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A voz do diabo ou o canto do primeiro anjo

Capítulo IV ─ A voz, o ritmo e o inconsciente

4.3 A voz do diabo ou o canto do primeiro anjo

Parte deste subtítulo plagia deliberadamente o título da obra de Michel Poizat (1991),

La voix du diable, e não o faz sem razão. Trata-se de aproximar a questão da voz e do canto

com o profano e o diabólico, numa vertente que Poizat explora com rigor e honestidade, percorrendo pontos importantes da religião e da música e demonstrando as mais íntimas relações da música com o gozo e o satânico.

A proximidade da voz com o diabólico pode se centrar naquilo que ela tem de gozo, de um gozo fálico que se expressa no lirismo. Afinal, o canto, ou mesmo a voz como pré- configuração para o canto, traz algo da relação com a música. Como já mencionamos, a voz é cantada à medida que ela obedece a um ritmo, uma melodia e uma tonalidade muito própria. Deste modo, a voz está numa fronteira em que, de um lado, encontramos a linguagem; e, de outro, a música. No lado que faz fronteira com a música, encontramos, sobretudo, o gozo no cantar, o prazer que emana da música, uma vez que ela não se inscreve como um conjunto de signos, mas como um conjunto harmônico de sons. Esses sons são os responsáveis por, em alguma medida, provocar certa incitação do corpo, que faz com que o corpo entre em movimento. Nesse movimento corporal, há algo da sexualidade que desperta e que provoca gozo, assim como o próprio canto é produtor de gozo, pela excitação mesmo da música. Lembremos que, no conhecido mito do canto das sereias, o gozo pelo canto lírico é que faz com que o pescador busque a sereia e lance-se ao mar a procura desse gozo pleno e majestoso que o encanta, mas que o conduz à morte. Em suma, a busca pelo gozo infinito conduziu o pescador à morte, por ser este um gozo desenfreado, um gozo absoluto, um gozo mortífero e diabólico.

A busca pelo gozo lírico é a busca pela diva, pela sedução da voz e do som, é a sexualidade no campo da pulsão invocante e nos desfiladeiros da voz. O canto exerce sua sedução por tocar em algo da pulsão invocante. Neste sentido, o canto toca as fronteiras da sexualidade, do pecado, da luxúria e da libertinagem. Por isso, é visto como algo do campo demoníaco, nefasto e pecaminoso. Se a voz está no liame entre linguagem e música, é do lado da música que ela irá se associar com o satânico, pois a voz, desse lado, é o corpo e o sexo, o que vem a representar o pecado da carne. Já, do lado da linguagem, esta sempre ocupou os mais sublimes lugares dos anjos e das altitudes celestes, uma vez que a linguagem é o celso

dos valores intelectuais e estéticos de uma sociedade. Aliás, a mais augusta das linguagens é a dos anjos, pois é uma linguagem sem corpo, sem voz, sem ritmo. Trata-se de uma linguagem que é pura palavra, puro significante, sentido único, tal como nos diz Parret (2002, p.17, tradução nossa): “Não há voz a escutar: os anjos são sem corpo, sem voz e, por conseqüência, sem audição.”64 Por nossa conta, acrescentamos: [...] sem sexo. Os anjos possuem uma linguagem “perfeita”, porque não ocorrem lapsos; mas, ao mesmo tempo, impossível, porque está fora da realidade sexual e corporal da existência humana. O aspecto mais elevado da linguagem humana nunca se igualará à sublime língua dos anjos.

A linguagem porta o que há de mais nobre, puro e esplêndido numa sociedade. Contudo, não será por está via que a voz se associa com o gozo, e sim no campo da sexualidade que ela desperta através da musicalidade que porta. A voz parece estar numa dicotomia entre o sagrado e o profano, entre o bem e o mal, entre o celestial e o infernal, entre o sublime e o ínfimo. Entretanto, no ponto que a estamos articulando, a voz se aproxima do profano, do infernal e do ínfimo, uma vez que está atrelada a um gozo vocal.

Satã foi efetivamente o primeiro anjo a cantar. Ele era aquele que ocupava o posto mais alto do campo celestial. No entanto, passou do céu para o inferno, pois foi aquele que, através do canto, invocou o mal, trouxe o espírito da maldade, da sexualidade, da dança e do ritmo. Ele foi o responsável por implantar o ritmo na música celestial das alturas, deixá-la com tons carnais e de sexualidade. Assim, espalhou o pecado e a maleficência pelo mundo, invocando os espíritos malignos que se atraem pelo pulsar do ritmo e do canto. Satã transformou-se no anjo mau por invocar algo do canto e da música, por profanar o sacro. Satã foi o primeiro a sexualizar o canto, a música e a voz. A partir de então, a voz passou a ser algo pecaminoso e demoníaco por estar atrelada à sexualidade. Do mesmo modo, o canto deixou de ser angelical, aquele canto das alturas, dos anjos, para ser o canto dos infernos, da voz, da luxúria, da vulgaridade e da bestialidade.

Satã cantou para se rebelar frente à palavra divina. O diabo foi o primeiro anjo a transgredir a lei de Deus. Através do canto e da música, tentou derrubar o verbo-Deus para que emergeisse o gozo lírico, o esvaziamento da palavra em face ao preenchimento do som musical. Satã foi o primeiro a transgredir a lei divina e a implantar o gozo lírico, no qual a sexualidade está presente. Nas palavras de Poizat (1991, p.158, tradução nossa): “Somente Satã pode assim se colocar em rivalidade triunfante à lei divina. Só o diabo pode assim se

64 “Il n’y a pas de voix à écouter: les anges sont sans corps, sans voix et, par conséquent, sans ouïe”. (Texto

definir como exedendo a lei do verbo-Deus, não somente porque ele lhe contraria, mas porque ele se define assim como não inteiramente regrado por esta lei.”65

O gozo lírico traz à tona a voz, o canto e a música, como estamos ressaltando, mas traz também a voz feminina. O que há de gozo está atrelado ao feminino, assim como o canto da sereia, o canto materno, a voz de Eva e o canto da diva, que portam algo da voz feminina, da voz da sedução, do agudo que desperta o gozo. Não por acaso, no cristianismo, o canto feminino, foi motivo de perseguição a mulheres durante a Idade Média. Neste período, as mulheres que cantavam eram consideradas bruxas, porque estariam evocando o diabo através do canto, estariam profanando a palavra divina ao cantar. Neste sentido, percebemos o quanto o canto está associado ao feminino, à sexualidade e ao pecado. Esses são justamente os elementos mais explorados pela ópera. Desde sua origem, a ópera não cessa de colocar em cena a questão do feminino, representado na voz da diva, bem como a sexualidade e a morte, uma vez que essa voz sempre é marcada por uma espécie de desfalecimento, tal como nos apresenta Jean-Michel Vives (2006) em ao menos dois textos de sua fantástica obra em torno da voz: La vocation du féminin e La voi(x)e du féminin: entre regard et invocation. Mais adiante, iremos nos dedicar com maior atenção à relação da voz e do feminino. No momento, nos interessa o que isto implica com o aspecto sacro e profano.

Satã é a representação do humano que não se conforma com a promessa divina de uma felicidade plena e eterna. Ao contrário, busca um gozo atual no corpo e na carne, sem esperanças para uma promessa futura. Neste sentido, transgride-se a máxima do paraíso em troca de um gozo carnal, atual e terráqueo, perturbando o projeto religioso da promessa e da existência do paraíso ─ no qual o gozo seria pleno e não haveria nem sofrimento, nem desilusões, nem angústia. Frente à derrubada desse projeto divino, se encontram os elementos que proporcionam o gozo carnal, dentre eles, a música, o canto, o ritmo, a voz, o sexo e a mulher. Desta forma, esboça-se uma divisão, um rompimento próprio daquele que é considerado como o adversário, o opositor, o acusador, o inquietador. Michel Poizat (1991, p.159, tradução nossa) nos chama atenção acerca da própria origem da palavra diabo:

A palavra “diabo” (do grego diabolos, cuja raiz primeira reenvia à “divisão”) é, portanto, particularmente pertinente nesta concepção de suas funções, assim como é pertinente pela ordem canônica já que o diabo pelo seu poder de se reencontrar aqui e lá ao mesmo tempo [...] é por essência aquele que engendra a confusão, que dissolve as preces dos fiéis e que substitui grito e urro à fala humana.66

65 “Seul Satan peut ainsi se poser en rival triomphant de la loi divine. Seul le diable peut ainsi se definir comme

excédant la loi du Verbe-Dieu, non seulement parce qu’il lui porte atteinte mais parce qu’il se définit ainsi comme non entièrement réglé par cette loi.” (Texto original).

66 “Le mot ‘diable’ (du grec diabolos, dont la racine première renvoie à ‘division’) est donc particulièrement

pertinent dans cette conception de ses fonctions, tout comme il est pertinent por l’ordre canonique puisque le diable par son pouvoir de se retrouver ici et lá em même temps [...] est par essence celui qui engendre la

O ponto é que o diabo ficou difamado como sendo esse opositor. A voz situa-se do lado do diabo por justamente ter sido julgada como gozo carnal; não ascendente aos céus. Isso se passa tanto nos mistérios do cristianismo da Idade Média como na arte profana da ópera. Na cena religiosa, a voz se aproxima do diabo naquilo que ele traz como voz grave, assim como risos, gritos, uivos, suspiros e gargalhadas que substituem a fala humana ou a palavra divina. Os gritos e urros denotam o gozo, a dor e o sofrimento. É importante observar que essas vocalizações são justamente aquelas de que tratamos no primeiro capítulo como “dejeto vocal”, ou seja, uma espécie de lixo sonoro que é considerado escatológico por não se inserir como fala, tampouco encontrar um lugar no mundo da linguagem. Por serem, por vezes, denominados como sinais paralingüísticos, até podem ter alguma serventia para a comunicação, mas o prefixo “para” ─ que significa “a margem de” ─ já demonstra o seu caráter de marginalidade frente à linguagem. Diante de tal marginalização, restou a essas vocalizações a expulsão do celestial mundo da fala e a conseqüente descida aos infernos para associar-se com Lúcifer. Em suma, essas vocalizações, consideradas como dejetos vocais, assumem um caráter de marginalidade tal que sua associação com o terror, a maldade e o pecado é quase inevitável. Os risos, gargalhadas e urros se inserem como manifestações vocais do mal e, por isso, não ocupam espaço no celestial mundo da linguagem.

A cena religiosa da Idade Média é povoada pelas vozes aterrorizantes que marcam a arte sacra barroca do Século XII, assim como, na arte profana, a aparição das vozes nos teatros e óperas marcará a inscrição do demoníaco. Inúmeras óperas fazem referência a essa inscrição, do mesmo modo que a característica vocal de Satã recupera as divindades infernais representadas na ópera barroca. É importante frisar que, de um jeito ou de outro, seja na obra sacra ou profana, a voz e a música representam algo do nefasto e demoníaco, cuja assimilação da voz grave representa de forma material a encarnação de Satanás no seio da obra de arte.

A voz de Satã vem representada na arte musical através, dentre outras coisas, da variação vocal entre o agudo e o grave e dos prolongamentos, que se executam nas óperas como forma de representar a morte e o que daí se sucede, como a passagem pelo purgatório e o juízo final. As variações vocais demonstram justamente a relação da voz com o carnal, demonstrando que ela se inscreve no corpo, num corpo sexualizado, capaz de seduzir e invocar o outro. A voz do diabo difere do canto angelical, leve e sutil, que não polariza entre o agudo estridente e o tremor do grave, pois o canto dos anjos é pautado por um tom suave e confusion, qui dissout les repères des fidèles et qui substitue cri et hurlement à la parole humaine.” (Texto original).

contínuo, sem grandes modulações, nem mesmo descontinuidades rítmicas e melódicas. Ele é caracterizado pelo sopro leve e constante, enquanto o canto demoníaco marca as variações do grave e do agudo, o ritmo frenético e intempestivo, o contratempo do ritmo. É por esta característica inquietante que a música toma os aspectos satânicos, pois o inquietante é o poder de provocar e incitar o corpo para a sexualidade. A voz incita algo da sexualidade na medida em que, através do grito, transgride a lei do pai, toca num agudo que ultrapassa os limites do corpo e da proibição divina. A ópera nos parece um exemplo interessante por colocar em cena essa transgressão vocal, por se tratar de um gozo vocal, de um gozo sonoro. No teatro, por outro lado, o gozo está mais situado no campo da palavra e do simbólico.

Na dicotomia já apresentada ─ em que, de um lado encontra-se a fala e a linguagem; e, de outro, a música e o som ─, a ópera se inscreve no lado da música e do som. Ela provoca, pela voz, um gozo vocal que não está articulado com os sentidos da fala, do discurso ou da linguagem. Trata-se de um gozo proveniente da voz, da pulsão invocante que se inscreve no ouvido, enquanto zona erógena, permitindo um circuito que perfaz a sexualidade no sujeito. Isso não quer dizer que o teatro também não possa ter esse mesmo poder de invocação e de gozo pela pulsão invocante. O que queremos salientar é o fato de que, quando acrescentamos música a uma dramaturgia, temos aí a possibilidade de tocar o sujeito por uma outra via que não a do sentido, mas a de um outro significante. Na ópera, temos, ao menos, uma aposta suplementar que vislumbra a possibilidade de um gozo, sobretudo vocal, que está para além do alcance simbólico das palavras e gestos freqüentemente colocados em cena no teatro. Isso não nos impede de considerar, por exemplo, a fascinação da impostação da voz no teatro. Fascinação esta provocada pelo impostar, despreendida das significações da palavra.

Por outro lado, também podemos considerar que a “dramaturgia” da ópera pode enfraquecer a sua musicalidade. Em outras palavras, a associação da palavra à música poderia trazer um enfraquecimento do poder de invocação e encantamento que a música provoca, pois a música deveria ser uma arte totalmente desvinculada da linguagem. A música estaria fora do âmbito linguageiro do sentido. Essa era, por sinal, uma das críticas de Nietzsche a Wagner. Para Nietzsche, a ópera de Wagner era um empobrecimento do poder e potência da música, à medida que vinculava a palava à música. A linguagem associada à música wagneriana enfraquecia a natureza pulsante e avassaladora da própria música. As considerações de Rosa Maria Dias (2005, p.14) apontam que Nietzsche lutava

[...] contra a tendência moralizante da música de Wagner, ou de qualquer outro tipo de música que tenha por objetivo querer dizer alguma coisa, “fazer falar o sentimento”, ou passar uma mensagem desse ou do outro mundo. Assim, livre da submissão ao sentido, a música desperta a criação, o poder de inventar novas possibilidades de viver e de pensar.

A música não foi feita para dizer algo, o seu poder de invocação não se situa nesse dizer; mas naquilo que ela tem de pura potência, a saber, a sua própria sonoridade, ritmia, melodia e harmonia.