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2 REDUCIONISMO E VISÃO INTEGRAL NA HISTÓRIA DO MUNDO

3.4 INTEGRALIDADE, AUTOTRANSCENDÊNCIA E EDUCAÇÃO: A BUSCA DO

3.4.1 Complexidade e transcendência: o ser humano é o limite

Muito se discute o fato se Edgar Morin considera no seu pensamento pedagógico a possibilidade de algum elemento ligado à Espiritualidade e à Transcendência. Como já pudemos perceber no desenvolvimento das suas ideias, ele resiste à possibilidade de considerar a Espiritualidade e a Transcendência nos moldes da revelação ou de uma realidade que transpõe a própria imanência. E essa consideração gera implicações profundas no seu pensamento pedagógico.

Ao considerar o pensamento pedagógico de Edgar Morin, Izabel Petraglia (2001) recorre à ideia de enraizamento e desenraizamento humano tão cara ao pensamento complexo. Nesse sentido, ela evoca a perspectiva antropológica da espiritualidade humana como

elemento importante para que se compreenda de forma inicial o que se possa conceber como dimensão espiritual do ser humano.

Mesmo não negando a espiritualidade como dado antropológico, Morin não concebe a espiritualidade na perspectiva da certeza, do „já-encontrado‟ e „ainda-não-revelado” ou do „certo absconditus‟. A linguagem assumida por Morin é uma linguagem de autotranscendência, capaz de reconhecer em todas as civilizações o caminho de conhecimento e ação: o modo simbólico-mitológico-mágico e o empírico-técnico-racional.

Devemos estar bem conscientes de que, desde o alvorecer da humanidade, encontra-se a noção de noosfera – a esfera das coisas do espírito -, com o surgimento dos mitos, dos deuses, e o extraordinário levante dos seres espirituais impulsionou e arrastou o Homo sapiens a delírios, massacres, crueldades, adorações, êxtases e sublimidades desconhecidas no mundo animal. Desde então, vivemos em uma selva de mitos que enriquecem as culturas (MORIN, 2002d, p. 28).

O foco do pensamento moriniano recai sobre a noologia enquanto produto da alma e da mente. Os mitos tomam força nas formas simbólicas da linguagem e assumem consistência no jogo antropológico das fantasias, dos sonhos e da imaginação. As ideias estão na base dessa relação com o mito, fundamentando as ações e as possessões das quais os seres humanos são protagonistas. Não há um nível „absconditus‟ a ser alcançado, mas há, sim, uma direta relação entre o que se acredita pela fé antropológica e o que se pensa pela inteligência. Mito e ideia, portanto, são responsáveis por diferentes e diversas reações do ser humano, fundamentando as emoções e os afetos. A possessão de ideias ou mitos conduz o ser humano a um estilo de fidelidade e de justificativa que pode levá-lo a agir em nome de um deus ou de uma ideia, pois “as crenças e as ideias não são somente produtos da mente, são também seres mentais que têm vida e poder. Dessa maneira, podem possuir-nos” (Ibid., p. 28).

Símbolo, mito e magia coabitam de forma complementar e antagônica. Esses termos carregam armadilhas. O signo e o símbolo evocam uma relação linguística em que o primeiro, aponta para uma distinção forte entre o que é propriamente a realidade e realidade designada, e o segundo, evoca a relação forte entre a própria realidade e a realidade designada. O signo indica, o símbolo evoca a presença e a virtude do que é simbolizado.

Nisso, o símbolo é fruto do que há de mais verdadeiro no espírito humano: a capacidade indicativa e evocativa da linguagem. O símbolo afirma uma relação de identidade com o que é simbolizado, suscita o sentimento de presença real, gera contiguidade, analogia, imbricação e envolvimento (1999b, p.171-173). Trata-se da função reveladora do verdadeiro

sentido da linguagem que não suscita apenas a presença ou o envolvimento, mas busca compreender e revelar a verdade que está contida na realidade simbolizada.

O mito suscita a interligação linguística, pois evoca uma realidade discursiva. O mito é uma forma simbólica com autonomia, pois o seu discurso comporta, produz e se alimenta dos símbolos. Mas o mito ultrapassa a linguagem simbólica. Mesmo encadeando símbolos, o mito cria uma sequência imaginária e histórica, isto é, não apenas decifra símbolos, mas também tece um conjunto simbólico, imaginário e real. Os deuses não passam de projeções „animistas‟ dos fenômenos naturais, dispondo do poder sobrenatural: “Certos deuses desenvolverão a divindade de maneira gigantesca até que, depois de mutação mitológica, Um Deus Ciumento elimina os demais deuses, subordina espíritos e demônios e institui o monoteísmo (MORIN, 1999b, p. 179).

A magia, por sua vez, tem o poder de intervenção a partir de ritos próprios em que se fazem presentes o desejo, o temor, a sorte, o risco, o acaso etc. A função dos símbolos na

magia é trazer a realidade simbolizada para que haja uma operação específica sobre ela; na

magia, percebe-se a existência mitológica dos duplos e dos espíritos, a partir dos quais as forças sobrenaturais são invocadas sobre os representantes do poder sobrenatural ou sobre dublês; a magia pode conter a ideia de sacrifício enquanto realidades detentoras de verdades mitológicas fundamentais.

Símbolo, mito e magia, portanto, subentendem-se uma nas outras. O símbolo alimenta o pensamento mitológico, a magia alimenta-se do pensamento simbólico-mitológico-mágico.

deve-se unir essas três noções num macroconceito para que cada uma atinja a sua plena realização; em contrário, o símbolo permanece um estado de espírito; o mito, uma narrativa legendária; a magia, um abracadabra” (MORIN, 1999b, p. 183).

Ao considerar o conjunto desses elementos, Morin embarca em uma análise da fé como “o mais intenso fenômeno psicocultural, podendo operar a cura ou a morte” (PETRAGLIA, 2001, p. 97). E então desenvolve uma intensa crítica à religião, em especial às religiões da Salvação. Para ele, as religiões não passam de formas históricas de mitologia e de magia. As religiões da Salvação se baseiam na ideia de morte/renascimento e exaltam um Deus do sacrifício. A religião faz frente à morte e aponta verdades. Nesse sentido, religião e verdade caminham juntas:

Toda evidência, toda certeza, toda posse possuída da verdade é religiosa no sentido primordial do termo: religa o ser humano à essência do real e estabelece, mais do que uma comunicação, uma comunhão. Pensávamos poder opor radicalmente convicção religiosa e convicção teórica, somente a

primeira parecendo de natureza existencial. De fato, a Fé das grandes religiões dá segurança, alegria, liberação; a Verdade da Salvação garante a vitória da Certeza sobre a dúvida e dá Resposta à angústia diante do destino da morte. Contudo em virtude do sentido reconhecido aqui ao termo “religião”, pode haver um componente religioso de adesão às doutrinas ou teorias, inclusive científicas; componente religioso ligado à natureza profunda do sentimento de verdade (MORIN, 1999b, p. 147).

O princípio de religação com a verdade pertence tanto à religião quanto à racionalidade da evidência científica. Ambas carregam ideias-chaves que produzem o sentimento de êxtase e satisfação, gerando o sentimento de unidade e ordem, de plenitude e êxtase. As diferentes doutrinas, religiosas ou científicas, corroboram o encontro com a verdade delineada pelo ser humano como sendo apropriada para os determinados fenômenos ou estilos de vivência. Isso faz com que o sentimento mítico-religioso se faça presente nas diferentes formas de concepção da verdade, tratando-se muito mais de uma forma de conceber a forma imanente do que propriamente uma forma transcendente.

A segurança e a insegurança inexistiriam sem o sentimento humano que alimenta essas possessões „divinas‟. A gênese da crença e do sentimento de plenitude está em cada um que acolhe ou rechaça essas forças de possessão. O mito, o rito, a magia e a religião geram um sentimento de segurança e compromisso em nível exterior e interior. Na exterioridade, cria-se uma ritualidade que outra coisa não é senão o estabelecimento de um compromisso interno, no espírito humano, com as suas próprias fantasias e contradições.

Acerca dessa discussão, Izabel Petraglia (2001, p. 106) assim reproduz a resposta de Edgard de Assis Carvalho, um dos maiores estudiosos da complexidade:

Aqui a gente precisava ter mesmo a noção do que é essa visão espiritual, porque dimensão espiritual não necessariamente pode pressupor um ser divino, mas ela pode pressupor uma ideia de transcendência, que não necessariamente se identifica com a divindade. Ela pode ser identificada, mas não necessariamente. Acho que na história do sapiens, desde o paleolítico até hoje, houve uma preocupação com a ideia de transcendência, mas a secularização da cultura, os processos históricos de secularização fizeram com que essa existência transcendente fosse identificada com o ser divino. Aí é que está o problema. Por isso talvez a sabedoria indígena seja mais múltipla, porque a ideia de transcendência na filosofia indígena, me permito usar esse termo, mostra que há cosmogonias que estão fora das ordens materiais, que estão em domínios imateriais, que se chama espírito, que se chama Deus. O que a secularização da cultura fez? Cometeu um ato contra ela mesma e contra o sujeito, foi acreditar que essa dimensão era, necessariamente, ligada a uma divindade, a quem a humanidade e o indivíduo estão integrados (...) A dimensão espiritual no paradigma da complexidade, acho que é esse outro lado. Ela é o poético, ela é o mítico, o mágico, o imaginário que todos nós temos.

Nesse mesmo espírito de discussão, conclui Morin:

A verdadeira novidade nasce sempre de uma volta às origens. O objetivo que permanece fundamental na poesia é o de nos colocar num estado segundo, ou, mais precisamente, fazer com que esse estado segundo converta-se num estado primeiro. O fim da poesia é o de nos colocar em estado poético (2002f, p. 43).