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O inconsciente topográfico

Capítulo III ─ Sobre o inconsciente

3.1 O inconsciente freudiano

3.1.1 O inconsciente topográfico

Desde Freud, há uma tentativa recorrente, por parte dos não psicanalistas, de localizar o inconsciente em algum lugar do corpo, geralmente na anatomia do cérebro ou em suas funções neuronais. Freud, no início de sua carreira e em função de sua formação em Medicina e Neurologia, também se empenhou nessa função ─ o que pode ser constatado na sua obra A

Afasia (1891), assim como na sua preocupação em lançar o projeto de uma psicologia para

neurologistas (1895). Tratava-se então de um jovem Freud, ainda mais neurologista que psicanalista, que abandonaria esse “projeto” em fins do século XIX, quando constataria que o inconsciente era uma hipótese, uma suposição. Essa suposição, porém, não era apenas teórica, mas mostrava seus efeitos no corpo pulsional, demonstrava que o corpo sofria os efeitos do inconsciente. O próprio Freud (1915, v.14, p.179) conclui: “Nossa topografia psíquica, no momento, nada tem que ver com a anatomia; refere-se não a localidades anatômicas, mas a regiões do mecanismo mental, onde quer que estejam situados no corpo”. Isso demostra que o inconsciente não é causado por uma neuroanatomia, mas possui uma topografia própria no aparelho psíquico, uma topografia não anatômica que provoca efeitos no corpo do sujeito.

Dessa forma, o inconsciente topográfico é psíquico, constituído de dois sistemas: o sistema Inconsciente (Ics.) e o sistema Consciente (Cs.). O sistema consciente inclui o Pré-

consciente (Pcs.), que se situa entre o inconsciente e o consciente. Para Freud, uma representação (Vorstellung) inconsciente somente passaria para o sistema Pcs. se esta representação fosse suportável para esse sistema. Caso contrário, ela sofreria uma (re)pressão para continuar no sistema Ics. No entanto, tudo o que é reprimido volta sob a forma de disfarces ou com alguma transformação para passar ao sistema Pcs. Se uma determinada representação foi reprimida no Ics., este irá tentar transformá-la, transfigurá-la, para que ela possa passar pela barreira da censura, responsável pela repressão e situada entre o Ics. e o Pcs. Os mecanismos inconscientes responsáveis por esta “transfiguração” da representação no sonho são conhecidos como condensação e deslocamento. Feita essa “torção”, através dos mecanismos de condensação e deslocamento, a representação pode passar pela censura e chegar no sistema Pcs. Isso ainda não significa que ela está no Cs. Mas, estando no Pcs., é capaz de se tornar consciente, uma vez que a passagem do Pcs. para o Cs. é bem mais fácil do que a passagem do Ics. para o Pcs. O consciente é uma parcela muito pequena e imediata do aparelho psíquico, de modo que as representações conscientes são aquelas que nos ocupam no exato momento em que elas estão no consciente. Há, portanto, uma parcela considerável de representações que não estão no Cs., mas no Pcs., e podem vir à consciência sem maiores dificuldades. A consciência é imediatista, enquanto que o Pcs. é uma espécie de armazenamento das representações que podem, com facilidade, vir à consciência.

Iremos nos deter, um pouco mais a fundo, na questão da passagem de uma representação inconsciente para o pré-consciente. Ao passar de um registro a outro, a representação sofre, como dizíamos, transformações para romper a barreira da censura, que se encontra entre os dois sistemas. Ao chegar no consciente, muitas vezes, essa representação parece um pouco sem nexo e sem sentido. O porquê desse “sem sentido” reside justamente no fato de que, ao sofrer a condensação e o deslocamento, a representação se transforma e, aos “olhos” da consciência, pode parecer um conteúdo totalmente estranho e bizarro. É exatamente isso que se passa no sonho, como Freud escreveu com precisão no Capítulo VII de A Interpretação de Sonhos (1900). No sonho, há os pensamentos oníricos latentes que se encontram no inconsciente. Como o sonho é uma realização de desejos, esses pensamentos tentam se realizar, em forma de sonhos. No entanto, em seu estado “bruto”, eles são insuportáveis para a consciência, de modo que precisam passar pelos mecanismos de condensação e deslocamento para chegar à consciência, em forma de conteúdos manifestos do sonho. O conteúdo manifesto é uma espécie de rébus pictórico do sonho, ou seja, são as cenas ─ basicamente imagens e sons ─ daquilo que sonhamos, independentemente se vamos ou não lembrar do sonho, mas efetivamente aquilo que sonhamos. Ademais, muitos desses conteúdos

manifestos trazem elementos paradoxais e incongruentes para a consciência, como por exemplo: barcos que navegam sobre casas, uma pessoa cuja face é de outra pessoa, e assim por diante. Esses elementos podem ser incongruentes e paradoxais para a consciência, mas totalmente aceitáveis e cabíveis para o inconsciente, uma vez que eles não são aquilo que aparentam ser, mas sim representantes de uma representação inconsciente ─ que não pode advir à consciência e, por isso, permanece reprimida no inconsciente.

Cabe acrescentar ainda que uma representação inconsciente, quando passa para o sistema consciente, estabelece um novo registro, diferente do anterior. É totalmente cabível, para o aparelho psíquico, que uma mesma representação tenha dois registros completamente distintos, sendo um inconsciente e outro consciente. Isso quer dizer que uma representação, quando não é reprimida, passa do sistema Ics. para o sistema Pcs. Contudo, ela não deixa de ser Ics., apenas ganha um novo registro em um lugar diferente daquele inicial, sem, no entanto, perder o primeiro. O fato de uma representação passar do registro inconsciente para o registro consciente não significa que ela deixe de ser inconsciente, tampouco que a repressão deixe de atuar sobre ela. O que se passa é que ela ganha um novo registro no momento em que consegue “transformadamente” passar pela censura. Desta maneira, os registros consciente e inconsciente são topograficamente distintos, contendo formas diferenciadas de uma mesma representação.

No inconsciente, não existem afetos, se bem que existem representações. Os afetos são conscientes, tais como a angústia, que é consciente e é sentida pelo sujeito dessa forma. O que pode acontecer é uma representação ligada a este afeto permanecer inconsciente através dos efeitos da repressão ─ o que já não será mais um afeto, e sim uma representação, pois o afeto mesmo sempre será consciente.