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2 REDUCIONISMO E VISÃO INTEGRAL NA HISTÓRIA DO MUNDO

3.4 INTEGRALIDADE, AUTOTRANSCENDÊNCIA E EDUCAÇÃO: A BUSCA DO

3.4.2 Autotranscendência: a „transcendência no limite da imanência‟

O pensamento de Edgar Morin é profundamente marcado pela relação entre a vida e a morte, entre o ganho vital e as perdas existenciais que estão presentes na experiência dos seres humanos no plano da imanência. É na relação entre as forças da vida que o pensamento complexo encontra o seu respaldo, pois é também sob esse alicerce que se baseia todo o seu projeto pedagógico. Trata-se, portanto, de um conjunto de ideias que acoplam a experiência individual vivenciada pelo autor às prospectivas e implicações dessa forma de pensar. O pensamento passa a refletir as convicções elaboradas acerca da transcendência humana que se introjeta na vida em forma de imanência.

Pensar a vida e pensar a morte é pensar o ilimitado nos limites da própria existência. É como que a vida fosse o limite e que o ilimitado fosse a projeção da construção objetiva e histórica da experiência humana. A vida e a morte fazem parte do mesmo habitat. O que caracteriza a vida também caracteriza a morte. A partida ou a chegada são apenas pontos diferenciados que convergem para um mesmo fim e para um novo começo. Não há chegada e não há partida. O que há é o conjunto de dimensões que se manifestam à medida que a complexidade vai sendo entendida nos seus aspectos dialógicos, hologramáticos e retroativos.

3.4.2.1 O amor

O pensamento se abre e abarca a vida. Uma vida que se faz e se desfaz pela própria composição e decomposição: “morrer de vida, viver de morte”, como dizia Heráclito. E uma dessas experiências de rejuvenescimento da existência é o próprio amor. A vida traz a experiência do amor, que faz parte da poesia da vida. O amor dá sentido à vida e é único porque é visto de forma complexa, aquilo que é tecido junto, assim como a tapeçaria que é tecida com fios diversos e originariamente diferentes (MORIN, 2003d, p. 123-124). O amor enraíza-se na nossa corporeidade, encontrando expressão no reencontro do sagrado e do profano, do mitológico e do sexual: “a questão do amor resume-se a essa possessão recíproca: possuir o que nos possui. Somos indivíduos produzidos por processos que nos ultrapassam e

que irão além de nós, mas, de certo modo, somos capazes de possuí-las” (MORIN, 2002f, p. 31). O amor é apresentado como mística, capaz de transportar o ser amado a um outro estado, que transpõe o desejo e supõe a exaltação e a adoração.

O amor revela a união de corpos como união de almas. A alma é a parte sensível do nosso espírito, é objetividade que não é imortal, mas é real. A partir disso, origina-se uma verdadeira „religião do amor‟ a partir da qual a vida mortal encontra o seu sentido e o amor torna-se o centro da vida, “a aventura de um mundo sem aventuras, o irracional sublime de uma sociedade racionalizada, o triunfo do ser mais profundo. Ele é a fonte viva, necessária e evidente, de qualquer vida pessoal” (MORIN, 2010, p. 319).

Em relação a Edwige, sua última esposa, Morin assim se expressa: “Eu não pude

amar senão lá onde a morte mesclava seu sopro ao sopro da beleza” (2010, p. 318). Ele acreditava que a objetividade do amor dependia de um luta subjetiva entre a vida e a morte. Edwige havia se tornado a sua grande poesia, o animus da sua anima, que incluía emoções e encantamentos. Havia entendimento e compreensão em profundidade. Na amizade e no amor havia o encontro identitário com a própria alma, com a própria plenitude.

O amor se manifesta na experiência da via poética, que não deve ser apenas lida ou recitada, mas deve ser vivida, assim como expressa o próprio Morin:

Compreendi que a poesia da vida encontra-se no amor, na ternura, na comunidade, na alegria, no jogo, e que era necessário fazer o possível para não se deixar aprisionar pela prosa daquilo que é obrigatório, forçado, necessário, sofrido para poder viver poeticamente. A vida é a alternância da prosa repetitiva e fria que nos coage e da poesia que nos aquece, inflama e nos faz unir os espíritos. A poesia da vida comporta também momentos de encantamento no coração do cotidiano, diante de uma pequena flor que brota na neve, de uma borboleta que volteia em estado de embriaguez, de um rosto visto de relance no metrô, da escuta de uma canção e, é claro, diante de qualquer bela música, que é poesia sem palavras (MORIN, 2010, p. 330). O amor se completa e se manifesta no êxtase: ápice da união entre a loucura e a sabedoria. O êxtase supera a sabedoria e a loucura. Nas palavras de Morin, o êxtase “é a experiência quase cósmica na qual não se é mais o mesmo, sendo mais do que si mesmo, na qual se é simultaneamente o outro e onde nos perdemos ao nos reencontrarmos” (Ibid., p. 332). Cria-se uma sabedoria espiritual, em que o encontro com o „divino‟ é humano e o encontro com o humano desperta a necessidade poética de ser um encontro místico, não necessariamente religioso.

3.4.2.2 - Sabedoria espiritual: a vida mística como mística da vida.

No decorrer da História o conceito de mística ficou reduzido às experiências religiosas. Tanto que ao abordar o tema sempre nos reportamos a uma mística restritiva, isto é, uma mística adjetivada pela objetividade da sua experiência. Portanto, falamos de mística

oriental, mística judaica, mística islâmica, mística budista, mística hindu, etc,.Tudo o que é

mística reduz-se a uma consideração especificamente religiosa ou de comunhão de planos diferentes que tocam de uma forma ou de outra o gênero humano.

No seu livro, “Meu Caminho” (2010), gerado a partir de uma série de entrevistas, Edgar Morin é perguntado por Djénane Kareh Tager se a definição de místico se aplicaria à sua pessoa. Em resposta, ele delineia um projeto de mística que desconsidera a „religiosidade salvadora‟ e concebe uma perspectiva de dimensão de espiritualidade puramente humana. Trata-se de uma mística humana e que, de certa forma, resume todo o seu pensamento acerca do que seria propriamente uma mística nos limites da imanência assim como ele mesmo afirma:

Se consulto o Petit Robert, eis como se define ali o misticismo: “união íntima com o princípio do ser”. Nos monoteísmos, esse princípio é Deus e o misticismo manifesta-se por meio de contemplações quase extáticas do Ser Divino, ou por uma profunda comunhão com Ele. Embora sem Deus, fico impressionado com as visões dos místicos: a comovente irmã Faustina, a freira polonesa que conversava com Cristo e a Virgem; Sabbataï Zevi, esse messias judeu do século XVII que realmente via as legiões de anjos. Sinto- me tocado por Teresa D‟Ávila, que teceu uma relação intensa de amor, inclusive no sentido físico do termo, com Jesus. Mas é a poesia mística de São João da Cruz que repercute profundamente em mim, quando ele evoca a “fonte obscura”: “Sua origem, eu ignoro, ela não tem nenhuma. Mas sei que todo ser tira sua origem dela, se bem que ela seja de sombras.” Ou então o que mostra os limites do pensamento: “Quanto mais alguém se educa, menos compreende o que é a névoa tenebrosa que faz resplandecer a noite. Eis por que aquele que a conhece permanece, entretanto, sem saber, o que ultrapassa a ciência como um todo.” Sim, sinto “misticamente” o momento no qual o conhecimento desemboca na ignorância, no qual o saber desemboca no mistério. Ao mesmo tempo, estou racionalmente convencido de que, quanto mais nossa ciência avança, mais ela se aproxima do Inconhecível. Mas não dou a esse Inconhecível o nome de Deus. Aqui, ainda, uno meu demônio da racionalidade com o do misticismo (p. 338-339).

A união do demônio da racionalidade com o demônio do misticismo gera, no pensamento de Morin, uma mística racional e uma racionalidade mística. Ali se desenvolve uma espécie de misticismo messiânico, fruto de um messianismo histórico e complexo que se tornou antimessiânico sem deixar de ser messiânico. Isso mostra que a mística ultrapassa as religiões clássicas e inaugura o misticismo nas religiões seculares, gerando novas formas de

culto, doutrinaa e salvação. Trata-se de uma relação que é mística pelo fato de possibilitar a reunião com o inseparável. Tudo o que é separado o é porque é inseparável; e tudo o que é inseparável se apresenta, objetivamente, como separado.

A razão tem seus limites e a mística tem suas razões! Minha racionalidade sempre me impediu de crer em um Deus revelado, em um Jesus que morre e ressuscita, em uma palavra divina revelada a Moisés e a Maomé. Jamais pude crer numa revelação. Nem mesmo no budismo, com sua crença de transmigração. Não posso acreditar nem mesmo no Deus dos filósofos, como no de Descartes ou no de Voltaire. Sou “spinozante”, no sentido em que Spinoza eliminou um Deus exterior ao mundo para colocar a criatividade na Natureza (MORIN, 2010, p. 342).

Um outro tipo de religião é concebido. Uma religião que não carrega promessas de salvação e que realizará a religação entre nós e a humanidade, nós e a Terra, nós e Universo: a religião da Terra-pátria. Trata-se de uma fé no palpite existencial da fé na fraternidade e na construção dessa Terra-pátria, muito bem expressada na tetralogia que guia todo o pensamento de Morin:

Figura 10 – Tetralogia da religação

Dúvida

Razão Religião Fonte: (MORIN, 2010, p. 352)

É perceptível, portanto, uma „fé‟ específica, marcada por uma racionalidade e pautada na busca, nunca na certeza. Uma fé que busca realizar na Terra-pátria tudo o que possa emancipar a própria condição humana. É sob a égide dessa fé que se pauta, inclusive, a superação da vida em forma de morte e a tentativa da morte em ser o pólo de renascimento da própria condição vital.

3.4.2.3 Vida e morte

A vida e a morte são categorias não apenas existenciais, mas, sobretudo, vivenciais do pensamento de Edgar Morin e, como veremos, toca sobremaneira o seu pensamento pedagógico. Segundo ele mesmo afirma (2010, p. 369), a sua existência se desenvolveu em ciclos de dez anos, cada um deles abrindo-se para novos renascimentos. E a grande experiência traumática de Edgar Morin é a morte da mãe que, segundo ele, o destruiu e o

lançou para uma vida de mágoas, tristezas, aspirações e dúvidas. Mas, então, o que é a vida e o que é a morte?

A vida é a junção de qualidades fundamentais da existência. Para que sejam objetivadas, essas qualidades se encontram com o nascer enquanto mistério ontológico: “o ser que nasce não nasce a partir de nada. Emerge ex autos e ex physis; enquanto indivíduo- sujeito, nasce ex nihilo. Não havia nada. Eu não era/não era nada. O ser que nasce não pediu para viver, mas logo que nasce, só pede para viver. Nenhum vivo quis viver; no entanto, todo vivo quer viver” (MORIN, 2002c, p. 438). O mistério da vida está atrelado ao desejo incessante de viver, mesmo que a própria condição vital tenha surgido a partir de elementos que não dependem necessariamente do sujeito vivente.

A morte vem do exterior e do interior. A morte vem do exterior quando está à mercê das desordens microfísicas, físicas e até biológicas que são capazes de atingir a existência humana; vem do interior, quando, a todo momento, as estruturas genéticas e individuais se anunciam enquanto potencialidade de degradação, pois o interior da máquina que é dinamicamente organizada está em constante processo de intoxicação e decomposição. “A morte vem daquilo que nega a morte. A complexidade extrema da organização viva a faz viver, isto é, lutar vitoriosamente contra a morte. Mas a extrema improbabilidade da complexidade constitui ao mesmo tempo uma condição de morte” (Ibid., p. 439).

A vida busca resistir à morte. A morte visa suplantar a vida. O rebento da vida é fruto das lutas contra a morte. Ao se opor à morte, a vida apresenta a oposição do biológico ao físico:

fisicamente, a morte é menos que nada, uma vez que com a morte nada se perde fisicamente no universo, nem sequer um elétron. Biologicamente (do ponto de vista da biosfera ou de um genos), há perda relativa: para um que se perca encontram-se dez. Existencialmente, do ponto de vista do indivíduo- sujeito, o ser e o mundo afundam-se no nada. A sua organização, o seu ser, o seu universo abatem-se com a morte. Significa que cada ser que nasce, se torna um cosmos, assume em si uma tragédia cósmica, aquela que o nosso cosmos vive lentamente: a morte do seu universo. O homem mal compreendeu, mal aprendeu o que era a morte, a sua morte, recusou-se imediatamente a acreditar; então, as suas mitologias atribuíram a

amortalidade ao ego, e depois as suas religiões de salvação conferiram mais

ainda: a imortalidade (MORIN, 2002c, p. 440).

Vida e morte são indissociáveis, apesar de serem profundamente inimigas. Mesmo sabendo que no fim é a morte que ganha por desintegrar a vida, ambas compreendem o que podemos chamar de vasos comunicantes da existência. Somente pelas vias do amor e da

comunhão é que é possível viver a dialógica entre a vida e a morte, dando sentido a vida e elaborando um hino constante de novos renascimentos e rejuvenescimentos das existências.

3.4.3 Educar para o sentido da vida: as implicações da (auto) transcendência para o