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2 REDUCIONISMO E VISÃO INTEGRAL NA HISTÓRIA DO MUNDO

3.3 AS DIMENSÕES DO SER HUMANO COMO CATEGORIAS DE

3.3.1 Fundamentos identitários do ser humano: a condição humana

3.3.1.1 O enraizamento/desenraizamento do ser humano

O enraizamento/desenraizamento humano se dá de forma dupla: no cosmo físico e na esfera viva. Ao se situar dentro e fora da natureza, o ser humano se apresenta diante das condições que lhe são próprias, desencadeando um processo de identidade múltipla e que gera a unidade. Daí se dizer que o ser humano que hoje conhecemos é fruto de um intenso trajeto

de hominização, mesmo que recente no seu plano cronológico. O ser humano que temos é muito mais que os planos ou dimensões isolados. Um ser que não é explicado somente pela cosmologia, pela física ou pela biologia. É um ser que vai além, que abarca um processo de cultura no seu âmbito universal e singular e cria, a partir da esfera do espírito e da consciência, o seu próprio mundo, retroagindo sobre os processos míticos, racionais e técnicos, criando esses mesmos processos. Podemos dizer, então, que “estamos enraizados em nosso universo e em nossa vida, mas nos desenvolvemos para além disso. É nesse além que se dá o desenvolvimento da humanidade e da desumanidade da humanidade” (MORIN, 2003b, p. 50).

Nas suas obras pedagógicas, Morin reafirma a ideia de que o enraizamento/desenraizamento do ser humano é um processo que se especifica a partir de quatro condições: a condição cósmica, a condição física, a condição terrestre e a condição humana. Todas elas compõem o conjunto de uma aventura que começa com a cósmica, mas que perpassa cada uma das outras.

3.3.1.1.1 A condição cósmica

A reorganização das concepções de mundo é feita pela condição cósmica. O universo não é mais o conjunto perfeito de elementos ordenados. O cosmos deixa de ser expressão de plena ordem para se afirmar em desordem geradora (MORIN, 2002d, p. 48). A dispersão e a complexificação fazem parte da nova ordem. A ideia de estagnação pacata e ordenadora do mundo cai por terra. O cosmo se expande por ser o resultado da união de bilhões e bilhões de galáxias e estrelas. A Terra não passa de um minúsculo ponto no universo e as partículas do organismo humano são frutos dos primeiros segundos de existência do cosmos há aproximadamente quinze bilhões de anos.

A aventura do universo é algo no qual está engajado o ser humano. Esse universo que hoje se encontra com o humano enquanto elemento retroativo-gerador é um acontecimento ímpar, do qual jorraram luz, matéria, corpo, espaço, movimento e que é “arrastado numa aventura fabulosa de criação e de destruição; sem parar, apagam-se ou explodem sóis, congelam-se planetas; sem parar, reúnem-se fragmentos e poeira de astros mortos em espiral sobre eles próprios para gerar novos sóis e novas galáxias” (MORIN, 2003b, p. 26).

A cosmologia busca compreender o universo enquanto cosmos, isto é, uma desordem detentora de uma ordem oculta. A dramaturgia cósmica busca a compreensão do fato de que o universo seja algo diferente do simplesmente “nada”. Daí vem o primeiro ato, o ato “0”

(zero), o qual corresponde à impossibilidade da existência de algo a partir do nada. Mesmo a consideração de diferentes possibilidades de energias, positiva ou negativa, seria necessária a nulidade de energia no universo para que se pudesse conceber o nada como origem. O universo, “antes mesmo de assumir uma aparência, é quântico e relativista. Supõe-se desta forma, portanto, a preexistência das leis sobre a matéria e mesmo sobre o espaço-tempo, o que não é negligenciável” (ibid., p. 38).

Um outro ato é o da era dos quânticos, a saída da neblina do espaço-tempo. O começo é marcado pela indeterminação. O quântico é flutuante, assim como o tempo. O tempo passa a ser a medida da mudança. A separação do espaço-tempo em espaço e tempo tornou-se possível a partir da uniformidade projetada pelo espaço

O universo está em evolução em todas as suas regiões, mas a evolução mais grandiosa é a da sua geometria. O espaço se dilata. O universo está em expansão. Há uma correspondência unívoca entre idade e densidade do universo e também entre idade e temperatura. Um universo jovem é denso e quente. Um universo velho é diluído e frio (MORIN, 2002a, p. 39)

As diferentes concepções de mundo na história nos levam a afirmar que somos ao mesmo tempo filhos do cosmos e “ciganos” de um acampamento chamado mundo. Estamos ligados ao mundo e, ao mesmo tempo, dele nos afastamos para um ato de criação. A cultura e o espírito, o pensamento e a consciência, são as formas de apresentar a aproximação e o afastamento desse mundo que é perscrutado pelo ser humano.

3.3.1.1.2 A Condição física

A identidade física do ser humano perpassa as suas partículas, átomos e moléculas. A sua fisicalidade enquanto auto-organização emerge de uma relação físico-química que constitui a vida. O mundo físico do qual nasce o ser humano não se submete a ordens preestabelecidas e nem está inteiramente desordenado ou plenamente ao acaso. A condição física do ser humano acontece no mundo, perante o jogo da ordem/desordem, organização/desorganização, mediado pelas interações que acontecem no processo de existir.

Segundo Morin (2003b), se há uma lição a ser aprendida pelo cosmos é a de que as partículas dos átomos de nossas células apareceram nos seus primeiros segundos. Toda a composição de átomos e carbonos, as macromoléculas e todo o processo organizador do ser humano se fizeram presentes desde a primeira hora. Trata-se de uma composição físico-

química, complexa e auto-organizadora, detentora de qualidades e propriedades desconhecidas no mundo molecular:

Uma porção de substância física organizou-se de maneira termodinâmica sobre a Terra; por meio de imersão marinha, de banhos químicos, de descargas elétricas, adquiriu Vida. A vida é solar: todos os seus elementos foram forjados em um sou e reunidos em um planeta cuspido pelo Sol: ela é a transformação de uma torrente fotônita resultante de resplandecentes turbilhões solares. Nós, os seres vivos, somos um elemento da diáspora cósmica, algumas migalhas da existência solar, um diminuto broto da existência terrena” (MORIN, 2002d, p. 49).

3.3.1.1.3 A condição terrestre

O planeta Terra está localizado no cosmos. É a Terra uma das fontes primária para pensar o destino. Um destino que é meditado a partir de um grão de poeira cósmica onde emergiu a vida, a vegetação produziu oxigênio da sua atmosfera e os seres vivos constituíram uma biosfera eco-organizada e autorregulada. A Terra tem uma identidade, é singular e tem história. Há, nela, uma natureza física (geologia), uma natureza dos seus elementos (química), a natureza dos seus fósseis (paleontologia). Trata-se de um planeta que não apenas é visto, mas que começou a ser investigado, um planeta que não tem apenas superfície, mas também profundidade. Não é apenas estática, mas evolutiva.

Por muito tempo se acreditou que a origem do nosso planeta se devia à separação do Sol. Ela teria se formado como consequência da junção de detritos celestes, da junção de poeiras cósmicas e que, como consequência, gerou-se o movimento de formação do sistema solar. A partir das últimas décadas, emergiu a concepção de que a Terra é resultado de uma gama de detritos cósmicos juntados a partir de uma explosão solar.

“A Terra em gestação teria então se tornado o satélite do Sol recém-nascido” (MORIN, 2000c, p. 50). A dependência do Sol não tornou a Terra um planeta incompleto. Isolada e autônoma, a Terra obtém a sua autonomia a partir de sua própria dependência. A Terra “é um planeta que se tornou singular e solitário entre os outros planetas do sistema solar e os astros da galáxia. E foi nessa solidão singular que ela fez nascer algo de solitário e de singular em todo o sistema solar, provavelmente na galáxia, talvez no cosmos: a vida” (Ibid., p. 51).

As desordens e cataclismos, as erupções e terremotos, assim como os choques violentos que extinguiram a vida anterior, mostram a capacidade auto-organizadora e autoproducente do nosso planeta. A um só tempo os seres humanos são cósmicos e terrestres:

A vida nasceu de convulsões telúricas, e sua aventura correu perigo de extinção ao menos por duas vezes (no fim da era primária e durante a secundária). Desenvolveu-se não apenas em diversas espécies, mas também em ecossistemas em que as predações e devorações constituíram a cadeia trófica de dupla face: a da vida e a da morte (...) Como seres vivos deste planeta, dependemos vitalmente da biosfera terrestre; devemos reconhecer nossa identidade terrena física e biológica (MORIN, 2002d, p. 50).

A vida está enraizada na Terra. A relação físico-biológico-antropológica torna a Terra um sistema complexo. A Terra é comparada por Morin (2000c) a um pequeno cesto de lixo cósmico transformado não apenas num astro complexo, mas num jardim, o jardim humano. Nele, a vida se desenvolveu de forma líquida no mundo vegetal e animal. O ser humano, diante da Terra, é uma ramificação da ramificação da evolução de vertebrados, mamíferos e primatas, portadores das herdeiras, filhas, irmãs das primeiras células vivas. “Pelo nascimento, participamos da aventura biológica; pela morte, participamos da tragédia cósmica. O ser mais corriqueiro, o destino mais banal participa dessa tragédia e dessa aventura” (MORIN, 2001, p. 36).