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CAPÍTULO 1: UNIVERSIDADE E O MUNDO DO TRABALHO: as diferentes

1.3 A UNIVERSIDADE E O MUNDO DO TRABALHO NO BRASIL

Ao se ter como referência o quadro supracitado, verifica-se que, diferentes concepções de trabalhos produzirão diferentes concepções de universidade e, portanto, diferentes funções sociais para esta, pois a universidade constitui-se historicamente como a instituição responsável pela formação de profissionais para o mundo do trabalho e, concomitantemente, pela produção de conhecimento. Moll e Sevegnani (2006) afirmam que:

[...] O mundo do trabalho, como temática e campo social, atravessa a vida universitária e a interpela, seja pela função social que a universidade desempenha e pelas necessidades prementes de alunos e alunas, seja pelas mudanças vividas neste campo em função da revolução tecnológica ou pelos próprios processos vividos pelos docentes como trabalhadores de instituições de ensino. (MOLL; SEVEGNANI, 2006, p. 07).

Entende-se o trabalho enquanto produtor de cultura e, portanto, de humanização do homem. Nessa perspectiva marxista, o trabalho constitui-se como categoria fundamental no processo de formação do homem. A cultura seria, portanto, o resultado da ação humana na natureza, com objetivo de atender às suas necessidades por meio do trabalho. Segundo Del Roio (2005),

[...] É somente por meio da aprendizagem que o produto do trabalho se transforma em conhecimento acumulado e em forma específica de apropriação da natureza, ou seja “cultura”. Outros primatas têm a capacidade de alterar o ambiente em seu benefício, assim como formas rudimentares de linguagem, mas não têm a capacidade de arbitrar sobre o ambiente, ou seja, de criar representações e projeções que configuram um conhecimento específico na natureza que é a “cultura”. (DEL ROIO, 2005, p. 15).

Segundo esse autor, vale destacar esse longo processo de redefinição da produção de conhecimento, principalmente do conhecimento científico, no contexto do capitalismo moderno, pois esse “[...] conhecimento científico é apropriado e convertido em tecnologia segundo os interesses privados do capital e não do trabalho e da humanidade”, ao que finaliza, afirmando que, nesse contexto, “[...] a ciência é meio de anulação de saberes e de exploração do trabalho do homem” (DEL ROIO, 2005, p. 23).

Nesse contexto de “crise da ciência” produzida pela “crise do capital”, impõe-se para a universidade do mundo todo um desafio de reinventar-se, de inserir-se no centro dessa dualidade construída pelo capital entre trabalho e educação, como um elo fundamental no processo de reconstrução dessa relação no processo de produção do conhecimento científico na sociedade contemporânea.

No Brasil, a concepção de universidade presente na legislação tenta incorporar essa problemática. A Constituição Federal (1998) destaca, em seu art. 207, que “[...] a universidade goza de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Essa prerrogativa legal de autonomia e da indissociabilidade constitui-se como condição imprescindível para a produção do conhecimento em uma sociedade capitalista.

Segundo a Constituição Federal de 1988, em seu art. 6º, “[...] são direitos sociais a

educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência

social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010)” (grifos do autor). Ao passo que, mais à frente, em seu art. 205, que trata da educação, explicitamente, afirma que “[...] a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e

incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (grifos do autor).

Existe, portanto, na legislação brasileira uma concepção de educação, em tese, voltada para o “pleno desenvolvimento da pessoa” com a “qualificação para o trabalho”, condição essa que não se apresenta concretamente nas experiências educacionais brasileiras, onde podem ser encontradas tentativas isoladas de aproximação em algumas experiências no Ensino Médio, por exemplo, o Ensino Médio Integrado, assim como algumas experiências na universidade, conforme é possível observar na experiência da Universidade do Trabalho, Universidade Tecnológica e Universidade do Movimento Social.

Em outros termos, entende-se que a concepção de educação, explicitada no texto da legislação brasileira, induz a compreendê-la como uma formação, voltada para o exercício da cidadania e para o mundo do trabalho, mas que também não se revela nas políticas educacionais, pois a separação entre educação e trabalho explicita uma concepção de cidadania burguesa liberal, sustentada no campo do direito legal e fragilizada diante da objetividade do mundo do trabalho, uma vez que, como mostra Mészáros (2005, 2009), não pode ocorrer à universalização da educação sem a universalização do trabalho, considerando o que ele caracteriza como “crise estrutural do capital”.

As universidades, portanto, precisam lidar com essa realidade. Enfrentam as instabilidades da crise provocada pela quebra da indissociabilidade entre educação e trabalho, assim como as consequências internas dessa fragmentação no processo de desenvolvimento de sua função social. Romano (2006) acrescenta que:

[...] Quem trabalha na universidade pública – professores, estudantes, funcionários – tem consciência de que a instituição pertence ao Estado democrático de direito e deve obedecer às normas de convívio estabelecidas na Constituição política. A universidade pública se define pelo seu âmbito estatal ou nada significa. No estado de direito, a vida das pessoas é regulada por leis e não pelo arbítrio desta ou daquele dirigente político, setor social ou partido. Seu alvo é o de buscar o bem, a verdade, a beleza, em todos os aspectos da vida humana. Com as ciências, as artes, os serviços sociais, ela cumpre o papel de ajudar o povo brasileiro na busca de uma vida digna, ética, bonita. (ROMANO, 2006, p. 18).

Esses aspectos revelam a grande fragilidade da universidade diante das investidas tanto do Estado quanto da lógica da gestão gerencial do capital propriamente dito. A universidade financia-se com os recursos do fundo público para a manutenção e a expansão de suas atividades, a fim de cumprir a sua função histórica de formar os profissionais que a

sociedade precisa e, ao mesmo tempo, de autônoma, no sentido de produzir conhecimento científico.

A contradição revela-se na origem desse recurso que, mesmo originando-se do fundo público, quase sempre, vem condicionado às metas estabelecidas por organismos exógenos, seja o Estado, braço jurídico do capital, ou mesmo as empresas, braço produtivo do capital. Essa condição se manifesta não apenas nas estratégias de gestão administrativa e financeira da universidade, mas também nas atividades do ensino, na pesquisa e na extensão, ou seja, na produção do conhecimento. Contudo, segundo Romano (2006), a universidade possui uma função social muito maior, uma vez que:

[...] A universidade forma indivíduos para as mais diversas áreas de pensamento. O universo humano é o seu horizonte. Ela serve às comunidades locais no mesmo impulso em que serve a comunidade nacional e internacional, e vice-versa. Toda universidade digna deste nome não se limita ao tempo e ao espaço da imediatez. Ela realiza a passagem do singular ao universal e permite aos cidadãos de uma cidade perceber seus problemas e esperanças em nível cósmico. Para isso, o requisito é a plena liberdade, a força crítica assegurada para mestre, pesquisadores, alunos. Instituição mantida pela vida civil, se a universidade permite que parte de seus quadros não chegue ao seu fim, a investigação e o ensino livres, ela trai a sua missão, para a qual impostos são recolhidos de toda a cidadania. (ROMANO, 2006, p. 20-21).

Essa luta pela “liberdade” e pela “força crítica”, de seus pesquisadores, citada por Romano (2006), constitui-se como o grande desafio das universidades brasileiras, conforme já citado. O desafio de efetivar a sua função social de absorver as demandas da sociedade e dar- lhes resposta por meio das suas atividades acadêmicas torna-se cada vez mais difícil.

Esse não é um conflito recente. Na origem do projeto da universidade brasileira duelaram, nesse campo, além dos católicos, os liberais e os positivistas, na perspectiva de imprimir um caráter laico e público à universidade.

Romano (2006) destaca um ponto que interessa muito nesse debate, que tangencia a ideia de universidade e o mundo do trabalho, onde diz que:

[...] Para que se possa substituir o “reinado dos bacharéis”, inadequado ao mundo do presente – mundo da técnica, da indústria, da lavoura assentada sobre a ciência – a arma fundamental é a escola. Precisamos de escolas técnicas e científicas, onde se ensinem as leis da natureza e os meios de aproveitá-las a nosso favor, já que o “reinado exclusivo das letras”, consagrando a supremacia da imaginação sobre todas as outras faculdades que compõem a razão, ao mesmo tempo em que constituiu um permanente perigo nacional, é ainda um embaraço, uma causa positiva de entorpecimento para todos os ramos da atividade industrial. (ROMANO, 2006, p. 23-4).

Essa ideia de Romano (2006) enfatiza a defesa por uma concepção de universidade verdadeiramente plural, livre das amarras do “reino exclusivo das letras”, que se entende como os cursos de formação exclusivamente teórica (infere-se que essa crítica direciona-se para os cursos de bacharelado e licenciatura). Essa concepção reforça a necessidade de inserção da universidade no campo de formação técnica e científica ligada às atividades industriais.

A universidade caminha em um contexto complexo de cumprir a sua função social de formação para o trabalho sem atender estreitamente às prerrogativas do “mercado de trabalho”, que busca subjugar a universidade ao pragmatismo e ao imediatismo em que o “fazer” está em detrimento do “saber”. Essas antitéticas perspectivas estão presentes nas ações dessa instituição. Ou seja, a partir dessa perspectiva forja-se na universidade uma dualidade diante do trabalho, pois se estabelece um debate entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre os que “fazem” e os que “pensam”, ou entre os que dirigem e os que são dirigidos.

Antunes (2009), ao discutir “a interação crescente entre trabalho e conhecimento científico”, elabora “uma crítica à tese da ‘ciência como principal força produtiva’”. Ele afirma que:

[...] Em vez da substituição do trabalho pela ciência, ou ainda da substituição da produção de valores de troca pela esfera comunicacional, da substituição da produção pela informação, o que vem ocorrendo no mundo contemporâneo é maior inter-relação, maior interpenetração, entre as atividades produtivas e as improdutivas, entre as atividades fabris e as de serviços, entre atividades laborativas e as atividades de concepção, entre produção e conhecimento científico, que se expandem fortemente no mundo do capital e de seu sistema produtivo. (ANTUNES, 2009, p. 134).

Faz-se necessário, portanto, analisar a interrelação ou a interpenetração entre trabalho manual e trabalho intelectual, fundamentados em Marx e Gramsci, para se compreender como vem ocorrendo historicamente essa relação, nesse momento histórico marcado pela hegemonia do capital sobre o trabalho. Conforme afirma Antunes (2009, p. 261), “[...] sob o sistema de metabolismo social do capital, o trabalho que estrutura o capital, desestrutura o ser social”.

Oliveira (2009) destaca que existem implicações da produção do conhecimento científico na divisão social do trabalho por meio da universidade. Para o autor:

[...] Formar o especialista tornou-se sua “especialidade”, e hoje é o técnico que preenche a maior parte dos bancos escolares superiores. Assim, ela desempenhou importante papel na divisão social do trabalho sistematizando e institucionalizando a forma em que a produção e a reprodução do conhecimento aumentavam o fosso entre o trabalho braçal e o trabalho intelectual. (OLIVEIRA, 2009, p. 12, grifos do autor).

Portanto, essa discussão entre universidade e trabalho, referenciada nas produções teóricas sobre trabalho e educação, apresenta, também, outra perspectiva destacada por Santos (2005), destacando que, além de todas as mudanças enfrentadas pelas universidades nas suas diversas crises (de hegemonia, de legitimidade e institucional)13, o “fim de um projeto de país”, ou dos Estados nacionais, também, teria influenciado profundamente as universidades (SILVA, 2005). Pois:

[...] A passagem do conhecimento universitário para o conhecimento pluriversitário é, portanto, um processo muito mais amplo que a mercantilização da universidade e do conhecimento por ela produzido. É um processo mais visível hoje nos países centrais, ainda que também presente nos semiperiféricos e periféricos. Mas tanto nestes como nos países periféricos teve lugar, ao longo das duas últimas décadas, uma outra transformação altamente desestabilizadora para a universidade, uma transformação que, estando articulada com a globalização neoliberal, não tem apenas dimensões econômicas nem se reduz à mercantilização da universidade. É, pelo contrário, uma transformação eminentemente política. (SANTOS, 2005, p. 45).

É essa transformação política, produzida pelo neoliberalismo14, que Santos (2005) identifica como “o fim do projeto de país”, pois, segundo ele, a universidade “[...] esteve sempre ligada à construção do projeto de país, um projeto nacional quase sempre elitista que a

13 A crise de hegemonia que é presenciada, atualmente, nas universidades, se caracteriza para além da dimensão economicista e produtivista, pois o apelo à prática teve, a partir dos anos sessenta, outra vertente, de orientação social e política que consistiu na inovação da “responsabilidade social da universidade”, perante os problemas do mundo contemporâneo, uma responsabilidade raramente assumida, no passado, apesar da urgência desses problemas e apesar da universidade ter acumulado sobre eles conhecimentos preciosos (SANTOS, 1995). Já a crise de legitimidade se manifesta no momento em que se torna socialmente visível que a Educação Superior e a alta cultura são privilégios exclusivos das elites sociais. Quando a procura da educação deixa de ser uma reivindicação utópica e passa a ser uma aspiração socialmente legitimada, a universidade só pode legitimar-se quando atender às demandas que lhes são socialmente apresentadas. De todas as crises da universidade, a crise institucional (crise de financiamento) é, sem dúvida, a que tem assumido maior intensidade, nos últimos anos. Fundamentalmente, porque nela se refletem tanto a crise de hegemonia quanto a crise de legitimidade, em parte, porque os fatores mais marcantes de sua exacerbação pertencem, efetivamente, ao momento de crise cíclica do desenvolvimento capitalista, que Santos (1995) denomina “período do capitalismo desorganizado”.

14 Segundo Chauí (2013), “[...] com o encolhimento do espaço público dos direitos e a ampliação do espaço privado dos interesses de mercado, nascia o neoliberalismo, cujos traços principais podem ser assim resumidos: 1- desativação dom modelo industrial de tipo fordista [...]; 2- O desemprego estrutural [...]; 3- O deslocamento do poder de decisão do capital industrial para o capital financeiro [...]; 4- No Estado de Bem-Estar Social, a presença do fundo público sob a forma de salário indireto ( os direitos econômicos e sociais) desatou o laço que prendia o capital a força de trabalho (ou ao salário direto) [...]; 5- A transnacionalização da economia reduz a importância da figura do Estado nacional como enclave territorial para o capital e dispensa as formas clássicas do imperialismo – colonialismo político-militar, geopolítica de áreas de influência etc. – de sorte que o centro econômico, jurídico e político planetário encontra-se no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial, que operam com um dogma: estabilidade monetária e corte do déficit público; 6- A distinção entre países de Primeiro e Terceiro Mundo tende a ser acrescida com a existência, em cada país, de uma divisão entre bolsões de riqueza absoluta e de miséria absoluta, isto é, a polarização de classe surge como polarização entre opulência absoluta e a indigência absoluta (CHAUÍ, 2013, p. 124-6).

universidade devia formar”, resquício objetivo dos desdobramentos das políticas econômicas neoliberais adotadas neste país, conforme citado no início deste texto.

1.4 TRABALHO E EDUCAÇÃO: diferentes perspectivas de análise da função social da