• Nenhum resultado encontrado

Terceira fase d’A Manha 1930/1937 A mudança no formato do jornal de A4 para tablóide

Mas, FIGUEIREDO (OP. cit. pp 52/53) vai mais além e mostra que a ousadia de Apporelly não tinha limites, lembrando que o título não foi exatamente autoconcedi- do, pois A Manha publica no mês de dezembro de 1930, na íntegra, o decreto

assinado pelo Presidente Getúlio Vargas e pelo Ministro da Justiça Oswaldo Aranha, pelo qual o governo provisório da República Nova, em recompensa aos serviços prestados à revolução, concede ao “nosso querido diretor”, o título de Barão de Itararé!

Ali, de uma vez por todas, essa caricatura dos poderosos, personificada primei- ramente na pele do “nosso querido diretor”, assume contundentemente a caracte- rística de personagem: o Barão de Itararé, gerando uma situação ambígua entre o personagem e seu criador em sua vida pública.

Nesta fase, o jornal muda de formato, prova- velmente(*), no ano de 1931. Passando a ser um

tablóide, A Manha ainda poderia exibir orgulho-

samente o slogan “não se vende e não se do- bra” (slogan adotado na segunda fase, quando o

A Manha era encarte do Diário de Notícias);

além, é claro, de adquirir um novo status, com- patível com os novos tempos. Ao abandonar o formatinho A4, consagrado pelos jornais dedica- dos exclusivamente a assinantes no século XIX — tradição iniciada no tempo de Araújo Porto Alegre nos anos 30 daquele século, passando pelo Vida Fluminense de Angelo Agostini e ou- tros tantos na segunda metade do século, para ser explorado à exaustão pelas gerações parna- sianas e simbolistas no final do século — mal sabia o Barão que estava sendo o precursor do que muitos anos depois veio a se chamar im- prensa nanica.

Entretanto, aquele espírito de salada de fru- tas, de bagunça estética, misturando o que ti- nha sido com o que viria, ainda prevaleceu e au- mentou em toda esta fase. E Guevara não per- deu o mote, fazendo diversos balões de ensaio, que resultaram em cinco diferentes cabeçalhos, os quais reproduzimos ao lado, a título de ilus- tração. Vale ainda lembrar que o A Manha funci-

onou normalmente até 1935 e rodou somente alguns números no ano de 1937 sob a proteção de Alzira Vargas, mas o DIP (Depto. de Imprensa e Propaganda [censura] do Estado Novo) forçou- o a fechar as portas; as quais somente reabriri- am em 1945. Em 30 de janeiro de 1938, o Barão relança a sua famosa coluna “Amanhã tem mais...” (que o consagrou n’O Globo e no A Manhã no anos 20) no Diário de Notícias do Rio de Janeiro (de Orlando Ribeiro Dantas), onde colaborou até 1944, quando relançaria A Manha.

Nono cabeçalho d’A Manha.

Oitavo cabeçalho d’A Manha.

Sexto cabeçalho d’A Manha.

Sétimo cabeçalho d’A Manha.

(*) Não podemos precisar a data exata, pois a coleção do IEB-USP (nossa fonte principal), oriunda majoritariamente do acervo do autor, tem poucos números desta fase. A mudança deve ter ocorrido entre o ano de 1931 e 34, antes da Intentona Comunista, e deve ter sido muito festejada pelo Barão e seus pares. Acreditamos que essa lacuna foi gerada pelo confisco e destruição de originais pela polícia política do governo da revolução, além das ausências motivadas pelas inúmeras prisões a que Aparício Torelly foi submetido — notadamente nos anos de 1935 e 36, quando ficou um ano preso em companhia de quase uma centena de intelectuais, profissionais liberais e militantes de esquerda; primeiro à bordo do navio de guerra Pedro I ao largo da baía de Guanabara — onde, pela primeira vez, deixa a barba crescer para nunca mais tirá-la, reforçando a sua nobreza de araque, ele brincava: “Uma barba de Pedro II cultivada à bordo de Pedro I...” — e depois na Casa de Detenção do Rio de Janeiro — o que o fez personagem do livro Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos, seu companheiro de cela. Uma pesquisa complementar na Biblioteca Mário de Andrade e na Biblioteca Nacional (coleção mais completa do A Manha) deverá

O sexto cabeçalho do A Manha surge logo após o término da parceria com

Assis Chateaubriand, e ali é retomado um pouco da linguagem da primeira versão, ao aplicar o primeiro A do título em caixa baixa, em letra minúscula — como no primeiro cabeçalho —, mas num corpo maior, ampliada, para igualar a altura de to- das as letras ou simular a maiúscula. Ao retomar as formas arredondadas e as letras emendadas pelas serifas, dando um ar descontraido, estilo itálico, caligráfico, orgâ- nico e com um certo movimento, como se fosse uma onda. Contudo é usado um alfabeto meio modernista, meio Art Déco; desenhado com régua e compasso.

O abandono dos slogans e subtítulos dá a essa versão do cabeçalho um ar de modernidade pelos traços geométricos, pela limpeza e pela brincadeira do primeiro A em letra minúscula ampliada. O traço dos tipos em outline, criando uma faixa em branco em volta das letras emendadas em cor chapada, sugerem a sensação de alto-relevo (três dimensões). Pela irregularidade na largura das letras, é de se supor que este letreiro tenha sido desenhado ou, pelo menos, montado à mão.

Coincidência ou influência, uma referência ao funcionalismo da Bauhaus estava pontuado ali e os cabeçalhos seguintes confirmam esta suspeita. Não apenas pela tipologia empregada, mas pelo uso de retângulos em fios simples, muito branco e ausência de elementos de ornamentação de página.

O sétimo cabeçalho é um clone do segundo, exceto pela troca da fonte do título A Manha. E também é a primeira vez que é aplicada uma fonte sem serifa, comple- tamente construída com linhas retas. Da mesma forma que o anterior, estas fontes parecem ter sido desenhadas à mão, com régua, lápis e pincel. Aqui, volta a ter a fonte da primeira e da segunda letra aplicadas em tamanho maior, onde todas as letras estão em caixa alta, simulando a proporção correta em caixa alta e baixa (por estarem todas as letras em caixa alta, estas deveriam aparecer com a mesma altura, sem variação de tamanho): de novo, o destaque é dado à palavra manha, que come- ça com “maiúscula”. Ou seja, ainda não havia sido estabelecido um critério, uma regra única, sendo o nome A Manha muito mais significativo em termos de identida- de do produto do que sua apresentação gráfica em si. Mas o estilo direto do design funcionalista está mais presente e evidente, apresentando os desenhos cada vez mais geométricos, simplificados e de fácil reprodução. Acrescenta-se a isso, a brin- cadeira do H invertido, mostrando o traço grosso à esquerda e não à direita como nas demais letras, dando um equilíbrio à composição ao jogar a área pesada (de cor chapada) mais para o centro, simulando alguma simetria ou contrabalançando o peso do M “maiúsculo” (na verdade, M maior).

Nos anos 30, poucas empresas brasileiras tinham logotipo, mesmo por que viví- amos uma época de transição de uma economia agrária para uma economia de substituição das importações, onde a maioria da população estava na área rural e as cidades se organizavam mais em função dos imigrantes estrangeiros que abando- naram as lavouras de café do que por uma demanda social aguda — o mercado interno era incipiente e o setor de serviços praticamente não existia. A idéia de identidade corporativa como prática institucional necessária foi introduzida no pós- guerra, trazida por grandes corporações multinacionais e por agências de publicida- de estrangeiras que aqui se instalaram naquele período. Ou seja, antes disso vere- mos pioneiros isolados, que tiveram contato com o design europeu e norte-america- no, e que fizeram seus primeiros balões de ensaio, justamente, nesta época (do final dos anos 10 até os anos de 1940). No A Manha, pela perspicácia crítica, é

provável que, constatado o expediente e suas técnicas, imediatamente estabele- ceu-se uma evocação intertextual paródica.

Este foi um momento de gênese e experimentação, e com certo grau de impor- tância e significado, pois foi através da pena de Guevara — que alguns anos depois seria considerado um dos maiores Artistas Gráficos de seu tempo, suplantando os americanos e igualando-se aos europeus —, que a revolução plástica da imprensa brasileira seria realizada no começo dos anos 40; também por aquelas mãos, o A Manha mostrou sua face ao Brasil.

No oitavo cabeçalho, outra forma híbrida habita o frontispício do A Manha, e

pela primeira vez a figura do Barão de Itararé adentra o cabeçalho como um tipo ou fleuron, e é exibido entre as letras do título A Manha, em substituição aos “bebês birrentos” das laterais. Exatamente como Guevara o descrevera, com o rosto um pouco despótico e orgulhoso, de nariz empinado, o Barão ainda mantém a mesma fisionomia do “nosso querido diretor”. A fonte “Egyptian” expandida em negrito (ou um tipo de Fat face type recriado com serifas retangulares de quinas arredonda- das) é retomada, aplicada totalmente em caixa alta e sublinhada por uma grossa e pesada linha. O visual limpo é mantido, com apenas uma linha menos grossa que a do sublinhado, em cinza e sobre o título; e duas linhas finas ao pé arrematando, completando e informando os demais dados do cabeçalho.

É interessante notar que o aparecimento da imagem do Barão, do personagem, do humorista é mais significativa do que a mudança do visual em si, e ocupa um destaque nunca antes tido. Talvez fosse um reflexo daqueles tempos personalistas, mas que já tinham presenciado o final da idade dos magnatas e conviviam com uma nova realidade social no pós-guerra e no pós-depressão. Também não podemos descartar o “faro” de Guevara para as coisas do marketing, valorizando o persona- gem e indicando um sistema de identidade visual para o nosso herói.

Intuo que as discussões sobre forma e função no design gráfico já haviam che- gado ao Brasil, e os artistas se engajavam nestas. O gosto de Guevara pelo Cubis- mo e pelas formas geométricas já estava explícito e em harmonia com seu tempo: estava em pleno auge a estética Art Déco, e o conhecimento sobre os posteres e trabalhos de A.M. Cassandre com certeza já tinham chegado ao Rio com os embai- xadores europeus. A projeção dos trabalhos e instruções de produção em papel quadriculado à lápis foram decorrência das preferências estéticas de Gue, o que dinamizava o trabalho da equipe do A Manha: na imprensa nunca antes havia-se

trabalhado com espelho e boneco da publicação; no máximo o compositor tipográfi- co fazia provas de prelo ou “malas de impressão”— ou talvez uma única cópia de prelo manual inicial para a revisão do texto, nunca do design.

Oitavo cabeçalho d’A Manha.

No nono cabeçalho começa a acontecer uma mudança mais significativa, sob todos os aspectos — mas é uma paródia explícita, uma brincadeira com o cabeçalho do jornal A Manhã, dessa época — uma cópia exata com a troca dos nomes —, que naqueles tempos (em 1935) era dirigido por Pedro Motta Lima. Aqui também é de se supor que o mesmo tenha sido desenhado por Guevara para o A Manhã, talvez por isso a brincadeira. Ou não, poderia ser um expediente corriqueiro do Barão, para brincar e espezinhar a grande imprensa ou troçar com os amigos e colegas. Mas o “sotaque” funcionalista da Bauhaus é cada vez mais explícito e enaltecido.

A primeira mudança drástica refere-se ao tamanho do cabeçalho e da logomar- ca, que, ao invés de preencher toda a largura da caixa de texto, transforma-se num selo, com a largura menor do que duas colunas, exatamente como Guevara faria, anos depois, para o projeto do jornal Última Hora em 1951. A objetividade na apre- sentação dos dados repetitivos, diminuindo o tamanho das informações redundan- tes para dar espaço para outras utilizações é evidente; mesmo que fosse apenas para aumentar as áreas em branco, fazendo o design respirar no meio de tantas letras, desenhos e fotografias. Era comum nas capas dos jornais brasileiros este design “apertado” e poluido, herança da linguagem dos primeiros posteres xilográ- ficos afirmada na imprensa tipográfica.

A fonte utilizada adquire formas geométricas primárias e arredondadas e se apro- xima muitíssimo da fonte Bauhaus, exceto pelos traços horizontais que vazam para a esquerda, mania de Guevara pelo jeito, pois o mesmo tratamento é dado no quinto e no sétimo cabeçalhos. E, a posição dos traços horizontais das letras, desalinhados (observe o A e o H), é um indício, não somente, de que a fonte foi desenhada à mão,

“com régua e compasso”; mas da concepção premeditadamente desalinhada. A aplicação dos textos em caixas de linhas retas é compatível com o design da fonte principal, e o alinhamento mais à direita do conjunto título+galo+caixa inferior realçam a linha horizontal vazante à esquerda das letras, conferindo-lhe sentido e esclarecendo a intenção de seu criador. Essa falta de simetria num ambiente com- pletamente geométrico também gera uma certa inquietação e abre a possibilidade do galo passar por baixo das pernas do N e pular para o primeiro plano. Com certeza,

este é o cabeçalho mais conceitual que o A Manha teve, demonstrando, Guevara

(se foi ele mesmo o autor, não temos a certeza, é uma suposição), toda a sua geni- alidade e sua acuidade como Designer Gráfico.

Não temos nenhuma informação sobre o contato de Guevara com a famosa escola de design alemã, mas esta funcionava desde 1919 e foi fechada em 1933: a natureza cosmopolita do Rio de Janeiro, onde pessoas de alto nível (diplomatas) frequentavam a vida sócio-cultural da cidade, provavelmente trouxeram para o Rio os debates da arte engajada européia e norte-americana. O estilo Bauhaus rompeu completamente com as estéticas anteriores, com a arte Vitoriana e o Art Nouveau, criando um design arquitetônico, gráfico e de produto extremamente originais e inusitados para seu tempo, com o uso de formas geométricas simples e das cores primárias chapadas, o elementar; sendo a grande influência e o berço da arte abstra- ta do pós-guerra; e o esteio do design funcionalista modernista.

Insisto, a fama da Bauhaus pode tranqüilamente ter chegado à Capital Federal, o Rio de Janeiro; e a natureza revolucionária de Guevara, que desde os primórdios pendeu para o traço cubista, pode ter-se valido daquilo para fazer suas experiências no espaço libertário do Barão. Também não descarto a possibilidade daquilo ser uma criação original, pois estamos falando de Andrés Guevara, o único artista que des- pertou a curiosidade e trocou influências recíprocas com o extraordinário e genial J.Carlos nos anos 20; que mudou a cara da imprensa brasileira nos anos 40 e, que ganhou diversos prêmios internacionais por seus desenhos e projetos gráficos. In- felizmente, o A Manha pára de circular em dezembro daquele longínquo 1935 em

virtude da prisão de Apporelly.

Para nossa sorte, o “único paraguaio que venceu o Brasil” ainda teria a chance de criar mais um cabeçalho para o A Manha em 1937, antes de partir para a Argen-

tina, de onde retornaria apenas em 1941 para fazer o projeto da revolucionária Folha Carioca; o pioneiro da mudança total na plástica da grande imprensa nacional, tra- zendo a contribuição do projeto gráfico e da figura do diagramador para a nossa imprensa diária.

Numa versão mais light e jovial, no formato tablóide, o último cabeçalho dos anos 30 (o décimo) reassume seu slogan inicial (órgão de ataques... de riso), prova- velmente em função da marcação cerrada do DIP e da necessidade de fazer juz à proteção que a primeira dama lhe outorgava — o próprio Getúlio lhe era simpático, e as divergências políticas nunca foram transpostas para o nível pessoal. Após a que- da do Estado Novo, que na pena ferina do Barão era definido como ‘’o estado novo é o estado a que chegamos...”, Getúlio, já eleito senador, foi visto visitando o nosso hilário fidalgo nos escritórios d’A Manha.

Através de di- versos relatos de amigos e compa- nheiros de Aporelly, sabe- mos que, além de sua inteligência e cultura, seu cons- tante e costumei- ro bom humor, mesmo nas situa- ções mais trági- cas de sua vida, não o fizeram per- der a alcunha da bondade; mesmo naquelas situa- ções em que se poderia perder o amigo, mas não a piada. Isso lhe permitiu circular li- vremente pelos mais diversos meios, sempre sendo o centro das atenções e lhe rendendo uma popularidade viva na memória do povo carioca, que até hoje relembra suas troças e chistes.

Neste décimo cabeçalho (acima), a fonte utilizada no título parece uma caligrafia a pincel numa fonte moderna: todo em caixa alta e com as linhas horizontais atra- vessando e vazando as letras de fóra a fóra, o eterno traço central das letras ondu- lante de Guevara, o traço ligeiramente estilizado e irregular, transmite uma certa harmonia, elegância e leveza, assim como, a mesma sensação de movimento sua- ve de todas as versões. O tratamento gráfico é inconfundível: quem publicaria uma Charge de página inteira na capa do jornal? Somente O Pasquim, a partir de 1970; 33 anos depois.

Nessa versão, com o aumento do formato do jornal, este ganha mais espaço para publicar suas matérias, e isso é aproveitado mantendo-se quase a mesma lar- gura das colunas anteriores; provavelmente, com a finalidade de não alterar muito o corpo (tamanho) das fontes utilizadas nos textos das matérias. Assim apareceu a quinta coluna, que seria muito usada para as piadas sobre o final da guerra na fase seguinte (exemplo na página seguinte) e o lugar onde Apporelly se vingaria de seus algózes, após o fim do Estado Novo.

Quarta fase d’A Manha