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Vocês estão se esquecendo do seu destino (6:2-4)

1 Coríntios 6:1-

2. Vocês estão se esquecendo do seu destino (6:2-4)

Em um dos diversos exemplos (seis, neste capítulo) em que Paulo faz a pergunta retórica: "Não sabeis...?”, ele desafia os cristãos a se lembrarem das responsabilidades que terão quando o reino de Deus for totalmente estabelecido. O fato de o apóstolo enfatizar isso revela a natureza básica dessa doutrina. Apesar de tudo o que Paulo m o fora

capaz de ensinar aos coríntios por causa da sua enorme imaturidade,8

pôde ensinar-lhes os fatos elementares acerca da vinda e do cumprimento do reino de Deus.

Sem dúvida, os ensinamentos recebidos do próprio Jesus formavam a espinha dorsal dessa catequese.9 Não é difícil identificar as passagens dos evangelhos das quais o escritor deve ter formulado esta perspectiva escatológica sobre o futuro papel dos "santos" na nova dispensação. Por exemplo, quando Simão Pedro estava começando a sentir o peso do discipulado, depois da quase abrupta rejeição do jovem rico, pergunta: "Eis que nós tudo deixamos e te seguimos: que será, pois, de nós?" Ao que Jesus respondeu: "Em verdade vos digo que vós os que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho do homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel."10

Ao longo de todo o Novo Testamento, é amplamento alardeado que os cristãos serão ressuscitados para partilharem, com Cristo, de toda

a realidade de sua vida ressurrecta.11 Contudo, é provável que a maior fonte dos ensinamentos de Paulo seja uma passagem do livro de Daniel, que descreve um sonho particularmente vívido. Vale a pena citar alguns versículos de todo esse capítulo, para que percebamos como é substancial a perceção do próprio Paulo sobre o reino de Deus.

Continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e o Ancião de dias se assentou; sua veste era branca como a neve, e os cabelos da cabeça como a pura lã; o seu trono era chamas de fogo, cujas rodas eram fogo ardente. Um rio de fogo manava e saía de diante dele; milhares de milhares o serviam, e miríade de miríade estavam diante dele; assentou-se o tribunal, e se abriram os livros... e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do homem, e dirigiu- se ao Ancião de dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhe dado domínio e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído... Mas os santos do Altíssimo receberão o reino, e o possuirão para todo o sempre, de eternidade em eternidade... depois se assentará o tribunal... O reino e o domínio, e a majestade dos reinos debaixo de todo o céu, serão dados ao povo dos santos do Altíssimo; o seu reino será reino eterno, e todos os domínios o servirão e lhe obecederão.12

A grandeza absoluta desta perspectiva da consumação do reino de Deus e a parte a ser desempenhada pelos "santos", tais como aqueles coríntios briguentos, deviam fazer Paulo estremecer sempre que se lembrava da situação em Corinto; tal como Daniel,13 ele devia declarar: "Aqui termina o assunto". Como, em nome do Deus Altíssimo, aqueles indivíduos em Corinto podiam se rebaixar tanto? Não sabeis que os

santos hão de julgar o mundo? Tudo se tomava grotesco, se não blasfemo,

quando eles iam aos tribunais por causa de coisas mínimas (uma expressão que encontra o seu paralelo na instituição legal das "pequenas causas").

Mas Paulo ainda não terminou. Os cristãos em Corinto tanto se esqueceram do seu destino no reino de Deus, que não perceberam que até os anjos estarão sentados no banco dos réus. De que valem, pois, tantas discussões sobre "as coisas desta vida"? Os anjos têm um difícil papel a cumprir no melhor dos tempos. Eles despendem toda a sua energia para adorar no céu e servir aos santos,15 mas têm imensa dificuldade em entender as glórias da salvação. Na verdade, Pedro os imagina espiando a terra lá dos céus, na tentativa de penetrar nos mistérios do que significa ser remido.16 De um modo geral, porém, "a multiforme sabedoria de Deus", vista nas "insondáveis riquezas de 116

Cristo", está além do alcance dos "principados e potestades".17 É tarefa do povo remido de Deus, incluindo a igreja em Corinto, comunicar a sabedoria divina aos seres angelicais.

Como Paulo já havia explicado,18 essa sabedoria está em "Jesus Cristo e este crucificado", e há anjos caídos que não toleram esse fato. Foi o orgulho que originalmente os lançou fora do reino de Deus, e eles continuam aguardando o julgamento divino por causa dessa rebeldia.19 "Cristãos coríntios, vocês não sabem que vamos julgar aqueles anjos? Como puderam esquecer uma doutrina cristã tão básica e mergulhar nas profundezas da vergonha de julgar uns aos outros?"20 Essa dupla perspectiva da co-responsabilidade de Cristo e do cristão no julgamento, tanto dos homens como dos anjos, em questões de significado eterno, lança uma luz inteiramente nova sobre o prazer que os coríntios tinham em defender os seus direitos e julgar uns aos outros com espírito arrogante e voraz. Embora possa denotar certo exagero, o método de Paulo é inegavelmente impressionante.

Ao designar os magistrados de Corinto como aqueles que não têm

nenhuma aceitação na igreja (v. 4), Paulo está dizendo aos cristãos: "se

tudo será assim em relação aos destinos espirituais dos homens e das mulheres na eternidade, certamente vocês podem resolver os seus próprios negócios no mundo e acertar qualquer disputa interna, sem recorrer a homens, a quem, naquele grande Dia, vocês mesmos irão julgar. Sim, vocês estão se esquecendo do seu destino." Talvez Paulo até se permitisse dar um sorriso de satisfação ao pensar na notável inversão que haverá quando Jesus se revelar como Rei, na plena consumação do reino de Deus.

Alguns comentaristas sugerem que Paulo desejava que os membros de menor bagagem intelectual e os mais obtusos da comunidade cristã fossem encarregados dessa tarefa: "Por que vocês não os colocam diante dos menos estimados na igreja?" (esta é uma tradução possível). A provável intenção de Paulo é inverter deliberadamente os padrões coríntios que determinavam quem era realmente importante numa comunidade, fosse ela cristã ou secular. A palavra traduzida por

aqueles que não têm nenhuma aceitação foi usada anteriormente21 para

denotar "as coisas desprezadas" ou "reconhecidas como nulidades". Com uma rápida referência, Paulo poderia estar condenando os coríntios, e muitos cristãos da atualidade, pelo que pensavam sobre quem é importante para Deus. Uma das atitudes mais traiçoeiras e comuns entre os cristãos evangélicos é a valorização das "pessoas de destaque". Empregaam-se proporcionalmente muito mais tempo, energia, imaginação, dinheiro, orações e empenho a fim de ganhar

para Cristo os homens influentes, os líderes naturais e os bem- sucedidos, e quase invertemos o próprio padrão e a prioridade do ministério de Jesus.

Os cristãos de Corinto provavelmente consideravam que os magistrados locais eram homens importantes, cuja amizade precisava ser cultivada por motivos egoístas. Paulo rejeita tal atitude: "Ao aceitarem os padrões de Cristo, os cristãos deliberadamente puseram de lado os padrões do mundo."22 Uma das camisas-de-força mais apertadas que imobilizam a maior parte do cristianismo evangelical no mundo ocidental de hoje é a sua natureza suburbana, de classe média. A fascinante verdade que se contrapõe a isso, de uma perspectiva global, é aquele cristianismo bíblico que hoje floresce com mais evidência em países, continentes e culturas menos afetados pela síndrome da "gente importante".

3. Vocês estão desviando os seus recursos (6:5-6)

O sentimento de indignação de Paulo assume agora um traço de ironia. Os coríntios eram muito convencidos de sua sabedoria; mesmo assim, era aparentemente impossível descobrir um cristão sábio que

pudesse julgar no meio da irmandade (v. 5). Paulo acreditava que cada

igreja estava provida de tudo o que era necessário para a expressão do amor de Cristo. Ele lhes fizera lembrar que, como igreja, tinham sido "enriquecidos nele, em toda palavra e em todo o conhecimento".23 Cristo habita na igreja e ele é a própria sabedoria de Deus, a quem Deus transformou em fonte de vida.24 Se tal sabedoria, contida na igreja em Corinto, não podia ser mobilizada para resolver algumas dificuldades pessoais, então aqueles cristãos certamente precisavam voltar à cartilha.

Sempre que os relacionamentos pessoais dentro do corpo de Cristo ficam abalados, é importante identificar e usar os membros da congregação que são especialmente dotados para introduzirem na situação a sabedoria de Deus. Poucas coisas prejudicam mais o testemunho de uma igreja do que relacionamentos quebrados. Sempre haverá desentendimentos entre os cristãos, mas a disciplina com que Jesus trata de tais assuntos25 exige uma obediência mais completa. Geralmente os melhores agentes catalisadores para a cura de relacionamentos quebrados são aqueles que têm corações prontos para escutar e paciência para ouvir os dois lados até o fim. Tais membros têm, "mediante o Espírito, a palavra da sabedoria".26