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O eloqüente silêncio das histéricas

Capítulo I ─ Sobre a voz

1.6 As vozes do sintoma

1.6.2 O eloqüente silêncio das histéricas

Passamos, então, à questão da voz articulada com o sintoma neurótico. A experiência clínica nos permite demonstrar que a voz aparece no neurótico como aquilo que falta. No momento em que tenta se posicionar como sujeito, ocorrem afonias, gagueiras ou certo afinamento da voz, tosses.

A voz, ou a falta dela, na histeria, é apontada por Freud (1905[1901]) em, no mínimo, dois casos: o conhecido caso Dora e, no menos conhecido, caso Srta. Rosalie H. descrita na sessão concernente ao caso Srta. Elisabeth Von R. (FREUD, 1893). Em ambos os casos, acompanhamos uma perda da voz, que vem, em Dora, um pouco disfarçada na falta de ar, que não deixa de ser um elemento central para a fonação. “Assim também tossir é modo de dar voz – o que atesta que a paralisia das cordas vocais se acha simultaneamente frustrada (a muda histérica se trai, no que faz vibrar estas mesmas cordas vocais... para tossir).” (ASSOUN, 1999, p.32).

A voz que falta ao sujeito é o desejo reprimido, aquilo que se furta ao sujeito na execução da voz. Num processo de conversão, isto é, somatizado no corpo, na falta de ar, na constrição da garganta que provoca um fading no sujeito, uma síncope que o descentra, algo lhe escapa. É justamente no momento em que o sujeito é requisitado a comparecer enquanto tal, a se haver com seu desejo, que algo falta, que se esvai num sopro fraco e fugidio. Tal como aponta Lacan (1959, tradução nossa) na classe 17 do Seminário 06: “O fading é o que se produz em um aparato de reprodução da voz quando esta desaparece e reaparece ao capricho de alguma alteração no suporte mesmo da transmissão.”10

No caso da Srta. Rosalie, a queixa aparece por comichões nos dedos e na garganta. A voz que não sai é o silêncio que insiste em denunciar a relação incestuosa que é perpassada pela violência do tio mau, assim como a docilidade do tio bom. Neste último, a violência é deslocada para a tia, esta que na sua juventude abdicara da voz de cantora, e agora, inveja o órgão fonador da sobrinha com o qual encanta seu marido com sua amável voz. Cantar era, para Rosalie, seduzir os homens. Logo, não podia exercer tamanha sedução na presença da tia, e a repressão atua na supressão da voz, naquilo que falta. Rosalie se permitia (en)cantar para o tio somente quando a tia, como um órgão repressor e rival externo, não estivesse em casa. Certo dia, cantava, enamorando-se do tio, quando percebeu a presença da tia, fechou o piano e jogou longe a partitura como que partindo sua voz. Os dedos que antes tocavam o tio mau, agora tocam para o tio bom. Entre o mau e o bom, esconde-se o desejo sexual de

10 “El fading es lo que se produce en un aparato de reproducción de la voz cuando ésta desaparece, se

desvanece y reaparece al capricho de alguna alteración en el soporte mismo de la transmisión.” (Versão em espanhol).

Rosalie, que retorna sobre seu corpo nos comichões das extremidades, na constrição da garganta, no sufocamento e nas freqüentes afonias.

Foi um professor de canto de Rosalie quem a autorizou a utilizar a voz não somente como prazer de cantar, mas para ganhar dinheiro e poder se sustentar fora do violento ambiente familiar. Apesar de deixar este lar hóstil, seus sintomas não deixam seu corpo e vai morar com outro tio; dessa vez, o tio é o bom, bondoso demais pelo seu encantamento, provocando ciúmes na tia; e nos desfiladeiros da partitura do sintoma, uma lembrança de molestação sexual pelo tio mau a faz sujeito desejante em que é necessário reagir ao desejo, negá-lo, suprimi-lo, gritar através de seu silêncio afônico sua suposta posição de menina vítima e violentada e não da sereia sedutora que encanta os tios com sua voz.

Em Dora, encontramos um caso clássico de histeria, cuja sintomatologia converte-se no corpo em afônia, tosses, ronquidão na garganta e dispnéias. O ar que faltava, causava incômodo à jovem Dora que relutou por muito tempo em procurar a psicanálise como tratamento, e chegou ao consultório do Dr. Freud através de um imperativo paterno. Dora estava envolta por uma trama amorosa inconsciente que envolvia, em primeira instância, o amor pelo seu pai, e o ciúme de qualquer mulher que dele se aproximasse; mas a dramaturgia inconsciente arquitetava suas peças de modo muito mais complexo, e Dora protagonizava uma cena cujo texto (des)conhecia. Na gramaticalidade do texto inconsciente operava uma transferência do amor paterno para o Sr. K., um amigo íntimo da família que dedicava especial atenção para com Dora, interesse que ultrapassava os limites da amizade. Dora também admirava muito a Sra. K., mulher que lhe servia de confidente para as questões sexuais e a iniciara, junto com uma antiga governanta, no discurso da sexualidade. Para com essas, Dora manifestava um sentimento ambíguo que oscilava entre a admiração, do tipo: “[...] me ensine a ser mulher para poder conquistar meu pai, assim como você o faz”; e um sentimento amoroso homossexual, não escutado por Freud. Era um sentimento dúbio: de amor, pela iniciação sexual, e ódio, pela rivalidade na disputa pelo amor do pai, uma vez que a mãe, nessa história, estava rebaixada a funções domésticas.

Havia, portanto, uma espécie de pacto entre os casais, uma vez que o Sr. K. enamorava-se com Dora, e esta se permitia enamorar, num relacionamento sedutor e secreto; seu pai enamorava-se com a Sra. K. Um não “atrapalhava” o namoro do outro, esse era o pacto. No entanto, o conflito surgia em Dora, ao não conseguir ser a mulher que era a Sra. K, que havia lhe traído, contando para seu marido, que por sua vez, contou ao pai de Dora, sobre seus interesses sexuais ao ler livros desse gênero. Dora disputava com a Sra. K. o amor de seu pai, uma vez que o marido da Sra. K ela já havia conquistado. A própria doença de Dora era,

mesmo na afônia, na completa ausência de voz, uma forma de chamar o pai. “Isso eqüivale a dizer que a interrupção da função vocal é traduzível como apelo ao outro faltoso, o que dá alcance clínico à noção de uma pulsão parcial, de que o órgão é o lugar” (ASSOUN, 1999, p. 33). Em relação a Sra. K., Dora mantinha a rivalidade na disputa pelo pai, mas também o desejo de ser como a Sra. K., uma mulher sedutora e poderosa, que seduzia inclusive a Dora, pois Dora teve sua iniciação sexual, mais no campo da palavra do que do ato, com a Sra. K.; e aí residia um núcleo fantasmático sedutor com traços homossexuais, para o qual Freud foi mouco, e isso fez Dora abandonar (um acting out) o tratamento. A maneira como se referiu a Sra. K., “ela me traiu”, da mesma forma que ficou prostrada quando descobriu que a governanta não a admirava por ela mesma, mas estava apenas interessada em seu pai. A Sra. K. a iniciou nos conhecimentos sobre o sexo e depois a delatou dizendo de seus interesses sexuais; logo, a Sra. K. havia lhe traído. Dora costumava elogiar o corpo da Sra. K. e isso também nos mostra um traço de afeição pelo mesmo sexo.

O sintoma de Dora estava intimamente ligado à dramaturgia que compunha essa novela romântica. O adoecer era a forma de sentir a ausência do pai, que também estava transferido para o Sr. K., pois também adoecia quando o Sr. K. viajava e melhorava com o seu retorno, ao contrário da Sra. K. No mutismo histérico, a escrita desempenhava o lugar da fala, daí a escrita fluída que pode ser testemunhada nas inúmeras correspondências trocadas com o Sr. K. durante suas viagens: “[...] quando o amado estava longe, ela renunciava à fala; esta perdia seu valor, já que não podia falar com ele. Por outro lado, a escrita ganhava importância como único meio de se manter em relação com o ausente.” (FREUD, 1905, v. 7, p.47). Assim como a carta de despedida, onde aludia a um possível suicídio foi colocada na escrivaninha de modo a ser encontrada pelo pai, e neste sentido, a voz, ausente na afônia, faz-se presente na escrita de modo a clamar pelo pai. Efetivamente esse ato teve efeito, pois a partir disso o pai ficou muito preocupado com ela, e dedicou-se mais intensamente a ela. Logo, Dora estava tão presa em seu sintoma, que seria difícil descolá-la dessa aliança que fez com o sintoma com objetivos de satisfação pulsional.

O sintoma de Dora, que no corpo girava em torno do aparelho fonador, era também o lugar em que ela sabia que era utilizado para o sexo: o sexo oral. Justamente aí onde sofria de irritação na garganta e na cavidade bucal. “Portanto, não surpreende que nossa histérica de quase dezenove anos soubesse da existência desse tipo de relação sexual (sucção do órgão masculino), criasse uma fantasia inconsciente dessa natureza e a expressasse através da sensação de cócegas na garganta e da tosse.” (FREUD, 1905, v.7, p.56). Situação esta que faz referência a pulsão oral presente já na mais tenra infância, na vida do lactante ao sugar o seio

materno, a chupeta, o dedo e outros. Neste momento do texto freudiano, percebemos uma oscilação entre a pulsão oral e a invocante. Por mais que esta última tenha sido aclarada por Lacan, Freud, neste momento, parece dar indícios para se pensar a pulsão invocante ao mesmo tempo em que relaciona esses sintomas com a pulsão oral. De todo modo, podemos assegurar que uma não exclui a execução de outra.

É fácil notar que a irritação fonatória mostra a hipersexualização desse órgão, e mesmo na sua falência, no seu não funcionamento, é aí que ele funciona enquanto objeto da pulsão, ou objeto a, objeto causa de desejo, por ser objeto faltante. É na ausência que se faz sentir sua presença enquanto objeto causa de desejo, enquanto órgão sexual. “Efetivamente está claro que quando a laringe, como órgão fonador, diz-funciona é como órgão erótico que ela super-funciona.” (ASSOUN, 1999, p.33, grifo do autor).

A voz precisa do ar para se constituir, podemos inclusive dizer que a voz é um sopro no qual lhe é atribuído um sentido, e dessa forma, a patologia histérica, por associação, espalha-se nas dispnéias, nas tosses, no catarro, na tuberculose do pai de Dora, inviabilizando todo um circuito respiratório que causa não só a afonia de Dora e Rosalie, como já foi facilmente constatada, mas também lhe falta o ar da vida, o fôlego do sexo, aquilo que animou, que deu vida a Adão, pois Deus quando fez Adão do barro precisava lhe dar vida e, num sopro, animou-o. É nesse silêncio dispnéico que a histeria vocaliza seu sintoma, que clama por sentido, que esgota o corpo hipersexualizado. A falta de ar denota a nevralgia ofegante da relação sexual, a hipersexualização da voz, dos gemidos, da respiração, do fôlego como aquilo que falta na relação sexual. A excitação do “aparelho” fonoarticulatório sensibiliza a laringe, a glote, os pulmões; a garganta coça, a boca seca. “Faltou fôlego”, é essa a expressão freqüentemente usada na cultura para dizer que algo não se realizou porque faltou desejo por parte do sujeito, tal como a menina Dora escuta as ofegações do pai durante a cópula no quarto contíguo. A ausência de ar nos tubos respiratórios, e conseqüentemente fonatórios, assume para a afonia, guardando suas diferenças singulares, a mesma relação que a ausência de sangue nos vasos penianos assume para a impotência. De um jeito ou de outro, a relação sexual se faz pela sua falta, na ausência de um fluído, naquilo que falha.