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“Ingratidão é apenas falta de memória”

Barão de Itararé

Um dos primeiros fatos que me chamou a atenção e levou-me a inferências diversas das iniciais, foi que A Manha, durante toda a sua vida, foi impressa no

processo tipográfico, pois o sistema fotomecânico em off-set vira procedimento corrente apenas nos anos 60 aqui no Brasil. A Folha da Manhã, atual Folha de S.Paulo, é o primeiro grande jornal a ser rodado inteiramente em off-set no Brasil, a partir de 1964.

Os métodos de trabalho em tipografia, no processo fotomecânico e no digital são diversos para um resultado semelhante; as equipes profissionais envolvidas são diferentes, marcadamente nos assuntos técnicos e até nos assuntos conceituais. Gostaríamos de ressaltar, averiguar e analisar, especificamente, a presença cons- tante da figura do diagramador no departamento de arte das publicações — o Desig- ner de página e de produto editorial —; que é introduzido vagarosamente no final da tipografia, adquire grande importância no processo fotomecânico, para ser, até cer- to ponto, desnecessário no processo digital de produção gráfica.

Talvez por isso o Sr. Nicolaiesvki (entrevistado à diante) tenha dito que o proces- so gráfico não mudou tanto em seis décadas (e eu diria em 6 séculos, agora); apesar de ter saído da tipografia para chegar ao altamente sofisticado e produtivo sistema digital. O surto de criatividade dos anos 40, 50 e 60 nesta área parece que tiveram relação com as inovações tecnológicas e com os movimentos culturais, mas a men- talidade dos “periodistas”, dos homens de negócio da grande imprensa, foi e é bastante pragmática — não mudou. Ou seja, criatividade vem depois, em todos os aspectos. Primeiro o lucro, a eficiência (produtividade) e a qualidade do produto, encarando qualidade por aquilo que é (re)conhecido do leitor, cliente e usuário de forma não conflituosa, não inusitada — e que atenda às expectativas inconscientes e cristalizadas deste — mesmo que a abordagem seja superficial e medíocre.

A nova mentalidade da “qualidade total”, pelo lado negativo, identifica-se plena- mente com isso: qualidade total também é oferecer aquilo que o cliente quer. Se o cliente é um idiota, seu produto será uma porcaria; mas esta porcaria tem público, outrossim o cliente nem existiria (ou “é esse o cliente que temos”!, nosso alvo, o “target” efetivo). Na nossa realidade de monopólios e oligopólios, num mundo de concentração atroz de todos os tipos de recursos (financeiros, culturais, educacio- nais, etc), passa ao largo da consciência imediata das pessoas a percepção de que grande parte de suas necessidades cotidianas foram inventadas por publicitários.

Essa ambigüidade entre discurso e realidade, que põe em dúvida a seriedade na aplicação e no uso da ciência no mundo capitalista, cria uma máscara do real deco- nectada de sua essência; que é dada pelo fetiche e a fascinação do discurso, deto- nando um processo subliminar de ausência de crítica e autocrítica (ou seja, um pro- cesso alienante de si próprio), sendo o “gancho” principal do discurso da dominação social, cultural, financeira. Com isso, o poder analítico do grande público é baixo o suficiente para ser dócil aos movimentos da moda, ao frenesi consumista, à mani- pulação política: tudo dentro de um ambiente extremamente conservador, elitista, competitivo e violento.

Isso não mudou, senão que aflorou continuamente durante todo o século XX, com a “modernização” da sociedade brasileira, a qual tornou-se cada vez mais urba- na e civilizada nos moldes ocidentais. A forma do discurso mudou, a abordagem, a plástica, o texto. A essência é a mesma em suas linhas mais gerais e fundamentais, e reproduz as mesmas lutas de poder que ocorrem nos âmbitos sociais, culturais e econômicos.

Nos dias de hoje, o assumido cunho onírico e ficcional dos discursos na arte e na comunicação (até como mote de uma estética da atualidade), que chegou com o surrealismo e se enraizou no imaginário da cultura oficial dominante, colabora para a manutenção das relações de poder subjacentes, agindo de forma cada vez mais inescrupulosa. “Antigamente a humanidade precisava de mil anos para criar um mito. Hoje em dia, cinco publicitários se sentam em volta de uma mesa e criam um mito em duas semanas”, como disse um publicitário à Folha de S.Paulo há alguns meses. Esse indício demonstra o fim completo dos ideais da cultura burguesa, que já não é mais classe dominante e sim classe média, e a incrível capacidade de adap- tação do capitalismo para a manutenção e perpetuação do trabalho alienado.

Essa falsidade mentirosa imbuída nos discursos, naquele ambiente do que “se sente mas não se vê”, gera imediatamente dois fenômenos degenerativos da cultu- ra: a revolta despolitizada e a alienação profunda. Os movimentos de contestação da juventude, iniciados no final dos anos 60 com a contracultura, são recorrentes nos últimos 30 anos, e, progressivamente, vão ficando mais rasteiros, paradoxais, alie- nados, violentos e irracionais.

A frustração das juventudes das novas gerações ao constatar que nobres valo- res burgueses, “liberdade, igualdade e fraternidade”, são apenas tinta impressa nas páginas das publicações, instaura a revolta pessoal, familiar e social, a contestação total do “establishment”. E a dinâmica capitalista encampa tranqüilamente estes anseios, transformando-os em moda, ou seja, em algo passível de ser vendido e consumido.

Assim, essa dicotomia entre discurso e realidade vai criando uma pressão psico- lógica de tal intensidade, que é gerada toda uma série de necessidades e patologias pessoais e sociais. A necessidade de alienação dessa realidade mentirosa e hipócri- ta, onde todos os discursos sociais falam uma coisa e fazem outra, com certeza tem relação com o crescente uso de drogas entorpecentes entre jovens e, atualmente, até entre adultos maduros; enfim, significa um dos propulssores das frustrações.

Como quer MARCUSE(19), “A ilusão harmonizadora, a transfiguração idealista e,

concomitantemente, o divórcio entre as artes (as linguagens) e a realidade tem sido uma característica dessa forma estética”, onde artistas e comunicadores realizam um grande” esforço para encontrar formas de comunicação que possam romper o domínio opressivo da linguagem e imagens que há muito já se converteram num meio de dominação, doutrinação e impostura”. “O uso subversivo da tradição artís- tica visa, desde o começo, a uma desublimação sistemática da cultura; quer dizer, a dissolução da forma estética”. Hoje em dia, isto acontece também ao nível pessoal, levando a extremos a liberação pessoal iniciada com a contracultura no final dos anos 60.

Na prática, o mito da objetividade e da veracidade do discurso da grande impren- sa, da fotografia e do cinema documental é tão somente um discurso dissimulado e ideológico e, que também tem como característica, a adequação de sua forma de expressão ao extrato social a que seu produto se dirige: quanto mais baixo o nível sócio-cultural, mais sensacionalista e “inventada” é a notícia. Mas isto não exime as publicações tidas como sérias ou de alto nível dos mesmos expedientes: apenas a forma é diferente, mais complexa e sutil, para formar a opinião pública que interes- sa. Para este público mais culto, formador de opinião e multiplicador desta opinião por sua influência social, as publicações contém um recorte editorial e plástico mui- to mais preciso e dirigido, sempre reafirmando seu ideário e sua falsa moral.

Enfim, esses nobres valores que são predicados pela imprensa, pela propagan- da, pela mídia em geral, e que são praticados somente ao nível do discurso, são endossados pela sociedade com um todo, e dão o grau de doutrinação a que as “classes exploradas” estão submetidas. Nessa situação social, onde a maioria ab- soluta do público é constituída pelo “cidadão autômato”, de baixíssimo nível cultural (e isso é um fenômeno mundial!), poderíamos ainda dizer que o público relativo às classes sociais mais desfavorecidas é cada vez mais ignorante, conservador, ino- cente, inconsciente; enfim, não é apenas vítima do trabalho alienado, mas alienado, em si e para si, também ao nível da mentalidade e da visão de mundo.

A pregação do cinematográfico “american way of life” — que existe apenas nos luxuosos delírios oníricos do cinema e da publicidade — vai criando uma relação cada vez mais ilegítima e esquisofrênica entre o mundo real e o dos pensamentos vis-a-vis aos anseios da sociedade por valores diferentes do utilitarismo e do pater- nalismo burguês agonizante.

Alia-se a isso, a assimilação capitalista desse declínio da cultura burguesa, intro- duzindo no cotidiano do planeta o ritmo do “time is money” em determinado mo- mento da história. A valorização dos minutos e segundos dentro do cotidiano das pessoas, o que faz da informação rápida uma necessidade cruel e paranóica; e, muitas vezes, iguala produtividade a rapidez. Isso favorece o aparecimento das “lin- guagens telegráficas”: muito interessante na poesia e muito “útil” na imprensa.

Estes desvios de sentido introduzem um comportamento ansioso, irresponsá- vel e até maldoso em tudo que se publica, e isto contamina todos os discursos de real expressão social (mídia). A rapidez e a concisão da informação favorecem ainda mais a ausência de acuidade e de distanciamento crítico, pois acredita-se, firme e inocentemente, que a informação telegráfica é objetiva e não ideológica. É esta aparência carregada de sutis armadilhas que coloca o design — gráfico, arquitetôni- co ou de produto — em seu próprio foco: a questão social e ideológica subjacente. Neste mundo pretensamente globalizado, a questão antropológica virá em pri- meiro lugar, pois as explicações a respeito da apropriação de culturas, da dominação subliminar e da aculturação forçada, manipulada serão o miolo da questão. Isso aponta para um discurso da dominação que traz em si mesmo (no sentido filosófico, episte- mológico) as contradições geradas pelos conflitos de poder no âmbito social, reve- lando tais contradições na sua forma própria de expressar-se (desenho). O Arquiteto estará sempre pressionado por esta questão moral, pois esta farsa do discurso que atende apenas aos interesses egoístas, especuladores e, via de regra, desonestos, permanentemente permeará o seu trabalho e baterá à porta de seu escritório. En- fim, é esta tranqüila ausência de moral ou ética no capitalismo, que se baseia no princípio único do lucro a qualquer custo, que vai criando o caos social que vamos presenciando.

Esta espécie de “virus” da comunicação, revelado em sua própria plástica atra- vés da angústia da falta de opção alternativa ao protesto expresso na dissolução da forma estética, é acirrada pela falta de repertório, pela pobreza cultural resultante de uma malha interpretativa ínfima nos agentes da signagem e dos discursos. Soma-se a esse efeito, o impacto da exclusão cultural e social, oculta e imersa numa espécie de “realidade de sonho colorido”, que a publicidade e a propaganda nos impõe e nos massacra a todo momento. O resultado é uma expressão e uma manifestação artística cada vez mais desesperada e identificadas com o “lixo” caótico que é a vida (cada vez mais urbana) da atualidade, onde a arte luta intensamente pela recupera- ção da naturalidade perdida na afetação burguesa e na perversão capitalista.

No plano social, este fenômeno vai criando o conflito urbano generalizado que presenciamos nos dias de hoje: uma sociedade super reativa e à “flor da pele”. Esta neurose coletiva traduz-se em violência, alienação por drogas, corrupção, falta de perspectivas; onde o nivelamento cultural é dado pelos valores mais rasteiros e incongruentes, e se alastra pelo planeta inteiro tecido pelos enlatados de televisão. Não é difícil explicar crianças e adolecentes chacinando colegas e professores à bala e em vários países pelo globo: basta ligar a televisão à tarde e constatar as “maravi- lhas” que Hollywood exporta para todos os lares. Isso deveria ser um alerta para todas as sociedades, ou pelo menos, para aquelas onde a mídia não é controlada por ela ou por seus representantes.

O contexto do falso moralismo cínico que o colonialismo e o imperialismo impu- seram ao mundo por séculos, a globalização reafirma. Esta é também a sua própria tônica nesta civilização desmoralizada, vendo a moral em sua acepção grega origi- nal: o conjunto de valores pelos quais o sujeito ou a sociedade pauta sua conduta. A ausência de valores morais e éticos no âmbito dos conflitos sociais vai criando uma sociedade bestificadamente conservadora, egoísta e anti-social, que, entretanto, adora e idolatra os movimentos da moda e os “sonhos de consumo”.

O sentimento de inferioridade e de discriminação da cultura terceiro mundista no período colonial é substituído pelo sentimento de valorização (pelo pitoresco, é claro) no imperialismo; e de igualdade na globalização — justamente, por ser uma espécie de alternativa criativa no deslumbrado e encalacrado labirinto cultural globa- lizado: ali, o” lixo”, a perplexidade e a criação aleatória predominam. Esses senti- mentos forjados e praticados, apesar de diversos, tem sempre um fundo etnocen- trista, racista e discriminatório, sendo artifícios criados pelo discurso da dominação com um único objetivo: fazer com que as culturas regionais voltem as costas para si mesmas e, em geral, transformem-se em cacoetes, cópias e/ou plágios da cultura dominante.

Esse curioso fenômeno antropológico, que arrasa e extingue as culturas regio- nais, vai criando um mundo cada vez mais americanalhado (como diria o Barão) e sem sentido, com legiões crescentes de excluídos — onde vale tudo, desde que dê dinheiro. Entretanto, esta grande revelação luminosa que o design traz por si só, na sua própria cara, é um indício vão em terra de cegos: a maioria não pode ver e os que podem, fazem vista grossa. E os paradoxos e contradições aparecem: como esta avalanche de recursos técnicos moderníssimos vai criando produtos cada vez piores, superficiais e descartáveis? Como o enorme acesso à cultura e à informação vai criando um ser humano cada vez mais alienado e ignorante…, manipulável. Como a dominação dos povos uns pelos outros através da história ocidental recente muda de cara em função de seu instrumental tecnológico sem alterar em nada a sua es- sência…

Na imprensa não poderia ser diferente; assim, poder, status e dinheiro vem an- tes da alardeada “verdade”. A oposição entre notícia e “fait divers” que R. Barthes aponta (vide bibliografia), nos dias de hoje, de certa forma, perde muito de seu sen- tido, pois ambos podem ser inventados em maior ou menor grau. Esse fato é geral, do primeiro ao terceiro mundo. Desde o corte que o fotógrafo faz do fato relatado até as notícias e omissões premeditadas, criadas e publicadas por motivos políticos ou financeiros ou mesmo estratégicos.

O fato real relatado, na verdade, depende do olhar do observador e isso sempre é ideológico. Os famosos tablóides ingleses, por exemplo, não perderam um único lance da morte da princesa Diane e até criaram indícios falsos para a explicação dos fatos. Estes mesmos tablóides não deram uma linha a respeito do uso de artefatos nucleares (uso urânio empobrecido no material das bombas convencionais tornando as áreas bombardeadas altamente radioativas) pela Inglaterra na guerra da Bósnia, onde ocorre um processo de extinção racial pior e mais violento que aquele pratica- do pela Alemanha nazista: há até uma epidemia de doenças provocadas pela radio- atividade (câncer, leucemia, mutações, etc) entre as crianças daquela região e que o mundo dito civilizado simplesmente finge que não vê.

Ou, enquanto a América chorava a morte de inocentes no atentado do World Trade Center, na Palestina acontecia uma grande festa nas ruas. Esse filtro, se reti- rado, dá uma outra leitura à realidade: saímos do que parece para o que se é de fato — saímos da aparência do fenômeno para a essência em si.

E esse é um dos pontos que o Barão pegou para desfiar o seu arsenal humorís- tico — sendo ele, o personagem, uma caricatura dos poderosos, podia fazer livre- mente a crítica e a autocrítica, rompendo a aparência do embuste social, satirizando e desmascarando o discurso “neutro” da verdade da grande imprensa. N’A Manha

isso é uma constante, onde ele aparece, desde o primeiro número, na figura do “nosso querido diretor”, caçoando e atacando a vaidade e a hipocrisia dos “donos” da mídia de seu tempo. Essa ousadia, num Brasil rural que mal teve tempo de criar sua própria burguesia, a cultura burguesa já nasceu decadente no início do século XX, e a obra de Aporelly é um dos bons indícios disso.

Esta explanação picante que faço até aqui tem o objetivo de situar nosso autor e seu feeling. Não somente no seu discurso, essencialmente crítico, autocrítico, goza- dor, mentiroso, sério, verdadeiro, beligerante, engraçado e assumido, mas também como ele soube se aproveitar desta consciência crítica aguçada e perspicaz, para usar todas as brechas possíveis para viver e sobreviver neste mar de tubarões e nos mostrar, aos olhos da história, seu valor como um visionário criador e antecipador de fórmulas.

Sua plena consciência da hipocrisia dos discursos publicados — na imprensa, na arte, na academia, na propaganda, na moda, na política, etc — fez dele um brinca- lhão e nos trouxe a mais interessante das inferências: o Brasil também mudou mui- to pouco nestas décadas — mudou na cara e não na essência —, e isso aumenta em demasia a importância de Apporelly para a memória nacional, pois é da falta de memória que a história se torna pernosticamente repetitiva e cruel. Afinal, o destino dos povos sem memória é a aculturação, a perda da identidade, a escravidão.

Aliás, o número 1 d’A Manha saiu no dia 13 de Maio. Homenagem à abolição da

escravatura? Será? E também tinha escritórios à R. 13 de Maio quando abriu. Coin- cidência ou não, com certeza A Manha foi uma trincheira do ser humano, um labo-

ratório da consciência social e cultural. Reassumindo o papel do “Bobo da Corte”— que podia falar a verdade ao Rei, rindo —, a brincadeira de Apporelly criou o único nobre da República, a caricatura arquetípica dos anseios de uma sociedade sem identidade e comandada por malvados capadócios. A troça com os imigrantes es- trangeiros — camponeses e operários em suas terras natais, mas que ao fazerem fortuna no Novo Mundo, apressaram-se por comprar títulos de nobreza — é outra constante n’A Manha, que dedicava sessões inteiras aos portugueses, italianos e

alemães (Suprimento de Portugali, Sublemendo do Alemanha, etc). Com todo res- peito e consideração, o espaço crítico e humorístico do “único quintaferino que sai às sextas” pôde também brindar a criatividade e, assim, vimos naquelas páginas os versos de Juó Bananere ou os primeiros textos de José Lins do Rego falando sobre sua grande paixão, o Flamengo. Pelo crivo humorístico de Apporelly não passou nada em branco, e toda tensão social foi costurada a risadas, sendo um ponto de alívio das pressões interiores do leitor. Assim, A Manha cumpriu plenamente seu

papel sendo o que deveria ser: um verdadeiro entretenimento popular que, de que- bra, ainda clamava pela conscientização dos seus leitores.