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A verdade fundamental: há um só Deus (8:4-6)

1 Coríntios 8:1-

2. A verdade fundamental: há um só Deus (8:4-6)

No tocante à comida sacrificada a ídolos, sabemos que o ídolo de si mesmo nada é no mundo, e que não há senão um só Deus. sPorque, ainda que hã também alguns que se chamem deuses, quer no céu, ou sobre a terra, como há muitos deuses e muitos senhores, 6todavia, para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós também por ele.

Dentro do "conhecimento" daqueles "entendidos" de Corinto, incluía- se o fato óbvio (para eles) de que a idolatria local nada significava: o

ídolo de si mesmo nada é no mundo (v. 4). Paulo concorda prontamente

e também endossa as outras premissas do grupo: não há senão um só

Deus. É igualmente verdadeiro, diz Paulo, que há alguns que se chamem deuses, mas "todos os deuses dos pagãos não passam de ídolos”.12 Isso

é fundamental, de modo que jamais devemos permitir que alguém nos desvie dessa base.

Se, aceitássemos simplesmente o ditado dos gnósticos coríntios, não

há senão um só Deus, poderíamos argumentar que, na verdade, tanto

eles como nós estamos adorando o mesmo Deus, mas com outros nom es e de maneiras diferentes. No ambiente sincretista e universalista, m uito comum na atualidade, o escândalo da

exclusividade na mensagem do cristianismo é rejeitado ou gentilmente posto de lado.

Examinando, porém, o versículo 6 com mais cuidado, vemos Paulo asseverando: todavia, para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as

coisas e para quem existimos; e um sd Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós também por ele. E o apóstolo acrescenta que, embora

muitos se chamem deuses, quer no céu, ou sobre a terra, como há muitos

deuses e muitos senhores (v. 5); ele está se referindo categoricamente a Deus, o Pai (e precisamos observar nessa frase a riqueza da teologia

neotestamentária sobre a paternidade de Deus) e a Jesus Cristo, atribuindo-lhes a mesma autoridade e posição. Eles têm funções diferentes, claramente expressas nas preposições gregas: o Pai é aquele

de (ek, no grego) quem vêm todas as coisas; isto é, ele é a fonte e a

origem; ele é também o alvo (eis, no grego) e o propósito de nossa existência. Jesus Cristo é o agente e o mediador; ou seja, aquele pelo

(dia, no grego) qual tudo e todos vieram a existir.

O substituto mais natural de "nós" nesta passagem é "os cristãos": conseqüentemente, Jesus é a ponte para Deus, ele é o intermediário, o mediador, o caminho até Deus.13 Esta é a verdade fundamental da qual Paulo não se afasta. Existem diferanças elementares e inconciliáveis entre Deus, que é Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e as divindades adoradas em todas as outras religiões, embora muitas semelhanças periféricas possam ser citadas.

O que dizer, então, dos muitos que se chamam deuses e senhores no céu e na terra? A perspectiva bíblica parece consistente e clara. Eles são meras "cópias" (eidola), isto é, não têm nenhuma existência real. Desse modo, a palavra "ídolo" tanto designa a imagem feita de madeira ou pedra, como a divindade venerada nessa idolatria. Em Isaías lemos: "Todos os artífices de imagens de escultura são nada, e as suas coisas preferidas são de nenhum préstimo."14 Segue-se a esse trecho uma extensa lista de artífices que se unem para formar um ídolo: o ferreiro, o carpinteiro, o madeireiro, o padeiro, o cozinheiro — todos trabalhando com o mesmo pedaço de madeira da floresta, para depois se prostarem para adorar aquela matéria sem vida. Tudo isso é manifestamente irreal e desprovido de verdade espiritual: é nada.

E essa não é toda a história por trás da perspectiva do Antigo Testamento acerca da idolatria. Há uma passagem interessante em Deuteronômio, que relata o seguinte:

Mas, engordando-se o meu amado [isto é, Judá] deu coices; engordou-se, engrossou-se, ficou nédio,

e abandonou a Deus, que o fez, desprezou a Rocha da sua salvação.

Com deuses estranhos o provocaram a zelos, com abominações o irritaram.

Sacrifícios ofereceram aos demônios, não a Deus; a deuses que não conheceram,

novos deuses que vieram há pouco

dos quais não se estremeceram seus pais.15

Os deuses dos cultos pagãos não são deuses no sentido pleno da palavra; são simplesmente ídolos, isto é, objetos de adoração feitos pelo homem. Mas por trás dessas "cópias" (eidola) encontram-se forças espirituais, chamadas "demônios" na citação acima.

De maneira nenhuma tal conceito pertence exclusivamente ao Antigo Testamento. Em 1 Tessalonicenses 1:9, ele é, pelo menos, sugerido; e, em Gálatas 4:8-9, é declarado expressamente quando Paulo relembra aos cristãos: "Outrora, porém, não conhecendo a Deus, servíeis a deuses que por natureza não o são; mas agora que conheceis a Deus, ou antes sendo conhecidos por Deus, como estais voltando outra vez aos rudimentos ("poderes espirituais" na BLH) fracos e pobres, aos quais de novo quereis ainda escravizar-vos?" Eles podem ser "fracos e pobres", mas ainda são "poderes espirituais".

É evidente que o culto aos ídolos é tanto irreal como muito real. O próprio Paulo o afirma em 10:19-20: "Que digo, pois? que o sacrificado ao ídolo é alguma coisa? ou que o próprio ídolo tem algum valor? Antes digo que as coisas que eles sacrificam, é a demônios que as sacrificam, e não a Deus; e eu não quero que vos tomeis associados aos demônios." Esses "demônios" não são idênticos àquilo que os adoradores pagãos acreditam serem seus "deuses”. Envolver-se com qualquer tipo de idolatria é abrir a porta à influência dos demônios, dos agentes de Satanás que desejam ardentemente a nossa adoração e são grandes mestres da fraude e da destruição.16

Essa perspectiva tem uma aplicação pastoral significativa para os dias de hoje. Os cristãos que já se envolveram em práticas não-cristãs de adoração geralmente necessitam de uma ministração específica na área de demonismo. O próprio Paulo não alimenta nenhuma ilusão: existe uma grande possibilidade de membros maduros de uma comunidade cristã ainda estar em contato com demônios.17 Isso não quer dizer que os cristãos podem ser possuídos por demônios, uma possibilidade que, teológica e pastoralmente, parece letal. O ministério para a libertação de tais forças demoníacas precisa ser, portanto,

assumido por cristãos sábios, experientes e informados. Ademais, toda uma rede de forças espirituais parece estar operando sorrateiramente sempre que homens e mulheres estão à procura de satisfação, realização, identificação e (especialmente) contato com "o divino", por mais vaga que seja sua definição de Deus. Se existe um caso de confrontos com ideologias rivais que competem com o Senhor Jesus Cristo pela a fidelidade de uma pessoa, precisamos estar prontos para exercer um ministério direto para libertar essa pessoa de tal escravidão. Os prováveis resultados do envolvimento demoníaco são confusão, falta de objetividade e uma submissão passiva a outras forças nas decisões pessoais. Tal ministério faz-se especialmente importante onde houve participação em cultos ligados ao misticismo oriental, ou associados a técnicas de lavagem cerebral, ou diretamente envolvidos com práticas de ocultismo, ou misturados ao uso de drogas.

3. A consideração suprema: o irmão pelo qual Cristo morreu (8:7-13)

Entretanto, não há esse conhecimento em todos; porque alguns, por efeito da familiaridade até agora com o ídolo, ainda comem dessas coisas como a ele sacrificadas; e a consciência destes, por ser fraca, vem a contaminar-se. sNão é a comida que nos recomendará a Deus, pois nada perderemos se não comermos, e nada ganharemos se comermos. 9Vede, porém, que esta vossa liberdade não venha de algum modo a ser tropeço para os fraco s.10Porque, se alguém te vir, a ti, que és dotado de saber, à mesa, em templo de ídolo, não será a consciência do que é fraco induzida a participar de comidas sacrificadas a ídolos? nE assim, por causa do teu saber, perece o irmão fraco, pelo qual Cristo morreu. UE deste modo, pecando contra os irmãos, golpeando-lhes a consciência fraca, é contra Cristo que pecais. 13E por isso, se a comida serve de escândalo a meu irmão, nunca mais comerei carne, para que não venha a escandalizá-lo.

Novamente retornando à questão dos alimentos oferecidos a ídolos, Paulo comenta que há cristãos em Corinto que ainda não captaram a verdade fundamental por ele explicada há pouco: porque alguns, por

efeito da familiaridade até agora com o ídolo, ainda comem dessas coisas como a ele sacrificadas (v. 7). Tais pessoas pensam que os ídolos são reais e,

portanto, capazes de contaminar aquele que come. Eles mantiveram por muito tempo um grande contato com a idolatria; por isso, Paulo

não discute o assunto, mas defende com muita força a necessidade de o irmão "forte" (isto é, que tem conhecimento) não agradar a si mesmo, mas considerar o irmão mais fraco. Tendo dito isto, Paulo expõe inequivocamente o princípio espiritual: Não é a comida que nos

recomenda a Deus, pois nada perderemos se não comermos, e nada ganharemos se comermos (v. 8).

O homem "fraco" nesta discussão é o irmão hipersensível a tais assuntos; ele é um cristão superlegalista e rigorista, cuja tendência é evitar tudo o que seja duvidoso, para não prejudicar seu relacionamento com Deus. Paulo expressa claramente o desejo de que essa pessoa "fraca" cresça, tomando-se "forte". Mas, nem por isso, tenta persuadi-la a assumir tal posição. A carga recai sobre o homem "forte", liberto de convenções humanas e preconceitos: "você deve limitar sua

própria liberdade voluntariamente." Assim, o forte é que deve

reajustar-se para ajudar o fraco, e não o contrário.

Os argumentos acumulados por Paulo nos versículos 9 a 13 são muito fortes. Primeiro, a liberdade cristã, quando acentuada, pode tomar-se uma'pedra de tropeço para o cristão fraco, causando o seu enfraquecimento na fé, e não o seu desenvolvimento, podendo também levá-lo a agir de forma totalmente contrária ao que a sua consciência lhe permite, no estágio em que se encontra (v. 10). De fato, o cristão é assim induzido a uma ação que não é baseada na fé, e, para Paulo, tal ato é pecaminoso.18

Em segundo, lugar, devemos sempre fazer uma pausa para contemplarmos cada companheiro cristão como o irmão ... pelo qual

Cristo morreu (v. 11), e não apenas como um bom irmão da igreja ou

até mesmo como um membro dedicado de nossa comunidade. Quando nos disciplinarmos até esse ponto, tudo faremos, dentro do nosso alcance, para evitar qualquer ação que venha a destruir o irmão

fraco.

Em terceiro lugar, quando pecamos contra um irmão dessa maneira e ferimos a sua consciência fraca, estamos na realidade pecando contra

Cristo (v. 12).19 É fácil ignorar a presença real de Jesus em nosso irmão.

A conclusão inevitável dos ensinamentos de Paulo neste capítulo é que fazer "coisas duvidosas" apenas por exibicionismo nunca é uma demonstração da verdadeira liberdade cristã. A proposta de Paulo no versículo 13 resume perfeitamente o conteúdo do capítulo: E por isso,

se a comida serve de escândalo a meu irmão (no grego, literalmente, "faz

tropeçar"),20 nunca mais comerei carne, para que não venha a escandalizá-

lo. Meu irmão: esta é a ênfase que os defensores do conhecimento

Outro tema importante é a questão da consciência, três vezes enunciada no texto (vs. 7, 10 e 12). Em todas as ocorrências essa palavra chave vem acompanhada do adjetivo "fraca" (no grego,

astfienes), e refere-se obviamente ao cristão cuja vida em Cristo, depois

de salvo do paganismo, ainda era relativamente curta. Tal pessoa teria experimentado uma mudança realmente dramática no estilo de vida. O estilo de vida coríntio envolvia uma porção de atividades sociais, tanto recebendo como dispensando hospitalidade. Bruce cita um exemplo extraído de um papiro da época: "Chaeremon o convida a jantar à mesa do Senhor Serápis no Serapeion (templo de Serápis) amanhã, dia 15, às 9 horas."21

Devia haver um contraste enorme entre "agir como um coríntio" e "ser um cristão". As decisões concernentes à hospitalidade e às relações sociais em geral deviam ocupar um tempo considerável. Quanto menos frágil a consciência cristã, mais amplo o campo do testemunho cristão. Quanto mais sensível a consciência, maior a tentação de se recolher no gueto cristão ou, pelo menos, na sua mentalidade.

Havia, portanto, uma necessidade crucial de que as consciências dos cristãos fossem devidamente instruídas sobre as coisas que realmente tinham importância na sociedade contemporânea. Paulo explora o mesmo tema em 10:23-30. Se a igreja cristã de Corinto pretendia influenciar o paganismo desenfreado daquela cidade portuária licenciosa, os cristãos precisavam ser menos sensíveis às "coisas duvidosas". Paulo queria que a vida de fé estendesse suas fronteiras até cada beco escuro e cada pocilga de Corinto. A propagação do evangelho exigia consciências mais fortes do que as de muitos cristãos, coríntios e romanos. Para tanto, cada um tinha de ser paciente, não crítico., sensível e absolutamente comprometido com a edificação da vida da comunidade cristã como um todo.

Se um cristão é guiado pelo exemplo de um outro, que ele considera um irmão "forte" ou dotado de saber (v. 10), para tomar decisões ou escolher determinado procedimento sobre o qual não orou pessoalmente e não entendeu a vontade do Senhor para si, então sua conduta não envolve fé. O próprio julgameiito de Paulo condena esse modo de agir como uma atitude pecaminosa: sua consciência foi golpeada (v. 12) ou ferida (no grego, typtontes: desferir golpes sobre a cabeça de alguém). O cristão inexperiente toma-se até menos capaz de atingir a maturidade e tomar decisões centralizadas na pessoa de Jesus Cristo.

Na concepção de Paulo, portanto, a pessoa "forte” é o cristão que 158

permite que apenas o Senhorio de Cristo dite ou determine seu comportamento diário; para ela, a vida não tem barreiras. Mas para inúmeros cristãos, essa força é tão distante que não passa de quimera. O que devemos fazer? "Ora, nós que somos fortes, devemos suportar (literalmente, "carregar", bastazein) as debilidades dos fracos, e não agradar-nos a nós mesmos. Portanto cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para edificação."22

A chave está nesta frase pequena, mas incômoda: "não agradar-nos a nós mesmos". Essa atitude vai diretamente contra a natureza, sobretudo contra a natureza dos coríntios, que tanto nutriam os "meus direitos". Toda a argumentação de Paulo neste capítulo é um exemplo prático de obediência à lei do amor: o amor se restringe para o bem dos outros. Fazer com que um único irmão tropece uma só vez é, para Paulo, um perigo tão constemador, que ele prefere nunca mais tocar em carne a fim de evitar tal desastre. Eis o verdadeiro amor cristão e - Paulo afirma com igual fervor - a verdadeira liberdade cristã.

Notas: 1. Barclay, págs. 79ss. 2. A t 15:29. 3. Cf. 1 Co 1:12. 4. Bruce, pág. 79. 5. G odet, I, pág. 408. 6. Cf. 1 C o 4:6,18; 5:2. 7. Cf. 1 Co 13:4. 8. Cf. G 14:8-9. 9. Cf. I jo 4 :1 0 . 10. 1 Co 13:8.

11. Q uanto aos gnósticos, devem os nos lem brar de que, com o um a heresia totalmente formada, o gnosticismo foi um fenômeno do segundo século. Paulo se referiu apenas a um gnosticism o incipiente.

12. Cf. SI 96:5, versão do Livro de Orações. 13. Cf. ]o 14:6; Rm 11:26; Cl l:15ss.; 1 Tm 2:5-6. 14. Is44:9ss.

15. Dt 32:15-17.

16. N ão é isto o que se acha por trás da condenação intransigente de certos elem entos nas igrejas de Pérgam o e Tiatira (Ap 2:14 e 20)?

17. Cf. 1 Co 10:19-22. 18. R m 14:23. 19. Cf. M t25:41ss. 20. Cf. M c 9:42. 21. Bruce, pág. 81. 22. R m 15:1-2.