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2 REDUCIONISMO E VISÃO INTEGRAL NA HISTÓRIA DO MUNDO

2.2 OLHARES PROSPECTIVOS DE ABERTURA À INTEGRALIDADE

2.2.2 Karl Jaspers: fé filosófica e modos do abrangente

Karl Jaspers, filósofo alemão, nasceu em Oldenburg (Baixa Saxônia), em 23 de fevereiro de 1883, e morreu em 26 de fevereiro de 1969 em Basiléia. Chegou à filosofia partindo da medicina, levando-o a afirmar que “a filosofia e a ciência não são possíveis uma sem a outra (...) A filosofia atua sobre as ciências de tal modo a tornar realmente presente o seu sentido íntimo (...) A atitude filosófica não pode ser idêntica nem antinômica ao pensamento científico” (REALE, 1991, p. 598).

O ponto de partida de toda a questão é “como nos chamamos no mundo?”, “ De onde

viemos”, “que somos”. Quem é este ser que se angustia e se emociona? Esse ser que produz

ciência, mas nem mesmo a ciência é capaz de compreedê-lo?

Jaspers abraça o ser humano na íntegra. Inaugura, com categorias próprias, uma filosofia da existência, completada por outros elementos que apontam para facetas da própria razão, possibilidade de racionalidade. Ele compreende a Filosofia como fé filosófica diferente da fé religiosa. A fé filosófica nos direciona a uma consciência que está ligada a alguma coisa, direcionada a um objeto, direcionada para algo. Quem está direcionado é o próprio sujeito. É ele quem direciona o objeto. A condição básica da consciência é ser sujeito, pois só assim se direciona a si mesma (JASPERS, 1968, p. 105).

É atitude natural do ser humano ter como realidade aquilo que se enxerga. Aquilo que é real é aparência para a nossa consciência. Aquilo que se torna real nós temos que ter consciência que sempre é aparência. Temos uma estrutura de pensar, que, por sua vez determina o que vamos captar. O que a gente percebe não quer dizer que seja a realidade em si. O que a gente considera como realidade é o que ela se aparece para nós, isto é, a percepção da realidade é sempre aparência.

A cisão sujeito-objeto é a causa da aparência. É esta cisão que nos faz perceber que não vemos a realidade em si, mas a aparêncida da realidade. Para Jaspers,

(...) não temos consciência de nós mesmos senão a partir do momento em que nos encontramos tendendo para objetos. Não há eu sem objeto, nem objeto sem um eu (...) Se eles são inseparáveis, qual o elo e unidade que os mantêm juntos? (...) Denominamo-lo o abrangente, conjunto de sujeito e objeto que, em si mesmo, não é sujeito, nem objeto. A dicotomia sujeito- objeto constitui a estrutura fundamental de nosssa consciência. Só ela permite que o conteúdo infinito do abrangente adquira clareza. Tudo que é traduz-se obrigatoriamente no abrangente da dicotomia sujeito-objeto (...) O que percebemos apresenta-se no tempo e no espaço, sob sua forma de realidade sensível; o que pensamos apresenta-se sob as formas do que é suscetível de ser pensado. Não “é”, portanto, em si mesmo; porém, é para mim, na dicotomia sujeito-objeto (1965, p. 37-38).

A compreensão da Transcendência em Jaspers passa pela compreensão das formas de manifestação do todo-abrangente, expressa por Jaspers na sua periechontologia, desenvolvida para significar as maneiras como o ser (o todo-abrangente) se apresenta. Para Jaspers, não é possível conhecer o ser em si. Resta contentar-se com as maneiras como ele se revela para nós. Segundo Röhr, isso acontece através de sete maneiras distintas: “facetas do ser manifestam-se no ser-aí (Dasein), na consciência geral (Bewusstsein überhaupt), no espírito humano (Geist), no mundo (Welt), na existência (Existenz), na transcendência (Transzendenz) e finalmente na razão abrangente (Vernunft)” (2003a, p.1).

Somente pelo pensamento filosófico é possível falar de algo que não se pode pensar senão pela via objetiva. “O filosofar significa, portanto, expressar-se nos moldes da objetividade para tocar em algo que por princípio não é objetivo” (Ibid., p.3).

No transcender “não conhecemos nada, mas caso consigamos, algo se torna mais claro em nós, mais certo de nós” (PuW 47). Não acrescentamos conhecimentos no transcender, mas provocamos transformação em nós. Torna-se impossível acreditar num ser objetivo definitivo ou em pura subjetividade (...) A nossa atitude em relação aos conhecimentos torna-se mais modesta: dependemos de um transcender em direção ao ser que em si, tanto na vivência quanto na sua possibilidade de expressão e comunicação fica aquém do ser (Ibid., p.3).

De forma sintética apresentamos cada um desses modos do abrangente para, em seguida, ancorados na reflexão de Röhr, compreender a concepção jasperiana de Transcendência enquanto uma das maneiras do todo-abrangente.

As maneiras do todo-abrangente são apresentadas a partir de duas divisões fundamentais (JASPERS, 1968, p. 105): uma primeira que separa o lado subjetivo do objetivo; e a segunda que separa as maneiras imanentes das transcendentes. O esquema abaixo, segundo Röhr (2003a), explicita esta divisão:

Figura 4 – Disposição explicativa dos modos do abrangente

o todo-abrangente o todo-abrangente que somos nós que é o ser em si mesmo

o imanente

o transcendente

razão abrangente

o laço em nós de todas as maneiras do todo-abrangente Fonte: (RÖHR, 2003a, p. 3)

• Nós na nossa imanência: ser-aí, consciência geral e espírito humano. • A existência na nossa transcendência.

• O mundo enquanto maneira imanente do todo-abrangente que é o ser em si mesmo (lado objetivo) e a maneira transcendente desse lado é a transcendência propriamente dita.

• A razão abrangente perpassa as demais como laço em nós que liga todas as maneiras do todo-abrangente.

Vejamos em que consiste cada um desses modos do todo-abrangente:

O ser-aí é afirmado como “vivência de uma vida em seu mundo sem reflexão sobre si mesma” (JASPERS, 1968, p. 107). É o estar-aí na realidade. Nesse ser-aí há mudanças externas e internas. Há limites, há vida, há morte, há realidade. Referimo-nos à existência enquanto algo restringido, corpo vivente, a interioridade da vivência (Ibid. 107). Numa perspectiva de reflexão filosófica, diz Röhr, “existe uma condição da aparência das formas da

ser-aí

consciência geral mundo

espírito humano

vida: o ser-aí como maneira do todo-abrangente, a vida vivenciada na sua interioridade, inteireza, singularidade e inexpressividade” (2003a, p. 4).

A consciência geral não é uma mera percepção da vida. Denominamos consciência geral a consciência comum a todos os seres humanos e que permite a validade geral de determinados conhecimentos (JASPERS, 1968, p. 106). Para Jaspers, “Participamos com a consciência geral de um reino de sentido existente e válido e alcançam com ela tudo que permite de alguma forma universalidade” (apud RÖHR, 2003a, p. 4). Na nossa subjetividade tem algo que é geral. Não se pode coincidir na percepção da realidade, mas coincide nos processos de pensamento. O ser humano tem a possibilidade de descobrir elementos que já lhe são válidos independentemente de tomar consciência ou não. No momento em que busco esclarecer a consciência individual, vou me remeter à consciência em geral. Para tomar consciência de si mesma, a consciência individual precisa da consciência em geral. As nossas vivências individuais não se esgotam.

O espírito humano “como maneira do todo-abrangente pode ser caracterizado como a força no homem, formadora de todo o pensar, sentir e agir, que visa criar totalidades (...) O espírito humano está presente como guia, atuando através da estruturação, articulação, organização; ele põe limites e cria unidades que Jaspers chama de ideias” (RÖHR, 2003a, p. 5). O espírito é o revelar-se no movimento do entender e do ser entendido (JASPERS, 1968, p. 108). O espírito humano é o movimento que desenvolve, encontra novas formas de pensamento sobre a realidade. É a capacidade humana de compreensão. Com o espírito humano entramos no mundo dos sentidos, buscamos apenas compreender o que não podemos saber. Diferente da consciência geral, “os conteúdos do espírito não têm validade geral. São formas temporais, subjetivas nunca sem um colorido individual, que expressam algo objetivo que vem ao encontro sem porém ser meramente forma” (RÖHR, 2003a, p. 5).

O mundo é o correspondente ao lado objetivo das três maneiras do todo-abrangente delienados até aqui. É “o todo-abrangente que não somos. Ele é o “segredo inacessível do ser- diferente” (Jaspers apud RÖHR, 2003a, p.5). A maneira que vemos o mundo é sempre limitada. Não podemos pensar o mundo como ele é. O mundo é a construção que nós fazemos dele. É o modo do todo-abrangente. Por dentro desse modo a gente pode se movimentar. No nosso ser-aí abrangente, diz Jaspers,

encontra-se uma origem que se situa no mundo, de tal forma como ele tivesse entrado no mundo. Consciência geral é a condição do aparecer do mundo para mim e abrange, assim, o mundo inteiro enquanto aparência. Espírito humano é o ser-no-mundo, plasmado em uma

totalidade, compenetração por ideias que afeiçoam o mundo, mas que não são derivadas dele (apud Röhr, 2003a, p.6).

A existência (Existenz) não é ser-aí, mas “poder-ser”. Eu não sou existência, mas possibilidade de existência. Eu não me possuo, mas vou ao meu encontro. Para Jaspers, a

existência é liberdade, não a que liga ao conceito de harbitrariedade do ser-aí, nem à da

unanimidade na exatidão da consciência geral, nem da fantasia criadora nas esferas do espírito humano. A existência é liberdade, mas não sem a transcendência pela qual se sabe presenteada (1968, p. 112). Para ser existência tenho que ter decisão. A existenz é o momento que livremente me comprometo com uma decisão. Uma decisão mesma é aquela que não se modifica todos os dias. A existência é liberdade de modo inapreensível. Como verdade mesma ela é infinita. É tarefa não para se cumprir num tempo, mas dela mesma que é infinita. Não é o ser individual que é existência, mas é o trabalho infinito que fazemos conosco. No momento que me decido, não estou no fim. A existência é chegar a ser “si mesmo” no tempo como um fazer-se presente do eterno. A coincidência da temporalidade com a eternidade acontece quando vou saber alguma coisa sobre mim mesmo. Aquilo que aparece na decisão não é algo meramente temporário. A “existência” só existe na comunicação entre existências, no ato de querer que o outro seja “existência”. A decisão é realizada no concreto, mas a origem da sua decisão é de outro plano. “Existência é a origem da realidade verdadeira, sem a qual toda amplitude e realidade do ser-aí iam desvanecer-se. Existência faz com que os conteúdos e substâncias do todo-abrangente imanente se tornem realmente falantes. O imanente somente se torna animado (beseelt) pela existência” (Jaspers apud RÖHR, 2003a, p. 7).

A transcendência é visualizada por Jaspers a partir de três maneiras: o transcender formal, as relações existenciais com a transcendência e, finalmente, a leitura das cifras da transcendência. “A forma inicial, em que o homem costuma se ligar à transcendência, é a tentativa de fixá-la em categorias objetivas do nosso pensamento” (RÖHR, 2003a, p. 9). Nesse sentido, “o transcender formal é a forma adequada de dissolver a nossa tendência de fazer transcendência palpável pra nós, algo que se determina em categorias, algo dominável com nosso pensamento, com atos ou rituais” (Ibid., p. 9).

A segunda forma de transcendência para Jaspers refere-se à relação existencial com a transcendência, “onde, na situação-limite12

, existência, partindo da própria origem, direciona-

12

Segundo Ferdinand Röhr, “situações-limite” são as situações em que o ser humano contata com sua origem atemporal. Nas Palavras do próprio Jaspers, assim é compreendido esse conceito que lhe é próprio: “Situações como de estar sempre em situações, denão poder viver sem luta e sofrimento, de assumir, inevitavelmente, culpa,

se a ela” (apud RÖHR, 2003a, p. 9). São apresentadas quatro dessas relações: teimosia e entrega, declínio e ascensão, a lei do dia e a paixão à noite, e a riqueza do múltiplo e do uno. “A vivência da relação com a transcendência se expressa em antinomias (...) Mesmo na mais profunda entrega à transcendência, ela não se revela na sua íntegra e definitivamente” (RÖHR, 2003, p. 10). Na busca da sua inequivocidade, acaba-se novamente na incerteza, na indeterminação.

A terceria forma é a leitura das cifras da transcendência. É a experiência de transparência da transcendência, uma forma de linguagem da transcendência:

É a experiência em que, por dentro do nosso ser-aí no mundo, captamos uma mensagem de transcendência, não de forma direta, mas em forma de cifra, indiretamente (...) A cifra, nesse sentido, nem pertence ao mundo objetivo, mesmo tendo ele como ponto de partida, e também não é a transcendência, pois essa na sua totalidade fica inacessível para o ser humano. ela tem, para Jaspers, uma função mediadora entre o imanente transcendente e o transcendente, entre existência e transcendência (...) A leitura das cifras da transcendência induz o homem a assumir a própria existência diante da transcendência com todas as consequências e responsabilidade (Ibid., p. 10- 11)

Por fim, a razão abrangente é a tendência em direção à união das coisas. É o vínculo que se faz realidade no tempo. O laço que une todas as maneiras do abragente. É a instância ponderadora, gerando elos em todos os modos do abrangente. A razão abrangente é um movimento que busca ser um laço, no sentido que nada pode cair fora do abrangente, articulando os seus modos entre si; usando a própria razão, podemos chegar ao ponto de que não podemos abrir mão da nossa existência. A razão abrangente inclui tanto o lógico quanto o não lógico. Ela não se fecha num sistema como compreensão total. Ela é existenz na abertura. É um fazer-se. Um crer descobrindo-se a si mesma em uma eternidade existente. Todas as tentativas de caracterizar a própria razão são insuficientes (JASPERS, 1968, p. 123ss). Há, aí, um movimento para o uno, contemplando tanto as coisas subjetivas como as objetivas. A última palavra é a união e não a divisão. Tanto no sujeito quanto no objeto existe um único movimento para a unidade – a razão abrangente. Diferente da razão limitada (do entendimento), onde se chega à compreensão pronta e acabada, a razão abrangente é ampliada, onde se contempla tudo o que faz parte do próprio ser humano. A razão abrangente

de precisar morrer, chamo situações-limite. Eles não se transformam, a não ser na aparência, eles são em relação ao ser-aí definitivo. Não as abrangemos com a vista, no nosso ser-aí não enxergamos nada atrás delas. Elas são como um muro, em que batemos, diante da qual fracassamos. Elas não podem ser transformadas por nós, mas podemos levá-las à clareza, sem porém explicá-las ou derivá-las de algo fora delas” (apud RÖHR, 2003, p. 8).

é o próprio filosofar: movimento em todos os espaços dos modos do abrangente, buscando a união, sem ater-se especificamente a um modo do abrangente (Ibid., p. 124).

2.2.3 O personalismo de Emmanuel Mounier: elementos de uma transcendência práxico-