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2 REDUCIONISMO E VISÃO INTEGRAL NA HISTÓRIA DO MUNDO

3.3 AS DIMENSÕES DO SER HUMANO COMO CATEGORIAS DE

3.3.2 As dimensões do ser humano: toques múltiplos de integralidade

3.3.2.2 Homo faber e ludens: trabalhador e lúdico

O ser humano se afirma além da razão e da loucura. Ele tem o selo homo sapiens e

homo faber: “Trata-se de um animal dotado de razão e que a aplica fabricando instrumentos,

desenvolvendo a técnica” (MORIN, 2003b, p. 116). Nisto, o binômio faber-ludens se expande a partir do fazer humano. Se existe algo de fundamental no ser humano é a sua capacidade inventiva, que inclui o pensar e o fazer. A dimensão racional se apodera das opiniões técnicas

mais ou menos elaboradas, possibilitando a inserção efetiva do indivíduo na reestruturação das formas de viver.

O espírito humano se abre à inventividade. A sua pertença ao mundo significa um processo de abertura existencial, através da qual a investigação e a curiosidade direcionam as práticas cotidianas ao encontro identitário com o mundo. Trata-se de um duplo sentimento de pertença: o de estranhamento e o de correspondência. Estar no mundo, num primeiro momento, desperta a consciência de que nada dele conhecemos apesar de a ele pertencermos. Sentindo-se estranho, o ser humano se sente impulsionado a superar tal distanciamento através da identificação e da pertença, isto é, quanto mais estranho pareça para a consciência humana o mundo, mais motivada fica esta consciência em identificar-se cada vez mais com o cosmo. Estranhamento e identificação com o mundo, portanto, fazem parte do processo inventivo do ser humano.

O processo de invenção se deve ao potencial de racionalidade e desenvolvimento técnico como forma de remediar as carências humanas. Para Morin (2003b), diferente dos outros seres vivos, o ser humano é limitado: corre em baixa velocidade, não sabe voar, não detém a capacidade de obter informações magnéticas e visuais, assim como os pássaros, etc. No entanto, isso não o isenta de elaborar para si estratégias artificiais que visam realizar os seus sonhos e ambições: a técnica.

A técnica experimenta um primeiro desenvolvimento explosivo no neolítico: depois, desenvolve-se de maneira plural, conforme as civilizações, pra dominar a matéria, controlar as energias, domesticar o mundo vegetal e o mundo animal, até o salto repentino e extraordinário, a partir do século XVIII, primeiro na Europa Ocidental, depois em todo o planeta, das técnicas controladoras e de energias cada vez mais potentes (vapor, petróleo, eletricidade, energia nuclear), de máquinas cada vez mais automatizadas e, enfim, de uma rede nervosa artificial disseminada pelo globo. A união da ciência e da técnica deu poder soberano sobre a matéria física e, breve, dará poder ilimitado sobre o patrimônio hereditário dos seres vivos. Assim, o ser menos provável, o mais desviante, o mais marginal de toda evolução biológica, tomou o lugar central, impôs a sua ordem ao planeta Terra e dispõe de um poder doravante, ao mesmo tempo demiúrgico e suicida (MORIN, 2003b, p. 41).

O Homo faber enquanto ser da técnica e do „fazer‟, encontra o seu equilíbrio no

lúdico, termo que indica não só o paradoxo e o contraditório, mas também o elemento mágico

e alegre que comporta o sentido do „fazer‟. É o fiel complemento do ciclo prático e das atividades integradas. O lúdico comporta a festa que liberta os impulsos inibidos e recria o próprio mundo, integrando „criação‟ e „re-creação‟. Nesse sentido, “a festa não afasta

provisoriamente o sapiens do seu próprio caminho, mas revela, exprime e alimenta sua natureza híbrida e extática” (MORIN, 1975, p. 181)

O binômio faber-ludens constitui a ludicidade no seu aspecto mais genuíno: o jogo. Além de ser uma característica antropológica, Morin (2003b, p. 130) considera o jogo como uma característica também presente nos animais, mesmo que desapareça no animal adulto. No humano, o jogo apresenta variações múltiplas e modos de apresentação, de tal forma que comporta a classificação em quatro tipos de jogos presentes em todas as sociedades: competição (agôn), azar (alea), fantasias/máscaras (mimicry), vertigem (ilinx).

O jogo é a aproximação do imaginário que explode em alegria e estética. É a forma de romper com o Sapiens, desmascarando-o e excitando-se, perpassando o ato lúdico e construindo uma relação de paixão, capaz de destruir os controles preestabelecidos do mundo empírico-racional.

O jogo cuja finalidade não é “séria”, comporta a sua própria seriedade no respeito às regras, na aplicação, na concentração e na estratégia. O universo lúdico pode comportar competições, mas elas estão dentro do jogo, que dá prazer e volúpia, inclusive na angústia. O jogo leva ao transe e existem intoxicados de jogo como de uma droga fatal. Pode comportar riscos, mas são riscos pelo prazer ou pela beleza do jogo. O grande jogo é o da vida, no qual se arrisca tudo para viver intensamente (MORIN, 2003b, p. 130-131).

O jogo da vida inspira a intensidade de suas práticas. Tudo o que se arrisca no jogo aponta para a estética da vida, e a vivência estética consiste no desenvolvimento do „jogo pertinente‟, que faz com que a estética se transforma em atitude diante das coisas. Uma atitude de consciência que participa de um espetáculo, de uma visão e de uma leitura feita pelos processos imaginários que geram a experiência do êxtase. Nesse sentido, a estética transforma-se em atitude humana de contemplação e de recepção das „belezas‟ existentes na própria condição humana.

Daí, podemos concluir com Edgar Morin que diz:

o ser humano não só vive de racionalidade e de técnica; ele se desgasta, se entrega, se dedica a danças, transes, mitos, magias, ritos (...) As atividades de jogo, de festas, de ritos não são apenas pausas antes de retomar a vida prática ou o trabalho; as crenças nos deuses e nas ideias não podem ser reduzidas a ilusões ou superstições: possuem raízes que mergulham nas profundezas antropológicas; referem-se ao ser humano em sua natureza (...) Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entre Homo faber, Homo

ludens, Homo sapiens e Homo demens. E, no ser humano, o

desenvolvimento do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético (MORIN, 2002d, p. 59).