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Para desenvolver o nosso estudo acerca dos diferentes conceitos que se interpõem recorremos à via hermenêutica como método. A hermenêutica percorreu um longo caminho até ser reconhecida como uma via metodológica da compreensão. Historicamente, a hermenêutica é compreendida como a arte e a técnica da interpretação e suas respectivas regras. A aplicabilidade de tais regras acontecia sobremaneira nos textos de cunho clássico (hermenêutica literária), bíblico (hermenêutica bíblica) e legislativo (hermenêutica jurídica).

Mais do que processo interpretativo acerca da verdade, evocada sob a égide da verificabilidade e factualidade da ciência positiva, a preocupação da hermenêutica é a de compreender o encontro histórico entre o texto e o „sujeito compreendedor‟, entre a história, o contexto e a linguagem imbricados no discurso que se apresenta. Nesse sentido é que a compreensão é muito mais do que um dado científico da natureza que busca explicar. Ela é interpelada pela ciência do espírito, que busca compreender: “Compreender e interpretar textos não é um expediente reservado apenas à ciência, mas pertence claramente ao todo da experiência do homem no mundo” (GADAMER, 2008, p. 29). É a própria humanidade no seu contexto histórico que está envolvida nela, como parte integrante do seu próprio existir, mesmo que não se tenha uma compreensão sistemática e metodológica do que se possa denominar de Hermenêutica.

Trata-se de uma compreensão antecedida por uma pré-compreensão, que também é histórica. O encontro com o que deve ser compreendido acontece sob a existência de preconceitos e convicções que são colocados em questão. Trata-se de um encontro com o que nos é diferente, que gera diálogo, que não exige uma plena concordância ou uma plena discordância, mas exige uma atitude crítica, em que a totalidade do outro que se encontra diante de nós já se nos anuncia como um confronto de identidades.

Compreender não é dar razão ao texto que se nos apresenta, mas é ponderá-lo como algo que é diversamente pensado e que encontra respaldo na acolhida de quem com ele se encontra a fim de que haja uma compreensão mútua.

Quando procuramos compreender um texto, não nos deslocamos até a constituição psíquica do autor, mas, se quisermos falar de “deslocar-se”, devemos deslocar-nos para a perspectiva na qual o outro conquistou sua própria opinião. O que não significa nada mais que procuramos fazer valer o direito objetivo daquilo que o outro diz. Quando procuramos compreender, fazemos o possível inclusive para reforçar os seus próprios argumentos. É o que acontece já na conversação; mas se torna ainda mais claro na compreensão do escrito. Aqui nos movemos numa dimensão de sentido que é compreensível em si mesma e que, como tal, não motiva um retrocesso à subjetividade do outro. É tarefa da hermenêutica explicar

esse milagre da compreensão, que não é uma comunhão misteriosa das almas mas uma participação num sentido comum (GADAMER, 2008, p. 386-387).

Para Emerich Coreth (1973), a hermenêutica torna-se um problema fundamental por se apresentar conexa às diferentes questões de compreensão, desde a compreensão linguístico-bíblico- teológica, de onde deriva, até a compreensão no âmbito das ciências do espírito. Tanto a compreensão quanto a interpretação referem-se na sua essência a pressupostos cuja investigação e esclarecimento competem ao saber filosófico: “Dessa maneira, formulam-se questões de importância básica para a filosofia em geral, ou seja, para sua possibilidade e metodologia simplesmente” (p. 1). A partir dessa consideração, a hermenêutica

Significa declarar, anunciar, interpretar ou anunciar, interpretar ou esclarecer e, por último, traduzir. Apresenta, pois, uma multiplicidade de acepções, as quais, entretanto, coincidem em significar que alguma coisa é “tornada compreensível” ou “levada à compreensão”. Isso acontece em qualquer enunciado linguístico, que pretenda despertar uma compreensão, tornando algo inteligível. É o que sucede, principalmente, na interpretação ou esclarecimento de um enunciado talvez obscuro, de difícil compreensão, como, por exemplo, um texto histórico ou literário, cujo sentido não aparece imediatamente, mas deve antes ser tornado compreensível (CORETH, 1973, p. 1-2).

Coreth (1973) apresenta quatro estruturas básicas para a compreensão: a estrutura de

horizonte, a estrutura circular, a estrutura de diálogo e a estrutura de mediação. No que toca à estrutura de Horizonte, Coreth afirma que “toda compreensão mostra uma estrutura de horizonte” (p. 101). Não se pode compreender de imediato determinada realidade, mas somente pela mediação

de conteúdos singulares. Apesar dos limites da compreensão, o sujeito se depara com a totalidade de sentido. A compreensão, portanto, se dá pela aproximação. A aproximação da realidade do todo faz com que novos horizontes de compreensão apareçam. No intuito do nosso trabalho, os conceitos em questão apresentam-se diante da nossa singularidade que, por sua vez, dialeticamente fará um movimento de compreensão, determinando-se e condicionando-se um ao outro.

Na estrutura circular, “a compreensão realiza-se sobre o fundo de uma pré-compreensão, que procede de nosso mundo de experiência e de compreensão e é formada por ela, mas que traça uma vida de acesso de compreensão aos conteúdos de sentido que se abrem” (1973, p.102). A pré- compreensão sobre algum objeto passa a ser reelaborada, tornando-se já, a pré-compreensão de um outro momento. A perfeição da compreensão nunca existirá. No que toca à nossa pesquisa, sabemos dos limites da nossa compreensão acerca dos conceitos, no entanto tornamo-nos em disposição de análise e reformulações dialéticas dos nossos pré-conceitos e conceitos.

Assim, a compreensão se move numa dialética entre a pré-compreensão e a compreensão da coisa, em um acontecimento que progride circularmente, ou melhor, em forma de espiral, na medida em que um elemento pressupõe o outro e ao mesmo tempo faz com que ele vá adiante; um medeia o outro, mas continua a determinar-se por ele (CORETH, 1973, p. 102).

A estrutura de diálogo apresentada pela compreensão, refere-se à abertura ao outro, ser humano ou outras formas de compreensão, a fim de entender as suas palavras. Como diz Coreth,

no diálogo, mantemos nossa compreensão aberta, para enriquecê-la e corrigi- la. Isso, porém, só é possível olhando-se para a coisa que se há de compreender (...) A linguagem adquire seu sentido na coisa, mas esta não é dada sem mediação lingüística. Mostrada pelo enunciado lingüístico, nele é que se abre o sentido da coisa” (1973, p.102-103)

A quarta estrutura coloca-se a partir de elementos da mediação – daí o nome de estrutura de

mediação -, isto é, considera a diferenciação do mundo objetivo e do ser como realidade que

transcende o mundo objetivo. A compreensão é um acontecimento vivo que se expressa entre o sujeito, que não é puro e autônomo, e o objeto, que não é puro e isento de sujeito. A história e o mundo do sujeito o condicionam e o marcam de forma peculiar, uma vez que ele é identificado como objeto do seu mundo mesmo antes de ser sujeito.

É, porém, “objeto” de seu mundo, enquanto é “sujeito”, isto é, enquanto pelo conhecimento e compreensão tem um mundo, realizando-o por sua livre decisão e por sua atividade. Entretanto, em sua visão e maneira de compreender cada objeto já penetra a totalidade de seu mundo de experiência e compreensão. A partir dele, propomos perguntas ao objeto, que se nos abre sob determinados aspectos e perspectivas. Nosso “mundo” não é apenas um mundo determinado empiricamente e condicionado transcendentalmente e interpretado linguisticamente, logo já muitas vezes “mediado” (CORETH, 1973, p. 103).

Nesse sentido é que visualizamos os diferentes horizontes do nosso objeto de estudo, encarando-os como elementos comunicadores de compreensões presentes nas matrizes teóricas dos autores a que nos dispomos estudar. Através dos textos, percebemos a possibilidade do diálogo através da mediação da linguagem entre os sujeitos que se comunicam, a saber: o que pesquisa e o que é pesquisado, complementando-se em abertura dialética.

Uma vez que o nosso trabalho será eminentemente de pesquisa teórico-analítica, com leituras e interpretação das obras em questão, torna-se indispensável o uso de tais ferramentas no desenvolvimento pertinente do nosso objeto de estudo. Para tal fim, percebemos que o horizonte das obras de Edgar Morin, Paulo Freire e Leonardo Boff apresenta uma considerável extensão, de

tal forma que se torna necessário identificar as obras que mais interessam à nossa empreitada, isto é, as obras especificamente pedagógicas e com um recorte de tempo específico. Considerando o tempo que dispomos para executar a pesquisa, e considerando as diferentes fases acerca do itinerário teórico-intelectual dos autores, julgamos ser conveniente restringir o tempo e o número de obras estudadas. O que aqui nos dispomos perscrutar, portanto, não é apenas uma panorâmica do pensamento dos autores, mas uma análise do objeto identificado a partir da leitura do conjunto teórico das obras que se colocam.

No horizonte do pensamento complexo de Edgar Morin, julgamos por bem eleger aquelas obras que por primeiro o introduzem num novo caminho teórico intelectual como pensador da educação, uma vez que o seu itinerário intelectual é bastante diversificado, levando-o a se autodenominar “contrabandista do saber” e “onívoro cultural”. Num segundo momento, elegemos aquelas obras que nos servirão de suporte para a elas recorrer enquanto categorias importantes sobre as quais se sustentam os conceitos pedagógicos subsequentes.

Para o estudo do pensamento pedagógico de Edgar Morin, consideramos as obras que tocam a reflexão estritamente pedagógica, presente no recorte de tempo da década de 1990. Somente a partir do final dessa década é que Morin se engaja de forma mais direta no pensamento pedagógico. Mesmo sabendo que o seu pensamento pedagógico está ancorado nas obras que se seguem, é de suma importância saber que as mesmas estão ancoradas num edifício próprio de pensamento que tem o ápice da sua sistematização na publicação do último volume de O método, intitulado “ética”. Assim, debruçar-nos-emos sobre as seguintes obras de forma direta: A cabeça

bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento (2001); Os sete saberes necessários à educação do futuro (2002d); A inteligência da complexidade (2000) ; A religação dos saberes: o desafio do século XXI (2002a); Complexidade e Transdisciplinaridade: a reforma da Universidade e do ensino fundamental (2000b), que posteriormente foi relançado com o título de Educação e Complexidade: os sete saberes e outros ensaios (2007a). O estudo de tais obras, no entanto, não

nos impedirá de revisitar as bases epistemológicas que antecedem a produção das mesmas, munindo-nos de fundamentos para a investigação acerca do pensamento moriniano.

Apesar de muitos estudiosos compreenderem a diversidade de fases da formação intelectual de Paulo Freire, optamos por eleger aquelas obras genuínas que compreendem o seu retorno do exílio e a sua maturidade cronológica e intelectual, localizadas na década de 1990, e que compreende um período ampliador do seu construto epistemológico acerca da educação. Trata-se de um tempo de reaprendizagem da realidade brasileira, assim como, um tempo de amadurecimento de categorias que corroboram elementos educativos diretamente ligados à integralidade. Nessas obras é perceptível o discurso de um comprometimento político mais

concreto e, ao mesmo tempo, uma compreensão mais madura do sentido das utopias históricas. Dentre os mais diferentes escritos que fundamentam o universo teórico de Paulo Freire, debruçar- nos-emos sobre as seguintes obras: Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do

oprimido (1992); Professora sim, tia não: cartas de quem ousa ensinar (2003a); Política e educação (1997a); Cartas a Cristina: reflexões sobre a minha vida e minha práxis (2003b); À sombra desta mangueira (2006) e Pedagogia da autonomia (1997b).

No que toca ao pensamento de Leonardo Boff, temos consciência de que o seu horizonte teórico não forma uma sistematização pedagógica propriamente dita, uma vez que o seu horizonte epistemológico até o início da década de 1992 era sobremaneira teológico. Mesmo tendo direcionamento de cunho teológico, devido a sua formação acadêmica-religiosa, as obras de Boff apresentam um redimensionamento temático a partir do momento em que deixa as estruturas ministeriais da igreja católica e passa a desenvolver uma ação mais „secular‟ junto à academia e às diferentes frentes da reflexão teológica. Somente a partir de 1992 é que Boff reelabora o seu horizonte epistemológico e desenvolve um novo viés de categorias que vislumbram fundamentos coerentes para uma educação do terceiro milênio e que estão ligados especificamente a uma nova concepção de cosmologia, de espiritualidade e de teologia.

Dentre as mais diferentes obras de Boff, centrar-nos-emos nas seguintes: Ecologia,

mundialização e espiritualidade (1993); Ecologia: grito da terra, grito dos pobres (1995a), A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana (1997a); O despertar da águia: o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade (1998); Saber cuida: ética do humano (2012b); Ética da vida (2009c); Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito (2000a); Espiritualidade: um caminho de transformação (2001a); Ética e eco-espiritualidade (2003a); Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos (2009b); A opção Terra: a solução para a Terra não cai do céu (2009a); Cuidar da Terra, proteger a vida (2010); O cuidado necessário (2012a); As quatro ecologias (2012c).

Para atender a empreitada da nossa pesquisa, será construído um edifício de análise que estará estruturado em cinco capítulos subsequentes. O primeiro capítulo será composto, num primeiro momento, pela identificação de alguns dos fundamentos que compõem a reflexão filosófica Ocidental. A partir desses pensamentos, apresentaremos em que sentido eles podem ser induzidos a visões unilaterais e reducionistas do ser humano e da educação, limitando a experiência humana da integralidade. Dentre essas matrizes de pensamentos, consideramos: a ontologia clássica de Platão e Aristóteles, o pensamento medieval e religioso de Santo Agostinho e Tomás de Aquino, a construção racional do pensamento cartesiano, o empirismo de Locke e Hume, a filosofia transcendental de Immanuel Kant, o panlogismo hegeliano, o marxismo de Marx, o

positivismo de Comte e a psicologia de Freud. Mesmo sabendo que existem várias formas de superação dos reducionismos, elegemos as três formas apresentadas por Martin Buber, Karl Jaspers e Emmanuel Mounier como sendo as mais apropriadas para iniciar um olhar mais amplo acerca da integralidade, pois se trata de três visões que consideram a transcendência como elemento comum e inspirador para se chegar a outras concepções de integralidade.

O segundo capítulo tratará da educação e da integralidade no pensamento pedagógico de Edgar Morin a partir de três pontos fundamentais: a apresentação do paradigma da complexidade enquanto elemento fundante do pensamento de Edgar Morin, sobretudo no que toca à multidimensionalidade do conhecimento; a apresentação de alguns elementos antropológicos que fundamentam a integralidade do ser humano, sobretudo no que toca à sua identidade e às suas dimensões constitutivas, compreendendo-o muito mais como sujeito de uma transcendência horizontal do que propriamente de transcendência vertical; por fim, será apresentada a relação entre a integralidade, a autotranscendência e a educação, enfocando, sobretudo, a transcendência no limite da imanência e as suas implicações no processo de uma educação para o sentido da vida.

O terceiro capítulo trata de investigar como se dá a relação entre educação e integralidade no pensamento pedagógico de Paulo Freire, considerando a historicidade e a inconclusão como pontos de partida para uma educação integral, fazendo da leitura da palavra e da leitura do mundo um elemento da práxis, que vislumbra o humano universal, detentor de esperança e de autonomia. Em seguida, será feita a relação entre mundanidade e transcendentalidade como interfaces da transcendência no pensamento de Paulo Freire e, por fim, a relação entre integralidade e educação, profundamente marcada por uma pedagogia da presença e do diálogo pedagógico na perpectiva da emancipação e da inteireza do ser humano.

O quarto capítulo consistirá no estudo da Educação e da Integralidade a partir de categorias que entendemos ser nevrálgicas no pensamento de Leonardo Boff. Iniciamos considerando o pensamento pedagógico de Leonardo Boff a partir das categorias de fundamentação teológica. A elas somam-se as categorias e os conceitos que identificam o ser humano enquanto sujeito imerso em um novo paradigma que se anuncia: o paradigma ecológico. A partir desse paradigma é que se afirmam a ética humana e a solidariedade planetária; a seguir, trataremos das categorias que respaldam a integralidade a partir da compreensão de transcendência, sobretudo delineada pela sua compreensão de espiritualidade e de ethos humano; e, por fim, um terceiro aspecto que é a compreensão dos caminhos de uma educação integral, a qual tem como ponto de partida uma visão específica de espiritualidade que inspira o cuidado necessário como imperativo de um novo quefazer pedagógico.

O quinto capítulo, enfim, será a oportunidade de implementação conclusiva da nossa pesquisa. Trataremos de identificar e analisar os elementos que possibilitam a aproximação e/ou distanciamento dos conceitos dos autores em questão e em que medida a integralidade, respaldada pela categoria da transcendência, se faz presente no quefazer educativo de cada um dos pensadores, assim como, as devidas reflexões pedagógicas por nós fundamentadas nas categorias em questão.

2 REDUCIONISMO E VISÃO INTEGRAL NA HISTÓRIA DO MUNDO