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As vozes imperativas da Psicose

Capítulo I ─ Sobre a voz

1.6 As vozes do sintoma

1.6.3 As vozes imperativas da Psicose

Neste momento, tentaremos discorrer a respeito do lugar da voz no “sintoma” psicótico, uma vez que já tentamos esboçar as possíveis articulações da voz com o “sintoma” na perversão e na histeria.

Certa ocasião, Freud (carta 61, 1897, v.1, p. 296) escrevia a Fliess que se dava conta de como a histeria, a neurose obsessiva e a paranóia mostravam os mesmos elementos etiológicos. Entretanto, estes irrompiam, na formação de compromissos, com sintomatologias diferentes, ou seja, há um “pano de fundo” comum às três estruturas que se manifesta de forma diferente em cada uma delas. Da mesma forma, podemos pensar a voz na articulação com as estruturas clínicas, pois como objeto pulsional ela ocupa um lugar privilegiado na economia e dinâmica psíquica, mas irá se posicionar de forma diferenciada e desempenhar funções diferenciadas de acordo com o fantasma que rege a vida de cada sujeito. É no intuito de demonstrar a relação da voz com as estruturas clínicas, seja na formação de compromisso, seja na formação do sintoma e de seu tratamento, que estamos nos atendo a pensar a voz para além da sua importância enquanto objeto metapsicológico de investimentos libidinais pelo sujeito.

No que tange a psicose, recorremos ao caso do Presidente Schreber, dada a sua relevância clínica e o lugar das vozes na alucinação auditiva. No delírio paranóico, a voz, em geral na terceira pessoa, impõe coisas ao sujeito naquilo que diz, em outras palavras, dá ordens, faz afirmações, vozes claras, em alto e bom tom. Neste sentido, opõe-se a encenação histérica, na qual a voz falha, não funciona; na psicose ela funciona e bem claramente, não deixando margens para dúvida naquilo que foi vocalizado/escutado. O sujeito, em nenhum momento, duvida da originalidade e realidade dessas vozes; quer dizer, para ele as vozes são sempre reais e dizem coisas verdadeiras. Diferentemente da dúvida neurótica, que abre as portas para a análise, na psicose, o sujeito não questiona de onde vêm as vozes e nem o conteúdo do que é dito, apenas cumpre o imperativo. Coisas ditas, como por exemplo: “você precisa matar seus pais para evitar uma catástrofe mundial”, são penetradas no sujeito com um alto poder de realidade. O eu sempre está em evidência, sempre é o eu que deve fazer algo para evitar as tragédias, evitar um mal maior. Por isso Freud as denominava de neuroses narcísicas, dado que o eu estava em evidência, mesmo que neste caso a voz esteja em terceira pessoa, ou exterior ao eu. Freud (1911) foi genial em afirmar que as vozes não partiriam de outro lugar que não do próprio aparelho psíquico, ou seja, as vozes ocupavam, também na psicose, um lugar de destaque na metapsicologia subjetiva.

Daniel Paul Schreber era um importante jurista, doutor em Direito, um

Senatspräsident11 que circulava no poderoso meio erudito e intelectual da magistratura alemã, até o momento em que foi acometido do primeiro episódio de Dementia Paranoides, por

11 Juiz que preside uma divisão de um Tribunal de Apelação. A não aceitação do cargo imputava em crime de

ocasião da sua candidatura à eleição para o Reichstag enquanto era Landgerichtsdirektor12. O segundo episódio de crise, também surge num momento de ascensão na carreira profissional, tratava-se de assumir os deveres de um Senatspräsident, em Dresden. Nos dois momentos em que Schreber iria assumir efetivamente uma função paterna de lei e ordem é acometido de um surto psicótico. Mas como poderia fazê-lo se não havia uma estrutura psíquica que sustentasse tal função? A elaboração “sintomática” deste sujeito apareceria na forma do delírio. Schreber (1995) escreveu detalhadamente seus delírios e todo o seu sistema de realidade num livro que se encontra traduzido sob o título de Memória de um doente dos nervos, publicado pela primeira vez em 1903. Foi através deste livro que Freud teve contato com o caso e a partir dele escreveu, em 1911, o texto: Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um

caso de paranóia (Dementia Paranoides).

O que nos conta nosso ilustre jurista em suas memórias? Schreber se imputava uma missão: deveria resgatar a pureza e a beatitude do mundo, e para conseguir tal façanha, deveria ser emasculado, tornando-se mulher: “Era a idéia de que deveria ser realmente bom ser mulher se submetendo ao coito.” (SCHREBER, 1995, p.54). Para ser copulado por Deus, raios divinos iriam fecundá-lo e dele surgiria uma nova geração, um mundo puro e honesto. “Naturalmente, a emasculação só poderia ter como conseqüência uma fecundação por raios divinos, com a finalidade de criar novos homens.” (SCHREBER, 1995, p.147). Schreber experimentava essa emasculação na forma de um “milagre”, que transformava seu corpo e tudo era confirmado por vozes que conversavam com ele. Uma espécie de resíduos miraculados de antigas almas humanas falavam-lhe com inflexões humanas e coisas miraculosas aconteciam ao seu redor. No delírio schreberiano, há um sistema de realidade construída psiquicamente a partir de uma perspectiva singular da articulação deste sujeito com seu fantasma, e o fruto dessa articulação é a alucinação mental que se materializava, na realidade do delírio, na vocalização desses seres, ou seja, a produção das vozes era o que certificava o estatuto de realidade fatual do delírio.

A voz, ponto central de nossa elaboração nesse texto, também ocupava um lugar privilegiado na economia delirante do presidente Schreber, pois era através dela que advinha a certeza psicótica, mesmo quando ela zombava dele. Os ‘pássaros miraculados’ ou ‘pássaros falantes’, que detinham certo número de qualidades extraordinárias, o chamavam de Miss

Schreber, ou então diziam: “Eis um presidente da Corte de Apelação que se deixa f...”. Ou

ainda: “Não se envergonha diante de sua esposa?” (SCHREBER, 1995, p.148). As vozes inseriam-se numa fala que fazia parte daquilo que Schreber denominou de ‘língua básica’ ou

‘língua fundamental’, que não era qualquer língua, e sim a língua falada por Deus; ou seja, Schreber acreditava numa comunicação direta com Deus, através das vozes que se comunicavam pela língua fundamental que fundava todas as coisas.

As vozes, em Schreber, não eram somente sons que lhe penetravam os ouvidos, mas também eram o que saía de sua boca através dos urros e vociferações. Por diversas vezes, Schreber (1995, p.15) foi visto gritando no jardim da clínica do Dr. Flechsig: “O sol é uma puta”, “O bom Deus é uma puta”. Momentos em que durante a noite era mantido numa cela- forte devido aos acessos de agitação e vociferações. As vozes atravessam Schreber, no sentido em que o penetram através dos “pássaros falantes” e saem de seu corpo por sua própria voz. A voz que o chama de “Miss Schreber” é a mesma que diz: “O sol é uma puta”; com a diferença que uma marca a entrada, e a outra, a saída. Essa voz parental que outrora fora forcluída, lhe é, agora, atravessada. É a voz de Deus (do pai) que por não ter sido simbolizada retorna no real do corpo vocal; não é um pai simbólico, e sim um pai real que lhe marca, que usa sua voz para dizer coisas. Schreber não é um sujeito no sentido desejante e sim um objeto na mão de Deus, um receptáculo que será fecundado por raios divinos para dar luz a um novo mundo, mais justo e belo. O “fantasma” homossexual de ser penetrado pelo pai, essa figura masculina que lhe é tão cara, se realiza através das ondas sonoras vozeadas que, numa espécie de “raios divinos”, o penetram e dele brotará uma nova geração, o que equivale a novas vozes que tentam mudar o mundo. Os raios divinos que iriam copulá-lo são, em tese, as vozes (ondas sonoras) que lhe penetram, e a nova geração que ele iria conceber é a sua própria voz que sai em gritos que se espalham pelos jardins da clínica do Dr. Flechsig. É interessante notar que a palavra “seminário” tem, na sua etimologia, o significado de: “inseminação pelo ouvido”, uma vez que semen origina seminário, que é onde os futuros padres são inseminados pela palavra de Deus. O mestre Lacan também soube inseminar e disseminar seu ensino mais pela voz do que pelo escrito. Era nessa mesma “perspectiva” etimológica que Schreber seria inseminado. Isso aconteceria pelos raios divinos que lhe chegavam através das vozes dos pássaros falantes, ou seja, o delírio construía sua cena na etimologia da inseminação pelas vozes que irrompem no ouvido.

As vozes, na psicose, em geral assumem um caráter muito autoritário, que insulta, ordena, ri, chacota o sujeito; pois as vozes são imperativas, do mando, que impõem ao sujeito uma missão, em geral, nobre e importante para a sobrevivência da civilização, como foi o caso do estimado presidente. A voz não é a completa alteridade, mas aquilo que brota do sujeito, na função superegóica, e retorna a ele, na forma de alucinação auditiva, nos vocalises do supereu e de forma muito severa. As vozes que retornam são, em certa medida, as vozes

parentais que uma vez forcluídas, retornam, na realidade da sensação auditiva. Aquilo a que Freud chamou de calota acústica, o que ressoa, soa novamente de forma acústica no ouvido.

A voz na psicose nada mais é do que o objeto da pulsão, assim como na neurose e na perversão; porém, na perversão aparece como uma oscilação entre a produção vocal e sua audição, entre a voz e a audição. Na neurose, esse traço se presencia por uma ausência, por aquilo que falta ao histérico, pela voz que não se completa na afonia, na rouquidão, na asma, na tosse. E, na psicose, a voz não é falta, ausência, e sim presença, protuberância. A voz que se impõe ao sujeito exige-lhe coisas, sem ausência, mas como saliência, uma parte do corpo que se prolonga, ainda que virtualmente, para além da extremidade do orifício auricular. Em determinada ocasião, pude observar um paciente que tentava espantar as vozes abanando as mãos perto do ouvindo, como se estivesse espantando um mosquito que lhe importuna com seu zumbido. Harari (2002, p. 141, 142) em Como se chama James Joyce, lembra que se trata de voz imposta ─ “[...] aquela em que o sujeito não se reconhece como sendo seu emissor [...] voz como objeto autonomizado, o que não conota simplesmente o mero falar, senão que aponta para a voz enquanto desprendida do prório sujeito”. Na psicose, a voz é essa (i)materialidade que faz parte da realidade do sujeito, porém ela não é palpável, não se pode afastá-la com as mãos tal como se afasta um mosquito; no entanto, ela está ali a perturbar. É a voz da pulsão que fala pelo supereu no sujeito psicótico, de modo que o retorno da pulsão também está presente na psicose no momento em que a voz retorna, na forma de alucinação, na escuta das vozes impostas, o que não tem nada a ver com o ouvir interlocutivo cotidiano. O supereu, neste caso, não é somente um monstro frio, severo e feroz, mas é também um operador pulsional, e a força das vozes miraculosas nada mais são do que a potência da pulsão.

Particularmente, o caso Schreber nos faz pensar na relação da voz com o Outro, dado que a invocação ─ o chamado do Outro ─ é o que não se passa com Schreber. Este não foi invocado pelo pai a ser sujeito, permaneceu numa posição objetal. O pai que foi refutado do simbólico não se internalizou como Outro, mas voltou na voracidade do delírio, voltou sob a clave de um “pai” terrível, tirânico, déspota e autoritário. O pai da horda primitiva ilustrado por Freud em Totem e Tabu (1913) é reencarnado, em Schreber, nesse deus insatisfeito, colérico e poderoso. O mito da horda primitiva é revivido na sua relação com esse “pai” que é potente, tirânico e que retém o gozo só para si, excluindo os filhos. A invocação é um chamado para o sujeito advir, é uma aposta na possibilidade de haver ali um sujeito. Na psicose, essa invocação não se processa, e a voz que não invocou o sujeito é alucinada no

delírio através de vozes imperativas do “pai” tirânico, assim como esse próprio “pai” é alucinado sob a forma de um deus colérico e feroz.