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Casamento e Celibato: Dons de Deus

1 Coríntios 7:1-

7. Casamento e Celibato: Dons de Deus

Quanto ao que me escrevestes, é bom que o homem não toque mulher.

Paulo começa a lidar com as questões específicas contidas na carta recebida de Corinto. Provavelmente ele a tem aberta diante de si enquanto dita a resposta. A expressão quanto a parece indicar os assuntos específicos: casamento e divórcio (7:1), virgindade (7:25), alimentos oferecidos a ídolos (8:1), dons espirituais (12:1), a oferta para a igreja em Jerusalém (16:1) e Apoio (16:2). Bruce acredita que outras

pergu ntas d o s coríntios também foram respondidas nos capítulos 7

a 16, "embora a discussão delas não seja introduzida com essa fórmula."1

Nesses capítulos, Paulo caminha habilmente entre os excessos gêmeos da licenciosidade e do legalismo, da libertinagem e do ascetism o. A versão mais pronunciada da segunda dupla provavelmente se resume na frase de efeito em 7:1: é bom que o homem

não toque mulher. Barrett2 acrescenta que a formação judaica do próprio

Paulo teria imediatamente lhe trazido à mente a réplica de Gênesis: "Não é bom que o homem esteja só."3 Seja qual for a origem da frase, Paulo enfrenta os diferentes tipos de relacionamentos dentro da igreja de Corinto, no contexto da controvérsia interna entre os dois partidos. 1. Pessoas casadas (7:2-5)

Mas, por causa da impureza, cada um tenha a sua própria esposa e cada uma o seu próprio marido. 30 marido conceda à esposa o que lhe é devido, e também semelhantemente a esposa ao seu marido.4A mulher não tem poder sobre o seu próprio corpo, e, sim, o marido; e também, semelhantemente, o marido não tem poder sobre o seu próprio corpo, e, sim, a mulher. sNão vos priveis um ao outro, salvo talvez por mútuo consentimento, por algum tempo, para vos dedicardes à oração e novamente vos ajuntardes, para que Satanás não vos tente por causa da incontinência.

A maneira de Paulo tratar todas as situações mencionadas na carta que recebeu de Corinto acaba com algumas opiniões populares de que ele fosse misógino, e até um partidário fiel dos intransigentes daquele tempo. Os coríntios rigoristas reagiram com tanta força contra a licenciosidade sexual da cidade, que caíram totalmente no outro extremo, proibindo o que Deus criou para que desfrutássemos ricamente. O casamento, diz Paulo, é dom e plano de Deus. O sexo é dom e plano de Deus. Rejeitá-los como se fossem coisas más é fugir da vontade de Deus, tanto quanto entregar-se a um relacionamento sexual fora do casamento.

Nos versículos 2-5, Paulo faz quatro declarações sobre o casamento, desafiando fundamentalmente a opinião que prevalecia em Corinto naquele tempo.

a) Ele proíbe a poligamia (2)

É uma proibição indireta,'mas clara: cada um tenha a sua própria esposa

e cada uma o seu próprio marido. O raciocínio de Paulo é extremamente

pragmático e, com certeza, influenciou as mentes daqueles que foram os responsáveis pelo preâmbulo da cerimônia matrimonial do "Livro de Oração", escrito em 1662, onde um dos três propósitos do casamento é ser "um remédio contra o pecado e evitar a fornicação".4 A frase por causa da impureza significa literalmente: "por causa da fornicação", referindo-se aos "inúmeros atos e variadas tentações que abundavam em Corinto".5 Esta superabundância de tentações sexuais produzia inevitavelmente uma oposição generalizada ao casamento como "uma reação contra os modos licenciosos que reinavam naquela cidade".6 Também é possível que as pessoas convertidas que vinham de um estilo de vida praticamente amoral considerassem nada realista a insistência de Paulo na monogamia. Argumentos semelhantes certamente ecoam nos dias de hoje, nos chamados círculos esclarecidos. Portanto, sob diversos aspectos, Paulo se expunha a um fogo cruzado ao fazer esta firme asseveração sobre o propósito divino para o casamento.

b) Ele destaca a completa mutualidade dos direitos conjugais (3-4)

O fundamento de Paulo para insistir em que marido e mulher dêem um ao outro o que lhes é devido é a sua convicção sobre as responsabilidades, e não tanto sobre os direitos dos casais. O marido

não tem direito sobre o seu próprio corpo, nem a esposa sobre o dela. "Por meio dos votos matrimoniais cada um renuncia aos direitos exclusivos sobre seu próprio corpo, e os entrega ao cônjuge."7 "Por meio do enlace matrimonial, cada cônjuge adquire um direito sobre a pessoa do outro. Conseqüentemente, cada um perde uma porção da independência pessoal."8 Os cônjuges privam-se um ao outro dentro do casamento quando falham no dar, especialmente dar o que Deus quer que se dê. Paulo intercepta aqui qualquer egoísmo ou excesso desm edido nos aspectos físicos do casamento. Todas estas considerações sobre igualdade e mutualidade do relacionamento conjugal eram completamente revolucionárias no tempo de Paulo, mantiveram-se revolucionárias muitos séculos depois e continuam sendo revolucionárias em virtualmente todas as civilizações modernas.

Marido e mulher se pertencem um ao outro, e a questão das atividades sexuais, inclusive o ato sexual, depende da sensibilidade em relação aos desejos do parceiro. Na verdade, 7:4 é uma das diversas passagens onde Paulo fala explicitamente de direitos; e, longe de expressar algum tipo de machismo chauvinista, ele concede à esposa exatamente os mesmos direitos que concedeu aos homens, de desfrutar o corpo do cônjuge. Como Morris explica: "Paulo não salienta o dever de um dos parceiros em detrimento do outro, mas os coloca no mesmo nível. O imperativo presente, conceda, indica o dever habitual."9 Em nível prático, esta é uma palavra muito desafiadora para todos os casais cristãos. Apresentam-se muitas razões para se negar o que é devido ao outro: cansaço, ressentimento, desinteresse, tédio, etc. Para os maridos coríntios, tão apegados aos seus próprios direitos, esta instrução tão "mundana" deve ter sido um verdadeiro golpe frontal.

De fato, a ordem do versículo 5 para que os cônjuges não se "defraudem" ou não se "neguem" um ao outro na questão do relacionamento sexual ressoa como um eco deliberado da questão do litígio tratada em 6:1-8. Os coríntios haviam se acostumado a defender os seus direitos com tal tenacidade, que estavam constantemente exibindo seus casos de defraudação nos tribunais públicos. Quando Paulo lhes instruiu francamente a não defraudarem seus cônjuges em seus direitos matrimoniais, eles devem ter se sentido realmente humilhados ou, usando uma metáfora mais adequada aos coríntios, viram estourar o balão da arrogância.

No decorrer de todo este trecho, Paulo fala em termos de absoluta igualdade dentro do casamento cristão, o que não era nada normal no

seu tempo. Além disso, quando levamos em consideração "a generalizada exaltação do celibato'1,10 a ênfase de Paulo sobre a indispensabilidade da relação sexual para o sucesso do casamento cristão é ainda mais notável. A vista dos atuais debates com a teologia moral católica romana sobre o propósito do ato sexual dentro do casam ento, vale a pena observar que esta discussão das responsabilidades conjugais não traz nenhuma indicação de que o ato sexual deva ter, necessariamente, uma função procriativa.

c) Ele afirma a capacidade e a necessidade de os casais cristãos se absterem temporariamente das relações sexuais (5)

Para determinados cristãos em Corinto, a própria idéia de se abster das relações sexuais era simplesmente ridícula, se não totalmente idealista. A antiga inclinação para a licenciosidade sexual, antes da conversão, não teria desaparecido com o batismo, por maior que fosse a experiência com o poder do Espírito de Deus. Para essas pessoas, a única exceção apresentada por Paulo para a satisfação mútua de um casal cristão poderia ser como que um desafio.

A instrução de Paulo é cercada por quatro condições importantes. Prim eira, tanto o marido como a mulher devem agir, não simplesmente por mútuo consentimento, mas "em sinfonia" (tradução literal).11 Só isso poderia evitar o hábito tão comum de um parceiro "hiperespiritual" considerar tudo, exceto a oração, como algo não puro o suficiente para um casamento centralizado em Deus. Se outras espiritualízações coríntias comuns em nossos dias precisam ser denunciadas em seus verdadeiros aspectos, esta forma de suborno conjugal também precisa ser denunciada.12

A segunda condição de Paulo é que tal acordo harmonioso sobre a abstinência sexual só deveria vigorar por algum tempo (em grego, pros

kairori), isto é, porque é exatamente a hora certa para fazê-lo, não

porque (por exemplo) "não temos feito isso há meses ou mesmo anos". O vocábulo grego kairos sempre se refere a um período chave dentro do tempo determinado por Deus, e é exatamente o que Paulo tem em mente: uma necessidade especial (talvez na família, na igreja local, na nação ou no campo missionário) exige que o marido e a mulher deixem tudo de lado para se entregarem à oração especial.

Isto nos leva à terceira condição imposta por Paulo: que a abstinência tenha a intenção expressa de vos dedicardes à oração. Cabe aqui um estudo mais detalhado, pois as Escrituras consideram o casamento como uma oportunidade singular de oração a dois; e de

acordo com Jesus, este tipo de oração vem acompanhado de poder e promessas especiais.13 Pedro conclui seus profundos ensinamentos aos casais cristãos14 com a declaração: "Maridos, vós, igualmente, vivei a vida comum do lar, com discernimento; e, tendo consideração para com a vossa mulher como parte mais frágil, tratai-a com dignidade, por isso que sois juntamente herdeiros da mesma graça de vida, para que não se interrompam as vossas orações." Pedro está sugerindo que o maior propósito no casamento cristão é liberar o poder de Deus através de um verdadeiro companheirismo na oração. Para que tal união se aprofunde cada vez mais são necessários períodos especiais dedicados à oração, com a exclusão de qualquer expressão prazenteira do relacionamento carnal que também é vital no plano de Deus para o casamento.15

Morris tem comentários utilíssimos sobre essa dedicação de ambos os parceiros à oração: "Normalmente cada um pertence ao outro de modo tão completo, que Paulo pode chamar a negação do corpo de um ato de 'fraude'. Para vos dedicardes (hina scholasete; deste verbo derivamos a nossa palavra ’escola’) literalmente é, ’para que tenhais vagar para’. A oração não deve ser apressada. Nas correrias da vida pode ser que seja necessário, às vezes, tomar medidas excepcionais para assegurar um tranqüilo e sereno intercâmbio com Deus."16

A quarta condição de Paulo para este tipo de abstinência talvez pareça óbvia, mas precisa ser apresentada: é necessário haver a intenção deliberada de retomar a relação sexual, quando o kairos tiver passado. Paulo não é ingênuo quando fala da atuação de Satanás neste ponto — o que será analisado com mais detalhes posteriormente. Um casal unido para ser uma só carne no Senhor fica aberto a todo tipo de

akrasia, ou incontinência, se continuar se abstendo do ato sexual, além

dos limites do kairos que lhe foi imposto pelo Espírito Santo. No contexto de Corinto, tal akrasia poderia muito be"m ser uma tentação de retornar à porneia, ou seja, à fornicação.17

d) Ele expõe a atividade de Satanás na área sexual (5)

Em Corinto, como atualmente, a atividade sexual (na mente popular) era "deixar o barco correr". Já vimos os motivos reais mencionados por Paulo18 para se honrar a santidade do sexo e a vocação para glorificar a Deus com os nossos corpos. Está claro que Satanás concentra deliberadamente grande parte de sua astúcia na tentação sexual.

Tal idéia certamente seria rejeitada pelos libertinos da igreja em Corinto: para eles, o corpo (c, portanto, a atividade sexual) era

moralmente neutro; não tinha qualquer relevância para a atividade do Espírito Santo, não tinha qualquer relevância para a atividade de Satanás. No outro lado da balança, os rigoristas viam Satanás por toda a parte, na cidade de Corinto dominada pelo sexo. Para eles, a única maneira de fugir da contaminação (ou de algo pior) era rejeitar completamente toda atividade sexual. Para tais pessoas deve ter sido quase um escândalo ouvir as instruções de Paulo para os casais cristãos: depois de terem um período especial devotado à oração, deviam voltar a desfrutar as relações sexuais p a ia fugir das tentações de Satanás.

Se a oração a dois é fundamental no casamento cristão, então Satanás fará de tudo para acabar com ela. Qualquer estudo sincero sobre a vida de oração dos casais cristãos deveria estabelecer dois fatores comuns: primeiro, que os casais geralmente consideram a oração conjunta como a parte mais difícil de todo o seu relacionamento; segundo, que é particularmente o marido que encontra maiores problemas em se submeter a orar junto com a esposa. Os motivos disso não são óbvios, mas provavelmente estão ligados ao imenso orgulho natural do homem em não desejar revelar perante a esposa qualquer falta de autoconfiança, e a oração expressa, por excelência, a dependência de Alguém maior e mais forte. Da mesma forma, se a verdadeira entrega mútua no ato sexual é a essência de uma união realizada por Deus, então Satanás fará de tudo para inibir, estragar, roubar a sua pureza e o seu potencial de concretização. Satanás está sempre interferindo em um casamento cristão, para esfriar a oração em conjunto e reduzir o prazer sexual a um nível indigno.

2. Observações pessoais de Paulo (7:6-9)

E isto vos digo como concessão e não por mandamento.' Quero que todos os homens sejam tais como também eu sou; no entanto cada um tem de Deus o seu próprio dom; um, na verdade, de um modo, outro de outro. SE aos solteiros e viúvos digo que lhes seria bom se permanecessem no estado em que também eu vivo. 9Caso, porém, não se dominem, que se casem; porque é melhor casar do que viver abrasado.

Agora, depois de recolocar o casamento cristão no seu devido lugar, Paulo lança mais duas observações pessoais. Primeira (v. 6), admite que o seu conselho ("isto" provavelmente se refere ao que ele disse no

versículo 5) aos casados não se apóia na autoridade apostólica: E isto

vos digo como concessão e não por mandamento.19

Segunda, ele afirma que é muito mais feliz permanecendo solteiro:

Quero que todos os homens sejam tais como também eu sou (v. 7). Podemos

encontrar muitos motivos para isto: práticos e vocacionais, pessoais e psicológicos. Paulo era "o apóstolo dos gentios" e essa vocação única exigia completa liberdade para movimentar-se sem se preocupar com problemas interpessoais, quanto mais com responsabilidades com esposa e família. Ele também não era uma pessoa fácil de conviver; era impaciente com aqueles que não trabalhavam no seu ritmo ou que deixavam de atingir suas elevadas expectativas. Paulo era um cristão que aprendera a depender de seus próprios recursos internos, recebidos de Deus, e a exercer o poder do domínio-próprio (o pleno significado de enkrateuesthai, em 7:9). Ele não precisava da presença de uma "companheira que lhe fosse idônea", embora desse muito valor à companhia de colegas em quem pudesse confiar. É evidente que Paulo tinha o dom do celibato, e é precisamente isso que ele diz no versículo 7. Este é um charisma ("dom"), tal como a evangelização, ou o falar em línguas, ou a operação de milagres.20 Paulo fala exatamente o mesmo sobre o casamento: também é um charisma pois

cada um tem de Deus o seu próprio dom; um, na verdade, de um modo, outro de outro.21

Paulo está reabilitando, assim, tanto o celibato quanto o casamento, como manifestações da graça de Deus que devem ser assumidos e mantidos puramente na força que o Senhor fornece diariamente. Como Godet22 declara, ambos são dons "para o reino de Deus".

Não há como ter absoluta certeza sobre qual era o estado civil de Paulo. Normalmente assume-se que ele nunca se casou, mas isto seria extremamente incomum para um rabino judeu.23 Podemos imaginar então que, quando ele se converteu a Cristo, sua esposa resolveu deixá-lo, voltando para a casa de seus pais (um exemplo muito pessoal do que Paulo menciona em 7:15). Naturalmente, é possível que Paulo fosse viúvo e que sua opinião sobre permanecer nessa condição, em vez de contrair um novo casamento (7:40), fosse baseada novamente em um julgamento bem pessoal, como ele insinua.

Se Paulo era solteiro e nunca se casou, seu conselho aos solteiros24 nos versículos 8 e 9 é inequívoco: seria bom se permanecessem solteiros

como eu. A palavra "solteiros" aqui é gratuita, mas o significado de seu

conselho é inconfundível. A argumentação de Paulo consiste no seguinte:25 A melhor situação (a sua própria) é a de uma pessoa solteira que não é pressionada a se casar. Em segundo plano vem a situação

da pessoa que precisa expressar fisicamente a sua sexualidade e o faz dentro do casamento. A situação menos desejável é a da pessoa que precisa do casamento como um meio de expressão de sua sexualidade, mas é compelida a (ou tenta com esforço) passar sem ele: é melhor casar

do que viver abrasado (v. 9).26 A propósito, a última expressão ("viver

abrasado") não pode significar explodir em atos licenciosos, mas ser tão comsumido por um desejo íntimo que praticamente nada mais interessa nem pode ser considerado com serenidade. Paulo trata mais detalhadamente a situação dos casais de noivos em 7:36-38.