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Liberdade e Sensibilidade Diante dos Outros

1 Coríntios 8:1-

8. Liberdade e Sensibilidade Diante dos Outros

A próxima seção de valor substancial (8:1 - 11:1) abrange a resposta de Paulo a um assunto muito polêmico em Corinto, bem como em toda a igreja primitiva: No que se refere às coisas sacrificadas a ídolos... (ton

eidolothuton). A problemática aqui discutida não é diretamente

relevante aos dias de hoje. Barclay explica:

O sacrifício aos deuses era uma parte integrante da vida antiga. Havia dois tipos: particular e público. No sacrifício particular, o animal era dividido em três partes. Uma parte simbólica era queimada sobre o altar...; os sacerdotes recebiam a porção a que tinham direito...; o próprio adorador recebia o restante da carne, com o qual oferecia um banquete. As vezes essas festas eram realizadas na casa dos ofertantes; em outras, eram realizadas no templo do deus ao qual o sacrifício era oferecido... O problema que os cristãos enfrentavam era o seguinte: "Podiam participar dessas festas? Podiam colocar na boca uma carne que fora oferecida a um ídolo, a um deus pagão?" Se não podiam, então estariam se excluindo de quase todos os acontecimentos sociais... No sacrifício público... depois que a porção simbólica era queimada e os sacerdotes recebiam a sua parte, o restante da carne era entregue aos magistrados e a outras autoridades. O que eles não chegavam a aproveitar era vendido aos açougues e mercados; conseqüentemente, mesmo a carne vendida nos açougues poderia já ter sido oferecida a algum ídolo ou deus pagão...

O que complicava ainda mais o problema era a velha crendice e o forte temor em relação aos demônios... que estavam sempre à espreita, aguardando uma brecha para entrar no corpo de um ser humano e, se o conseguissem, prejudicavam esse corpo e traziam distúrbios à sua mente... Os espíritos se alojavam na carne que o homem comia e assim penetravam nele. Uma das

maneiras de evitar isso era dedicar a carne a algum deus bom... Daí, dificilmente alguém podia comer carne que não fosse, de algum modo, dedicada a um deus pagão. Será que o cristão podia comer dessa carne? ... Para os cristãos de Corinto, ou de qualquer outra grande cidade, este era um problema que afetava a vida como um todo e que tinha de ser definitivamente resolvido.1 Constatamos, então, que a questão do ta eidolothuta possuía dois aspectos: 1) Participar ou não da festa em homenagem a ídolos? 2) Comer ou não a carne de origem duvidosa comprada nos açougues? A situação inevitavelmente se agravava em virtude das estritas leis dietéticas dos judeus e dos numerosos rigoristas pertencentes à igreja de Corinto. Complicações maiores devem ter sido introduzidas pelo famoso decreto de Jerusalém,2 no qual os gentios que se convertiam eram aconselhados insistentemente a se absterem dos alimentos sacrificados a ídolos.

Embora Paulo jamais tivesse aplicado o decreto em Corinto (até onde podemos julgar), provavelmente os membros do partido de Pedro3 o usaram como forte argumento para apoiar o rigorismo deles. Bruce4 faz a importante observação de que Paulo é a única personalidade autorizada na igreja apostólica ou subapostólica que não resolve a controvérsia da "carne oferecida aos ídolos" por meio de um interdito absoluto. Isso reitera sua determinação de não permitir que os legalistas vencessem essa disputa absolutamente crucial. A controvérsia envolvia os hábitos cotidianos do povo, e ceder aos rigoristas, por menos que fosse, poderia ter sido fatal.

Os rigoristas judeus da comunidade cristã de Corinto poderiam apresentar três objeções fundamentais a favor da proibição de tal alimento aos judeus: a) era manchado pela idolatria; b) os pagãos não davam o dízimo sobre ele; c) provavelmente o animal não teria sido morto de maneira adequada. Mas, e quanto à posição dos cristãos em geral? Havia o grupo anti-rigor is ta que devia considerar todo esse debate pueril e aviltante: qual a vantagem de os libertos em Jesus Cristo desenvolverem escrúpulos meticulosos na questão dos alimentos, especialmente quando isso os excluía virtualmente de todo e qualquer relacionamento social com as demais pessoas de Corinto? Além de se exporem ao ridículo, toda e qualquer evangelização eficaz seria praticamente aniquilada. Paulo via-se novamente enfronhado numa batalha de duas frentes: como manter os dois grupos satisfeitos, defendendo, ao mesmo tempo, a verdade do evangelho? Já havia divisões em excesso entre os cristãos de Corinto e ele não desejava

alimentar ainda mais esse fogo.

Uma análise global dos argumentos de Paulo em 8:1-11:1 evidencia que ele é essencialmente a favor da liberdade (veja especialmente 8:8, 9:1-12,19a). Ele defende dois tipos de liberdade: a liberdade absoluta em Cristo (8:8; 9:19 e 10:29) e a liberdade de limitar a própria liberdade por amor a algum irmão cuja consciência é menos forte (8:13,9:12,15, 19). E significativo que Paulo realmente conclua a exposição de suas convicções pessoais (9:24-27) admitindo que ele pratica essa limitação voluntária de sua liberdade absoluta em Cristo também para o seu próprio bem: "para que... não venha eu mesmo a ser desqualificado".

Após uma visão panorâmica dos três capítulos que compõem a presente seção, examinemos agora, mais detalhadamente, o capítulo 8, onde Paulo expõe três valiosas perspectivas da controvérsia: o princípio básico do amor, a verdade fundamental sobre Deus e a consideração suprema a ser estabelecida em qualquer debate de cunho ético.

1. O princípio básico: o amor edifica (8:1-3)

No que se refere às coisas sacrificadas a ídolos, reconhecemos que todos somos senhores do saber. O saber ensoberbece, mas o amor edifica. 2Se alguém julga saber alguma coisa, com efeito não aprendeu ainda como convém saber. 3Mas se alguém ama a Deus, esse é conhecido por ele.

Recordemos, inicialmente, os dois principais partidos de Corinto. Enquanto os legalistas recomendavam: "Façam o que diz a lei"; os libertinos retrucavam: "Nós sabemos o que é melhor; sejam livres". A resposta essencial de Paulo é a seguinte: o que importa realmente é o amor, não o conhecimento de um tipo (negativo ou legalista) ou de outro (permissivo). Paulo não está aqui condenando totalmente o "conhecimento". Ele está preocupado com que o verdadeiro amor

agape controle e caracterize a gnosis ("conhecimento"). O espírito com

que dizemos o que é certo faz parte da verdade assim como o conhecim ento que enunciamos. Como Godet o expõe: "O conhecimento desprovido do amor e do poder para edificar, quando examinado mais detalhadamente, nem chega a ser verdadeiro conhecimento."5

A palavra conhecimento (gnosis) ocorre seis vezes nos três versículos, fomecendo-nos a visão nítida do que finalmente transformou-se em um debate gnóstico aberto. Citam-se, por exemplo, alguns dos lemas

dos libertinos: todos somos senhores do saber (v. 1), com ênfase, sem dúvida, no aspecto pessoal (todos). Podem-se discernir dois outros lemas no versículo 4. Paulo está interessado em restituir o conhecimento ao seu devido lugar, à sua expressão apropriada, ao seu contexto, com o seu necessário contraponto. O conhecimento em si, particularmente o do tipo alardeado por aqueles peritos coríntios, apenas ensoberbece, deixando o seu possuidor parecido com um balão inflado. Esta não é a primeira vez que Paulo tem de arremessar esta advertência contra eles.6 O conhecimento é importante; todos nós o possuímos em alguma medida; mas por si só ele é inflado e vazio. O cristão precisa estar cheio de amor, porque o amor edifica (v. 1). Um balão estoura com uma simples alfinetada, mas uma parede é capaz de sustentar todo o nosso peso.

Paulo anseia que a igreja de Corinto seja forte e firme o bastante para suportar grandes pesos; isso exige a base sólida do verdadeiro amor cristão, que não ensoberbece.7 Quando o caráter de um cristão é controlado pelo amor e cresce em verdadeiro conhecimento, já não se preocupa tanto em saber o quanto conhece acerca de Deus, importando-se mais em ser por ele conhecido. Eis aí a prova do verdadeiro amor a Deus.8 Nenhum conhecimento verdadeiro gera orgulho por aquilo que sabemos, mas humildade pelo que não conhecemos.

Essa verdade atacou diretamente a perspectiva gnóstica da religião, que era essencialmente gananciosa e egocêntrica, produzindo perguntas como "Até onde posso ir?" e "O que lucro com isso?” Esse enfoque ganancioso é o oposto exato do amor agape, que deseja dar, ajudar, edificar os outros. Amar a Deus — que só pode ser uma resposta ao amor dele por nós, revelado em seu Filho (especialmente em sua morte por nós)9 — é entrar na aventura de sermos conhecidos por ele. Todo conhecimento verdadeiro, portanto, penetra no conhecimento perfeito que Deus tem de nós.

Agora, todo o nosso conhecimento é parcial10 e, portanto, é extremamente arrogante supervalorizá-lo, sobretudo em se tratando do tipo esotérico e exclusivo exibido pelos gnósticos,11 cuja versão de "superioridade" espiritual corresponde à antítese do verdadeiro amor­

agape, demonstrado no auto-sacrifício de Cristo. Esse amor edifica o

corpo de Cristo.

Podemos agora aplicar esse princípio básico à questão específica do alimento oferecido aos ídolos. Eis a prem issa de Paulo: o conhecimento especializado sobre as origens rituais e religiosas de um determinado pedaço de carne, colocado à venda no mercado ou 152

servido na mesa de jantar do anfitrião, em nada contribui para edificar a fé dos outros cristãos. O mais importante é o impacto que a nossa ação pode causar sobre um irmão ou irmã nessa situação delicada. O conhecimento de sutilezas teológicas, ou mesmo dos fundamentos cristãos, nada acrescentará, exceto a admiração dos outros diante do nosso conhecimento.

Se, por outro lado, atentarmos cuidadosamente para a reação dos companheiros cristãos ao nosso comportamento, e com base nisso optarmos por este ou aquele procedimento, estaremos edificando o corpo de Cristo. Portanto, cada um de nós tem o dever de lutar para tornar construtivo todo o comportamento, perguntando a si mesmo: "As pessoas estão sendo aproximadas de Deus? Os cristãos estão sendo fortalecidos na fé? As pessoas gostam de me conhecer?" Quando os conhecimentos de um cristão são irradiados e propagados em amor, fica claramente demonstrado que ele conhece a Deus e que Deus o conhece, ou seja, que há um relacionamento pessoal cada vez mais íntimo entre eles.