduos); a interação entre indivíduo produz a sociedade, testemunha da cultura; a espécie, por sua vez, vive para o indivíduo e para a sociedade. A complexidade humana é compreendida associada aos elementos que a constituem: “Todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana” (MORIN, 2002d, p. 55). A trindade indivíduo- sociedade-espécie, portanto, desenvolve uma relação dialógica, processo pelo qual o complementar pode tornar-se antagônico. Os termos envolvidos nesse circuito são meio e fim, ora assumidos na individualidade, ora em sociedade, ora como expressão da espécie.

O processo de hominização para Morin não acontece de forma unívoca, pois para ele a hominização não pode ser concebida apenas como uma mera evolução biológica, espiritual ou sociológica, mas como uma morfogênese completa e multidimensional, consequência das diferentes influências genéticas, ecológicas, cerebrais, sociais e culturais (1975, p. 65).