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2 REDUCIONISMO E VISÃO INTEGRAL NA HISTÓRIA DO MUNDO

3.1 EDGAR MORIN: O ONÍVORO CULTURAL

Edgar Nahoum nasceu em 08 de julho de 1921, em Paris, França. Filho de uma família de ascendência judeu-espanhola que migrou para a França na primeira década do século XX e cuja liderança era exercida pelos seus pais Vidal Nahoum e Luna Beressi. Aos dez anos, perdeu a mãe, experiência que lhe introduzira na rede da vida sob o olhar da morte. Tratou-se de uma verdadeira turbulência interior, fato que marcou toda a sua vida e o todo o tempo esteve na sua lembrança. O silêncio e o mistério gerados em torno da morte de sua mãe acarretaram um prolongado „silêncio existencial‟, que só fora por ele comentado e

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Sempre que falarmos de autotranscendência, estaremos nos referindo ao conceito de transcendência horizontal compreendida a partir da concepção do filósofo francês Luc Ferry na sua obra “L‟Homme-Dieu ou sens de la

vie”, Paris: Grasset, 1996, e acenada pelo estudioso Jesuíta João Batista Libânio na sua obra “A religião o início do milênio. São Paulo: Loyola, 2002. Ferry, em especial, desenvolve uma contribuição acerca desses dois

conceitos: transcendência vertical considera em relação aos indivíduos que se refere às „realidades‟ superiores e exteriores, situadas acima do além do próprio ser humano e, à transcendência horizontal se refere à transcendência dos „outros homens em relação a mim‟ em que o próprio ser humano se apresenta como apelo à minha responsabilidade.

compreendido quando ele tinha dezenove anos, no início da Segunda Guerra Mundial, quando Morin se refugiou em Toulouse com outros estudantes.

A morte de sua mãe transformou integralmente a vida do pequeno Edgar, que era o filho único e em quem os seus pais depositavam toda a esperança de um futuro promissor. Todas as mudanças de idade se referiam a esse choque prematuro da sua existência, levando-o a nem mesmo acreditar na possibilidade de uma Transcendência verticalizada, principalmente no que toca à religiosidade, uma vez que ele jamais tivera alguma educação religiosa em casa. Desde pequeno o jovem era motivado às leituras mais profundas dos romances e histórias que lhe circundava, sendo introduzido logo cedo no contato com a literatura, a música, o cinema e as artes clássicas.

Aos quinze anos, em 1936, Edgar Morin já se sentia entusiasmado pela fraternidade política e pelo movimento da Frente Popular, oscilando entre a reforma e a revolução, vinda respectivamente da racionalidade cética e do messianismo. Por isso, procurou o que ele denominava de „terceira via‟, isto é, uma posição que tivesse para além da democracia burguesa e opondo-se ao comunismo e ao fascismo. Tratava-se de uma busca incessante pela sua verdade política. A Oposição ferrenha à hipocrisia comunista é superada quando o próprio comunismo demonstrou ares de esperança ao expulsar da antiga União Soviética as tropas alemãs da capital russa, em 1941. Entre 1942 e 1944 Edgar ingressa nas forças de resistência junto ao exército de combatentes franceses, assumindo, a partir desta época, o sobrenome Morin.

Edgar Morin é movido por uma curiosidade que toca os diferentes conhecimentos. A sua cultura começa a ser assimilada desde a tenra idade no gosto pela literatura, em especial Dostoiévski, pela sua mensagem de compaixão pelos humilhados e pelo sentido de complexidade humana. Antes dos vinte anos Morin já passeara pelos diferentes caminhos das artes e do contato com o espírito das tradições espirituais e religiosas, assim como, com o interesse em alguns filósofos, em particular Hegel que, para ele, “(...) é um pensador em movimento que se defronta incessantemente com as contradições para tentar ultrapassá-las e que me mostrava que a verdade reside na união de verdades separadas (...) a sua filosofia no devir me trouxe a fé na história, a fé no devir” (MORIN, 2010, p. 83). Mas também acompanhou os cursos de Bachelard e de tantos outros pensadores de sua época.

O gosto pela filosofia em Edgar Morin se justifica a partir da predileção que ele tinha pelos filósofos da antiguidade, em especial o filósofo do século IV a.C, Heráclito: “Hegel tenta encontrar uma síntese que supere as contradições; em Heráclito, a contradição é insuperável, fundamental (...) Eu mesmo me formei do modo heraclitiano, assumindo minhas

contradições entre fé e dúvida, razão e religião, no sentido laicizado em que emprego a palavra religião” (2010, p. 84). Trata-se de uma filosofia que está no fundamento e na expressividade do pensamento complexo de Edgar Morin.

Morin nega que haja um jargão que o identifique ser adepto de um pensamento específico. Ele se autodenomina onívoro cultural (1997a, p. 13), isto é, um pensador que é reconhecido pelo seu esforço em buscar saberes e relacioná-los na edificação de uma cultura sólida e condizente com o desenvolvimento da humanidade. Ele se recusa a aceitar um pensamento simplificador, que reduz e separa, e desenvolve as sementes do pensamento da complexidade, que inclui a compreensão da quantidade de unidades, diversidade de interações, incertezas, etc.

Em fevereiro de 1945, Edgar Morin casa-se com Violette e em 1946 publica o livro

“O ano zero na Alemanha”, que surgiu a partir das suas perturbações acerca do contexto pós-

guerra e das perspectivas de futuro para a Alemanha. Em 1951, abandona o Partido Comunista e, em 1959 faz uma crítica à sua trajetória e às suas posturas a partir das suas opções políticas e escreve o livro “Autocrítica”, no qual critica não apenas o comunismo stalinista, mas também todos os descaminhos da razão fundados na redução de um visão maniqueísta do mundo.

Quase que ao mesmo tempo que ingressa no Centro de Pesquisas Sociais (CNRS), é lançado em 1951, “O homem e a morte” é fruto de dois anos de trabalho e reflete aquele que é considerado por muitos como o livro mais significativo de Edgar Morin (Ibid., p. 124). Morin torna-se um sociólogo, pois, segundo ele “ser um sociólogo é ser capaz de pensar os fenômenos econômicos, sociais, psicológicos, culturais, religiosos e mitológicos em correlação e interação” (Ibid., p. 134). Vieram outros livros, como “O cinema e o homem

imaginário” e “As estrelas”, em 1956 e 1957, e “O espírito do tempo”, em 1962.

A partir de 1972, Morin se dedica essencialmente à formulação de uma „antropologia complexa‟ e a „o método‟, os quais são assumidos como um desafio da complexidade que “exige comunicação entre conhecimentos separados, exige, ao mesmo tempo, princípios de organização do conhecimento que permitam religar os saberes de maneira pertinente” (Ibid., p. 191). Da mesma forma, a reflexão do ser humano é assumida pelo intuito de religar os elementos que separam o homem biológico do homem cultural, muito presente na obra “A

unidade do homem”.

“O método” é a grande obra intelectual de Edgar Morin. Dele emanam as suas

reflexões e para ele se orientam todas as suas construções teóricas acerca da complexidade. A publicação dos seus seis volumes estendeu-se por cerca de trinta anos, entre 1977 e 2004, com

a publicação do primeiro volume “A Natureza da Natureza” e do sexto volume, “A ética”, respectivamente. Na elaboração desta que é o seu principal legado, assim se expressa Morin:

Sentia-me apaixonado pelo patrimônio planetário, animado pela religião do que religa, a rejeição do que rejeita, por uma solidariedade infinita que o Tao denomina o „espírito do vale‟ que recebe todas as águas que nele desembocam.

(...) Eu partia de uma constatação: em nossas escolas, em nossas universidades, certamente nos ensinam a compreender as coisas, mas elas são separadas, isoladas. Não somos ensinados a religa-las e, portanto, a enfrentar nossos problemas fundamentais, globais. Eu devia, então, elaborar um pensamento complexo, ou seja, uma forma de pensar não apenas as ciências, não apenas a filosofia, não apenas a política, mas, também, a vida cotidiana, a vida de cada um de nós (2010, p. 216).

A década de 1980 é marcada por uma profunda experiência humana, pois inaugurou- se um novo período em sua vida com a união com Edwige. A partir de “o método”, e ao mesmo tempo que ele, veio a elaboração de todas as outras obras. O segundo volume “A vida

da vida”; “Para Sair do século XX”, em 1980; “Ciência com consciência”, em 1982; o

terceiro volume de „o método‟, “O conhecimento do conhecimento”, em 1986; e, no mesmo ano, escreve um livro sobre o seu pai intitulado “Vidal e os seus”; em 1991, publica o quarto volume intitulado de “As ideias”; dez anos depois, 2001, é publicado o quinto volume “A

humanidade da humanidade”, antecedido por um mergulho subterrâneo do autor em si

mesmo e pela publicação de outras obras como “Pensar a Europa”, em 1987, e “Terra-

Pátria”, em 1993. Em 2004, é publicado “A ética”, que é o sexto volume de „O método”.

A partir de 1998, Edgar Morin dá início ao seu projeto de reforma da educação que implica uma também reforma de pensamento. O seu pensamento era escrever um Manual

pedagógico para estudantes, professores e cidadãos, mas acabou desencadeando uma trilogia pedagógica que se anuncia também como uma proposta de reforma de ensino: “A religação dos saberes”, “A cabeça bem-feita” e “Os sete saberes necessários à educação do futuro”.

A vida de Edgar Morin é um mister de experiência entre a sua face sombria e a sua face luminosa, assim como ele mesmo reconhece:

Amo sua face luminosa, mas sua face sombria pode ser cruel e atroz. A vida é um presente e um fardo, é, simultaneamente, a coisa mais horrível e a mais maravilhosa. A vida não tem piedade e pode ser de uma doçura infinita. A vida é algo inesperado que nos é concedido por algum tempo na Terra. Amo tudo o que exalta: o amor, a fraternidade, a comunhão, a dança, a festa. Tenho uma profunda necessidade de comunidade, de comunhão, sem dúvida relacionada ao imenso vazio que se seguiu ao desaparecimento precoce e

brutal de minha mãe. Filho único, senti a falta de irmãos e irmãs (2010, p. 309).

Especialmente nos últimos anos de sua produção teórica, Edgar Morin tem expressado de forma enfática a sua compreensão de uma transcendência horizontal a partir da qual passou a viver uma mística especificamente humana, pois sempre viveu tanto a união de corpos como a união de almas, uma experiência de morte e de vida em que acontece o êxtase amoroso. Tal êxtase se expressa, sobretudo, no amor às mulheres, por quem nutre uma estima e uma admiração de contemplação e fascinação, assim como expressa nas suas próprias palavras: “Eu sempre tive necessidade de sentir uma admiração ligada à fascinação. Vivi alguns grandes amores muito importantes, até o último, o mais profundo, o amor por Edwige, que posso chamar, agora que se perdeu, o amor da minha vida” (Ibid., p. 321).

Morin se casara três vezes que, segundo ele, foram três amores diferentes: “Violette, foi uma companheira no pleno sentido da palavra. Ela era estudante de filosofia e eu a levei para a Resistência (...) Johanne, a Negra, mestiça caribenho-quebequense em Montreal, e Edwige, a loira, de ascendência nórdica, em Santiago do Chile” (ibid., p. 322). E completa:

Kalil Gibran afirma que é na perda que se reconhece toda a profundidade de um amor. Edwige era minha alma, no sentido da citação de Jung: eu era o

animus que havia encontrado nela sua anima. Ela jamais deixou de ser

poesia para mim, pelas características de seu rosto, suas emoções, seus encantamentos. Havia sofrido tanto na vida, moral e fisicamente, que eu, que sempre amei mulheres que traziam consigo a dor de uma infância ou da própria vida, fiquei profundamente emocionado por tantos sofrimentos injustos, e ainda mais feliz pelas alegrias que podia lhe propiciar (...) Quando viajava, eu lhe telefonava ao chegar, do hotel, antes e depois da conferência, e na hora do jantar. Ela velava todo o tempo por mim e encontrava tudo o que me seria útil ou me daria prazer. Nesse sentido, para mim, o órfão inconsolado, ela se tornou uma “mãezinha”, como ela mesma costumava dizer. Ela não só tinha a candura e as pequenas manhas de criança, como, nos últimos anos, foi constantemente cuidada por mim, que lhe preparava as cápsulas, comprimidos e medicamentos diversos; ela se tornou, ao mesmo tempo, a minha filha” (Ibid., p. 327-328).

O amor à humanidade tornou Morin um místico messiânico: alguém que amou a própria vida com a esperança que surge de um “evangelho da perdição” que nos coloca o imperativo de nos tornarmos solidários e irmãos porque estamos perdidos. Os deuses que habitam a humanidade dela precisam para sobreviver e manifestar a sua graça. Mas essa manifestação não é estranha à objetividade, mas experiência subjetiva diante do propriamente objetivo. Mesmo quando se vê pensando em Edwige, Morin não abre mão do aspecto racional e objetivo da transcendência:

No Brasil, vi por três vezes, em lugares diferentes, um pequeno pássaro encantador, gracioso como ela, caminhando sobre as patas esguias e elegantes, e pensei, então que ou ela tinha se transformado em pássaro ou que me enviava uma mensagem por meio dele. Em minha mesa de trabalho, tenho uma foto dela que parece querer falar comigo. À noite falo com ela. Também escrevi-lhe diariamente durante quatro meses. Isso porque, curiosamente, sinto sua presença, como se meu eu arcaico acreditasse na existência de seu espírito ou fantasma, mesmo se, racionalmente, não possa acreditar nisso. Enfim, acredito nisso mesmo não acreditando... Sei que alguém pode viver com a quase presença do ser amado morto” ((Ibid., p. 365).

A vida e a história de Edgar Morin revelam uma trajetória de existência comprometida com o humano e dispersamente propulsora de desenvolvimento histórico. Ele, que começou pela literatura e pelo cinema, passeou pelo jornalismo, engajou-se na política, desenvolveu uma paixão pela filosofia e pela sociologia, tendo como fundamentos o olhar científico da complexidade e, em sua conjugação de caminhos, abraça a existência como educador. É por si mesmo um onívoro cultural que assume o sentido da vida a partir de duas faces: a que está ligada à curiosidade e ao conhecimento e a que está ligada ao amor, à amizade, à beleza, à alegria e aos sentimentos, por isso mesmo, quando perguntado qual a sua máxima de vida, Morin assim responde:

Que eu lembre, tenho catorze. Catorze mandamentos:

• O contrário de uma verdade profunda é uma outra verdade profunda (eu o retiro de Pascal e de Niels Bohr).

• O melhor dos mundos é também o pior (Deus e Satã são o mesmo).

• Tudo o que não se regenera degenera (o que quer dizer, também, que a certeza jamais é alcançada).

• Rir, amar, chorar, compreender. • Esperar pelo inesperado. • Lutar em duas frentes.

• Resistir à crueldade do mundo e à barbárie humana.

• Não sacrificar o essencial à urgência, mas obedecer à urgência essencial. • Devotar-se ao que propicia paixão e compaixão.

• Manter sempre alerta a razão na paixão e sempre presente a paixão na razão.

• Preservar a revolta na aceitação e a aceitação na revolta (o Muss es sein, es

Muss sein, de Beethoven).

• Amar o frágil e o passageiro. (“Amar tudo aquilo que não se verá duas vezes”, de Alfred de Vigny)

• “Pensar em aumentar a vida de seus dias muito mais do que os dias de sua vida” (de Rita Levi-Montalcini).

3.2 O PARADIGMA DA COMPLEXIDADE: A MULTIDIMENSIONALIDADE DO