• Nenhum resultado encontrado

Capítulo II ─ Sobre o ritmo

2.6 O ritmo e o inconsciente

Para finalizar este capítulo concernente ao ritmo, tentaremos, sob último subtítulo, aproximar as relações entre o ritmo e o inconsciente, ponto que é de fundamental importância para nosso trabalho e que introduz o capítulo seguinte, dedicado a fazer uma espécie de revisão do conceito de inconsciente em Freud e Lacan.

O ritmo e a voz se articulam de diferentes formas com o inconsciente, uma vez que este conceito também passa por algumas mudanças ao longo da teoria psicanalítica, algo que vai desde o inconsciente representacional em Freud até o inconsciente estruturado como uma linguagem em Lacan, considerando aí os últimos seminários de Lacan, que tentam aproximar a experiência inconsciente de uma dimensão real, da qual o simbólico não dá inteiramente conta, fazendo com que Lacan se utilize da topologia e da matemática para tentar mostrar aquilo que a palavra não consegue representar.

Cabe ressaltar que as diversas passagens do presente texto que abordam o ritmo o fazem de forma a articulá-lo com o inconsciente, pois não é nosso objetivo fazer uma teoria do ritmo ou da música. Se conseguimos, em alguma medida, pontuar algo a respeito do ritmo, isso somente foi possível por considerarmos esse ritmo submetido a uma dinâmica inconsciente. O ritmo mais como um elemento da subjetividade do que da própria música.

Neste sentido, podemos considerar que todo o ritmo de nosso corpo, seja o da caminhada, seja o dos batimentos cardíacos, seja o da respiração, seja o da voz, têm íntima relação com o inconsciente, na medida em que expressam um estado subjetivo; ou seja, o ritmo é um efeito do inconsciente, é aquilo através do que podemos sustentar, dentre outros argumentos, a hipótese da existência do inconsciente. O ritmo da voz, por exemplo, é afetado por esta hipótese; a voz sofre efeitos não só no ritmo, mas também no seu timbre, altura e volume. O inconsciente é o que dá condições para a voz, mas também pode ser aquilo que a perturba, como já vimos na afonia, na gagueira, etc.

O ritmo na sua articulação com o inconsciente traz à tona a questão do tempo, que é extremamente relevante para a Psicanálise, pois uma das características centrais do inconsciente, que Freud (1915) aponta no artigo O Inconsciente, é a atemporalidade da realidade inconsciente. Segundo ele, a realidade inconsciente não está disposta de forma sucessiva em uma linha temporal, seus elementos coabitam de forma indistinta e

indireferenciada, de modo a provocar a atualidade da realidade inconsciente. Essa atemporalidade nos diz que o inconsciente não esta submetido às leis temporais, e esse prefixo de negação ─ “a” ─ mostra que o inconsciente não é afetado pelo tempo, e o tempo não lhe diz respeito. Como se articulariam então ritmo e inconsciente, sendo que eles não compartilham esse elemento central que é o tempo?

Não se trata de compreender o inconsciente fora de toda e qualquer ordem temporal, mas de entendê-lo dentro de uma temporalidade muito particular, sem qualquer outro modelo aproximativo. Isso quer dizer, tratá-lo dentro das policronias do inconsciente, ou seja, das multiplicidades do tempo na estrutura do sujeito. A atemporalidade nos mostra que, no inconsciente, o tempo está disposto de uma outra forma; trata-se de um tempo particular a cada sujeito e que não está previamente disposto na linha temporal que o imaginário tenta organizar, mas que mostra uma dinâmica muito própria, capaz de introduzir um tempo sincrônico na cadeia significante, um tempo que não é este da sucessividade, mas da

synchronie. Colocamos o termo em francês por causa de sua homofonia, que pode remeter a

“sem cronos”, ou seja, o inconsciente está inscrito em uma temporalidade que não é a cronológica, mas num tempo lógico. É esse mesmo tempo lógico que constitui o ritmo, pois este também não opera sobre uma linha sucessiva, progressiva e ascendente, mas, ao contrário, provoca repetições que se mostram, a cada vez, com diferenças; o ritmo provoca a síncope, a descontinuidade, a alteração entre batidas rápidas e lentas, fortes e fracas; enfim, a temporalidade do ritmo também não é essa histórica, da linha do tempo ─ e é nesse ponto em comum que ritmo e inconsciente se articulam de forma a produzir efeitos recíprocos que recaem sobre o sujeito.

Outro importante ponto de articulação, é este referente à repetição com diferenças, que, de certo modo, ambos operam. O ritmo repete com diferença, a cada vez que, ao produzir um som, o faz de um modo diferente. Tal como o inconsciente, não se presta a mera reprodução. O inconsciente lida com a repetição como aquilo que se faz de forma diferente, não se tratando em nenhum momento da reprodução, nem mesmo do idêntico, mas aquilo que traz algo de novo nesse (des)conhecido. Naquilo que há de mais íntimo em nós, traz algo de estranho e estrangeiro; portanto, há diferença na repetição. Aliás, é através dessa inquietante estranheza que sabemos do Outro, daquele que nos invoca, que nos faz movimentar pelo poder de invocação que sua voz possui. A pulsão invocante é algo que nos remete ao Outro, é através da invocação que sabemos algo desse estranho/familiar Outro. O ritmo, assim como o inconsciente, não é lugar de reprodução, mas de repetição com diferença; ou seja, uma

repetição que marca a diferença, uma repetição que não é a do mesmo ou do idêntico, mas que, em cada momento, marca algo de singular e novo naquilo que é antigo.

Pode-se, por vezes, considerar que o ritmo tem um caráter repetitivo e cíclico; por exemplo, na cadência, há algo de iterativo que retorna de modo periódico. Neste sentido, poderíamos considerar que há algo de previsível, uma vez que a iteração rítmica traria algo de conhecido. Essa primeira apreciação se esvai quando analisamos a questão mais a fundo e percebemos que a iteração do ritmo tem algo de imprevisível, na medida em que ela coloca em cena a síncope, a improvisação e a diferença em cada novo movimento. A própria etimologia de iteração remete a “iter”: “outro” e “de novo”. Ademais, o ritmo não é puramente repetitivo; pois ele pode muito bem engendrar algo de intempestivo, de inesperado, de imprevisível, algo que provoca certa surpresa no sujeito, visto que o descentra, o desloca de um compasso a outro, numa metonímia temporal em que síncope é a protagonista. Neste sentido intempestivo, o ritmo se aproxima do inconsciente, pois este último também porta algo de inesperado, que descentra o sujeito, o tira de um estado objetal para colocá-lo num lugar de sujeito desejante. O inconsciente é aquilo que porta algo de imprevisível, aquilo que o sujeito desconhece, mas que esta no íntimo de seu ser e que lhe agita. O inconsciente traz algo da síncope por descentrar o sujeito; o inconsciente traz algo de novo naquilo que é familiar; e, neste sentido, se aproxima do ritmo, naquilo que a síncope engendra o novo ao quebrar a reprodução daquilo que seria idêntico. Para tentar ilustrar o que estamos querendo dizer, poderíamos considerar que o inconsciente é como se fosse um jazz, em que o ritmo não é dado, mas construído no improviso da música e no contratempo do compasso, constituindo algo da inquietante estranheza, mas também da invenção, na medida em que está em cena o improviso e o jogo.

O inconsciente, assim como o ritmo, porta algo de intempestivo, na medida em que, em ambos, somos confrontados com algo que nos chega de súbito, num improviso que nos toma e nos domina repentinamente, nos deixando sem domínio sobre o corpo ou sobre o movimento do nosso corpo. Trata-se de um estranho ritmo, ímpeto, que nos impulsiona, nos comanda; pois este comando é aquele da invocação que o Outro exerce sobre nós, fazendo- nos servos desse Outro que tem o poder de invocar, de conduzir, nesse ritmo estranho, sedutor, intrigante e apelativo, que nos impulsiona em direção a esse Outro, que nos coloca em marcha em direção ao Outro, num movimento corporal incontrolável. É a articulação do ritmo com o inconsciente que provoca os efeitos desse chamamento ao qual estamos subordinados e pelo qual somos invocados.

2.6.1 Acaso e cadência

O inconsciente vai em direção ao acaso, no sentido de que ele se refere a um caso, que é o sujeito, e é dessa forma que nos referimos aos pacientes, um caso. Caso, na sua etimologia, significa “aquilo que cai”, tal como os objetos corporais nas suas relações sincopadas com o sujeito. O inconsciente também traz algo de infortúnio, de inesperado, de um acaso cuja causa não está inscrita nas causas da razão lógica do pensamento positivista, nem mesmo são aquelas descritas por Aristóteles. Causa que remete a uma ordem real, em que aquilo que causa não pode ser descrito e quantificado, pois se trata de uma ordem única e inconsciente. Freud (1901, v.6, p. 253) não acreditava em casualidades: “[...] creio no acaso (real) externo, sem dúvida, mas não em casualidades (psíquicas) internas”; pois, para ele, a causa era inconsciente, mas o que causa o inconsciente é de uma ordem do acaso, no sentido desse acaso real, algo que se aproxima da concepção lacaniana de um real, sem ordem, nem lei, que engendra o acaso como causa do inconsciente.

Já no que tange o ritmo, este vai em direção à cadência, pois o ritmo é o que engendra a cadência. Dessa forma, a cadência é aquilo que coloca o ser em movimento. Cadência e ritmo possuem uma relação de troca com o inconsciente enquanto acaso. Acaso e cadência estão um para o outro assim como o inconsciente está para o ritmo, pois a cadência depende desse acaso, e o acaso é o que irrompe e vem dar outra configuração à cadência, não aquela da reprodução, mas a de um ritmo próprio e singular a lógica subjetiva.

A cadência não deve ser entendida como algo de repetitivo no ritmo, mas como algo que foi engendrado pelo acaso, assim como este acaso do inconsciente que nos toma de maneira inusitada e repentina. O acaso e a cadência se articulam na medida em que consideramos que a cadência traz algo de inesperado, um acaso impensado, algo intempestivo que provoca, não a reprodução do idêntico, mas a repetição iterativa da diferença que vem à tona em cada movimento. É nessa repetição com diferença que reside o acaso, aquilo que pulsiona e impulsiona o ritmo numa cadência própria e singular que provoca, como efeito, um sujeito que se movimenta, um sujeito que dança, um sujeito que vai em direção ao Outro, que responde a essa invocação cadenciada que foi engendrada nesse infortúnio casual da relação sexual. O efeito dessa cadência é a constituição do sujeito ─ um sujeito que de início simplesmente responde à invocação, mas que assume, primeiro uma posição de invocado, para, num outro tempo, assumir a posição daquele que invoca, a posição daquele que produz a invocação através de seu desejo. Num primeiro tempo, o sujeito é ritmado por esta síncope, pela intempestividade desse ritmo subjetivo. Num segundo tempo, ritma, dá seu corpo à

música, para invocar algo do corpo alheio, para poder ritmar e impulsionar algo do Outro. Nos ritmos e contratempos, nas cadências e acasos, nas imprevisibilidades e intempestividades, desponta algo do desejo que estrutura o sujeito do inconsciente.