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Capítulo III ─ Sobre o inconsciente

3.4 O Real

O conceito de real, assim como vários outros conceitos, é abordado em diversos momentos do ensino lacaniano. Como já foi mencionado, é mais no final de seu percurso ou na última parte deste que Lacan se dedica com maior ênfase a este conceito. No entanto, ele já o vinha trabalhando desde o início de seus seminários.

Em um momento muito inicial de Lacan, podemos encontrar o real quase como um sinônimo de realidade. Esse momento era caracterizado pelo Dr. Lacan, psiquiatra, que concebia o real praticamente na mesma proporção da realidade. Em breve, essa primeira acepção da palavra real daria lugar a uma primeira concepção em torno da mesma. Tratava-se, nos primeiros seminários (I, II e III), de entender o real como aquilo que escapa, como algo impossível de ser capturado ou pego. O real era o que não se podia ter como propriedade. Na aula do dia 22 de Junho de 1955, Lacan (1985, p.373) fala do “[...] fato de ele [o real] voltar, seja onde for, ao mesmo lugar.” Surge a analogia do real com os astros, na qual, assim como esses, o real é o que retorna para o mesmo lugar, com o qual sempre podemos contar, pois ele sempre está lá, onde não é pensado, no ignorado. Em outras palavras, o real é aquilo que se desprende, mas que está sempre lá, pois há o movimento de retorno ao mesmo lugar. Neste sentido, o real esta aí como presença e retorno da presença, tal como a pulsão que faz o seu circuito e retorna ao mesmo lugar. Esse “mesmo lugar” já denota tratar-se de um lugar topológico, não realizável no empírico. Um lugar que não é concreto, físico, mas o lugar do impensável, do impossível, fora do simbólico, irredutível ao real. Da mesma forma, a expressão “aquilo que” nos conduz a uma forma pronominal na qual o nome está ausente, ou seja, não há como nomear o real. O real é inominável, indizível, irredutível, sendo, talvez,

possível, dizê-lo dessa forma anominal: “aquilo que”. No artigo O Estranho, Freud (1919, v.17, p.254) nos diz de sua experiência em uma pequena cidade da Itália, na qual passeava, e por repetidas vezes se deparava com uma mesma rua onde havia vários prostíbulos. Esse retorno incessante ao mesmo lugar não era um mero acaso, nem mesmo responsabilidade dos arquitetos italianos que traçam ruas que nos confundem; mas advinha do desejo de Freud que se reinscrevia a cada momento como um real que retornava ao mesmo lugar e marcava a posição do sujeito inconsciente. O exemplo trata do real, de voltar, por vários caminhos, ao mesmo lugar.

Com o Seminário 11, surge a concepção do real como aquilo que está fora do simbólico, como aquilo que não faz laço com a cadeia significante. O real é um traço que resiste à significação, o real é o indizível, não está subordinado a nenhuma ordem ou lei. O real é a pura letra, é o que está fora do significante, como representante do simbólico, e o que está fora do signo, como representante do imaginário. Não estando o real inscrito nem na ordem simbólica nem na consistência imaginária, o real é também o que não engana, aquilo que não se submete ao binômio verdade/falsidade, nem mesmo realidade/ficção. O real é por si. O real é a letra que não tem sentido e o que está fora do sentido, uma vez que este último se passa na intersecção entre o simbólico e o imaginário. O real é a letra na medida em que não faz cadeia como o significante, nem mesmo é autoreferencial como o signo. A letra está fora do sentido, desarticulada, é uma marca, um traço, um rasto na areia. Mais a frente, o real será “aquilo que não cessa de não se inscrever.” (LACAN, 1973). Lacan entende o real não somente como aquilo que está fora do jogo, nem mesmo como aquilo que simplesmente não se inscreve; mas, principalmente, como aquilo que não cessa de não se inscrever, no qual há uma força para a não inscrição. O real, então, é a impossibilidade radical; no entanto, é uma impossibilidade presente, que marca o sujeito, um traço que o funda.

Ainda nesse momento, Lacan pensa o real como a Tyche, deusa da fortuna, a causa aristotélica frente a qual não há explicação, mas um puro acaso, uma causa cujo acaso é fruto da causa. Lacan segue a entender o real como esta causa que não se inscreve nos pricípios de causa-efeito, mas uma causa que deriva da Coisa53 ─ desse indizível do qual o real ocupa seu lugar. A coisa é o que causa e entre a coisa e a causa algo da falta se faz presente. No dizer de Lacan (1988, p. 27): “[...] só existe causa para o que manca [falta]” ou ainda “[...] entre a causa e o que ela afeta, há sempre claudicação”. O acaso surge como um não caso, mas também como uma causalidade marcada fora dos princípios da razão e fora da regra de que, para cada efeito, há uma causa. A causa real é o acaso, o encontro faltoso com a causa, o

inexplicável e inexorável da realidade daquilo que é inconsciente. Uma vez que não há representação nem para o real, nem para a falta, o inconsciente se apresenta nesta causalidade real cuja falta marca seu lugar enquanto um acaso real. “A causa é a presentificação da falta, e a impossibilidade de explicação causal é a presentificação do acaso (real).” (MALISKA, 2003, p.61).

O real possui, ainda, relações com a invenção, que difere da criação e do descobrimento. A invenção é da ordem do real, opera com causas independentes que se precipitam na formação de algo novo, diferente, sem projeto ou planejamento. O invento é o que estabelece o estatuto da “ex-sistência” ─ situar alhures, noutra parte. A invenção é o que Lacan busca em Joyce, uma outra forma de fazer com o sintoma. A experiência analítica é o ponto radical da invenção, pois a análise é o radical do real da clínica, que encontra na invenção a possibilidade diante do limite e da impossibilidade. A invenção é a direção do tratamento como forma de dar um norte para o tratamento e operar para que algo de novo seja inventado ─ não para escamotear ou superar a falta, esta está lá desde sempre, é inerente; mas é a partir da falta e dos limites que ela impõe poder fazer algo de novo com isso.

Com o desenrolar dos seminários, Lacan se aproxima das concepções matemáticas, principalmente as da topologia, e encontra aí uma maneira de mostrar algo do real. Não se trata de uma maneira de metaforizar algo sobre o real se utilizando da matemática, tal como fazia com a Lingüística em relação ao inconsciente freudiano, mas trata-se de mostrar, em ato, através dos nós e das figuras topológicas, o real. Uma vez que é impossível dizê-lo de todo, poder-se-ia, talvez, mostrá-lo. Para tanto, Lacan se aproxima da topologia e começa a desenvolver seus seminários se utilizando das ferramentas desta, deixando seu ensino ainda mais complexo, enigmático e rico. Lacan, ao explorar a topologia, vai além com o desenvolvimento do conceito de real.

De todas as figuras topológicas trabalhadas por Lacan, a mais significativa para a Psicanálise, e também a mais manejada por Lacan, é aquela que fundamenta boa parte do seu ensino, a saber, o nó borromeo. Esta figura foi apresentada pela primeira vez no Seminário

...Ou pire, na aula do dia 09 de Fevereiro de 1972, e retomada no fim do Seminário Encore.

Trata-se da figura que ilustra o brasão de uma tradicional família italiana. Lacan demonstra que, nesta figura, as amarras entre os nós estão dispostas de tal forma que o fato de desatar qualquer um dos nós provoca, automaticamente, a desatadura dos outros dois. Dessa forma, os três registros, imaginário, simbólico e real, estão sobrepostos de modo a fazer uma consistência, uma sustentação. Lacan se utiliza do nó borromeo para situar a posição dos três

registros e também suas articulações com o sentido, com o gozo, com o objeto a, com o falo, etc.

Com o nó borromeo, Lacan irá situar os três registros e colocá-los como sendo equivalentes no nó. Assim, ele retifica o que havia dito nos anos sessenta: que haveria certa primazia do simbólico e do significante sobre o imaginário e o significado. Desta vez, Lacan percebe que a análise não é simplesmente um processo de simbolização e que o significante não está em primazia, haverá também o limite para o próprio significante. Caso contrário, a análise seria uma cadeia ─ infinita ─ de significantes e de interpretações, sem haver um corte, uma barra que colocasse um limite. O real é o que faz a análise não ser apenas uma simbolização ou uma interpretação em que surgiria um deslize de significantes. O real pode pôr fim a essa cadeia e, com isso, conduzir a análise para além do rochedo da castração. Em outras palavras, aceitando os limites do significante, pode-se ir além dele e situar o real da clínica que se esboça na equivalência dos registros no interior do nó borromeo, não havendo a primazia de nenhum registro sobre os demais. Desatar qualquer um deles equivaleria a desmantelar o nó.

Por fim, Lacan acrescenta ao nó borromeo um quarto círculo, que irá nomear como “o nó borromeo de quatro”. Este quarto círculo é o Nome-do-Pai, pois o pai também é aquele que nomeia, sendo também o Pai-do-Nome, aquele que nomeia, mas que também é o Nome- do-Pai. Nesse momento, Lacan retoma a questão do pai, trabalhada mais no início de sua obra, depois de haver trabalhado com o fantasma, o significante, o objeto a e o gozo. Na retomada da questão do pai, resurge a questão da psicose ─ objeto de interesse de Lacan desde sua formação em psiquiatria e objeto de suas investigações no início de seu ensino, principalmente, do Seminário III, As Psicoses. Porém, essa retomada da questão do pai e da psicose ocorre de outra forma, bem diferente dos inícios do jovem Lacan. Naquele tempo, a psicose era lida, basicamente, pela via do narcisismo e dos seus desdobramentos, assim como a instalação da Metáfora Paterna. Nesse momento, a psicose toma lugar nas discussões de Lacan através do questionamento que este se faz a partir da obra de James Joyce e de sua possível “psicose”. Contudo, Lacan salienta que o fazer de Joyce não é sintomático, no sentido de produzir uma “verdadeira” psicose, nem mesmo trata-se de um sintoma, seja no sentido médico, psiquiátrico ou psicanalítico do termo; mas trata-se de um sinthome. Lacan busca esse termo no francês antigo para designar uma outra forma de fazer que não gera mais sintoma, mas um outro enodamento (o quarto nó) que faz com que o sujeito saiba fazer ali, com aquilo que gerava sintoma, uma outra coisa. Dessa forma, o sinthome será trabalhado no Seminário 23, que porta este mesmo nome como título e no qual Lacan se debruça com

especial atenção sobre a obra de Joyce, apostando que este soube fazer sinthome. A partir do desenvolvimento desses “últimos” conceitos do real é que foi possível, para Lacan, encontrar em Joyce esse fazer sinthomático presente em sua obra.

O sinthome, para Lacan, é um savoir y faire avec, ou seja, um saber fazer ali com

aquilo que antes gerava sintoma, mas esse “saber fazer ali com” não é a mesma coisa que apenas “savoir faire” ─ expressão corriqueira tanto em francês quanto em português, que denota simplesmente um “saber fazer”, certo métier, profissão ou manejo. O savoir y faire

avec diz respeito a certo saber fazer com arte aquilo que gerava angústia, e

fundamentalmente, não se dá sem o pai, pois é através da inscrição do Nome-do-pai que isso se passa. No entanto, o sujeito se desprende do pai. Lacan aposta que se trata de passar o pai, mas com a condição de servir-se dele. Reconhecer o pai e servir-se dele é a possibilidade de ir além. A articulação com o sintoma já não será mais de um gozo sintomático, nem será o sintoma uma formação de compromisso para uma resposta frente ao Outro. O sinthome não é a supressão do sintoma, mas uma outra articulação ligada com o pai, algo que gera prazer, diferentemente daquele compromisso que colocava o sujeito em gozo, ou seja, nos limites do sofrimento e da neurose.

Em Joyce, o pai deficitário é metaforizado na escrita e Joyce encontra, dessa forma, a suplência da ausência do pai real que lhe faltou. Joyce faz a sustentação do pai para que ele subsista através de sua obra, e se faz um nome, ou seja, Joyce faz de sua obra a suplência do pai. Lacan, por sua vez, irá ler Joyce não na via estruturalista, nem mesmo se atendo a interpretações da vida deste, embora isso também lhe interessasse; mas, sobretudo, na via do

sinthome. As polifonias, o amálgama de múltiplas línguas presente em Finnegans Wake e os

jogos com as palavras fazem, desse texto, uma obra que pode não somente ser lida e compreendida nos seus sentidos, mas também escutada em sua pura sonoridade, onde os sons parecem tomar autonomia em relação aos sentidos. Trata-se de uma obra potente e inovadora na literatura, que, para Joyce, foi o que fez com que ele pudesse, na expressão de Jung, navegar onde sua filha ─ Lúcia, diagnosticada como esquizofrênica ─ naufragava. Foi o escrito de Joyce que fez com que ele não fosse um psicótico, que evitou que tivesse tido um surto psicótico, diferentemente de Lúcia, que foi inclusive internada. A “psicose” de Joyce não é aquela da deficiência da metáfora paterna e da forclusão do Nome-do-pai, há algo que a suplementa que não é da ordem de um gozo fálico. É uma “psicose” não delirante, que proporciona a constituição do quarto círculo, que enoda-se com os demais. Este quarto nó é o

Por fim, o real é o que permite esses últimos avanços acerca do inconsciente. Esse é um dos pontos fundamentais da clínica, algo que diz respeito ao que se passa no ato analítico. Todos esses recursos e mudanças provocadas por Lacan ao longo de seu ensino constituem uma tentativa de dar conta do real, para, então, concluir que a Psicanálise é, fundamentalmente, o que se passa entre divã e poltrona. Lacan deixa essas formulações em aberto por conta de seu adoecimento e falecimento. Contudo, deixa-nos a possibilidade de seguirmos nessa direção que o real nos abre, mas também nos fecha, por demonstrar que há um limite na transmissibilidade da Psicanálise. Há algo na análise que escapa à simbolização, há um indizível que (per)siste em (ex)sistir. Isso que está sempre lá, que retorna ao mesmo lugar, que está fora do simbólico, mas também que proporciona a invenção de algo diferente, que promove o sinthome. Há um real que subsiste a tudo e que está presente. A respeito desse real, Lacan pôde dizer algo e conseguiu manejá-lo, na medida do possível, na prática clínica. O inconsciente, no seu aspecto real, está para além do imaginário e do simbólico e se refere a todos esses momentos teorizados por Lacan ─ nos quais o real passou de uma acepção de realidade para uma analogia com os astros; posteriormente, foi definido como aquilo que escapa ao simbólico; e, por fim, foi relacionado com a invenção e com o sinthome.

O conceito de inconsciente, como vimos, atravessou por diversos e diferentes percursos tanto em Freud quanto em Lacan, que o radicalizou através do real. Desta forma, não temos uma única concepção do inconsciente. É necessário, a cada vez, situar de que inconsciente estamos tratando, periodizá-lo na teoria dos mestres. Todas essas concepções acerca do inconsciente são válidas, por isso cabe dizer de que inconsciente estamos tratando, uma vez que ele sofreu alterações. É o que pretendemos tratar no tópico seguinte.