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Abordagem sócio-histórica: aspectos epistemológicos

Para Duarte (2006, p. 147), a educação deve enriquecer o indivíduo permitindo que ele “se aproprie de determinados conhecimentos que ultrapassem, cada vez mais, o pragmatismo imediatista da vida cotidiana e aproximem o indivíduo das obras mais elevadas, produzidas pelo pensamento humano”.O surdo durante muito tempo foi visto apenas pela limitação causada pela surdez e, assim, na ausência da fala, principalmente, a sociedade predominantemente ouvinte atribuiu a esse sujeito outros limites na área do conhecimento, ou seja, como não falava não aprendia. Ou aprendia apenas aquilo que tinha uma relação direta com o concreto, o tempo imediato, o que estava diante de seus olhos, limitando, assim, seu potencial de aprendizagem.

Diante dessa constatação e objetivando transformar algumas idéias preconcebidas e equivocadas, optou-se por percorrer os caminhos indicados por Duarte (2006, p. 177) por ele tomar “como referência básica a Pedagogia Histórico-Crítica” acreditando-se que esta pudesse oferecer subsídios para a investigação das primeiras aprendizagens. Ao se trazer a criança surda, em seus três primeiros anos de vida, compreendeu-se esse período como a base de todo o conhecimento. Desse modo, acreditamos que, após ter adquirido essa base, o surdo poderia

percorrer outras etapas mais complexas, podendo ser incluído nos ideais de educação, defendidos por Duarte. Este autor, conclamando outros educadores neste ideal diz que:

[...] devemos lutar por uma educação que amplie os horizontes culturais desses alunos [...] que produza nesses alunos necessidades de nível superior, necessidades que apontem para um efetivo desenvolvimento da individualidade como um todo [...] que transmita aqueles conhecimentos que, tendo sido produzidos por seres humanos concretos em momentos históricos específicos, alçaram validade universal e, desta forma, tornam-se mediadores indispensáveis na compreensão da realidade social e natural o mais objetivamente que for possível no estágio histórico no qual se encontra atualmente o gênero humano. (idem, p. 10).

Foi visando este ideal que se buscou a Pedagogia Histórico-Crítica para o atendimento da criança surda, na educação precoce. No entanto, seria necessário resgatar-se uma parte da história da educação para melhor entendimento desta abordagem educacional e, para compreendê-la, ancorou-se em Ghiraldelli Jr. (1990, p. 204-207).

A partir do início da década de 1970, pesquisadores e professores buscaram desenvolver um pensamento crítico na área da educação brasileira, já que os moldes apresentados pela educação não cabiam mais. No entanto, isso somente pôde acontecer a partir da criação da Associação Nacional de Educação (ANDE) e da Associação Nacional de Pós- Graduação em Educação (ANPEd), no início da década de 1980. Pode-se incluir aí, também, a abertura política que possibilitou um aprofundamento das pesquisas voltadas para o pensamento marxista, no Brasil.

Os estudos de Dermeval Saviani voltados para um saber/fazer político-pedagógico destacaram-se naquele período. No âmbito da Filosofia da Educação, a partir da Concepção Histórico-crítica, Saviani procurou desenvolver os fundamentos epistemológicos implícitos nessa concepção, seguindo as diretrizes de Marx, no texto „O método da economia política‟.

Baseado nos estudos de Saviani, outros pesquisadores procuraram ampliar as pesquisas educacionais. Libâneo, observando as caracterizações ideológico-políticas e didáticas das diversas pedagogias, classificou as tendências pedagógicas em dois grupos: as liberais e as progressistas. Libâneo tornou-se partidário da Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, situada na tendência pedagógica progressista, denominação criada por ele para uma práxis político- pedagógica articulada com outros movimentos sociais, na sociedade capitalista, no sentido de construção de outra forma de vida: a sociedade socialista.

Nessa atmosfera de mudanças sociais e educacionais, a teoria de Vigotski ganhou espaço na educação brasileira. Sobre essas mudanças na área educacional, Duarte diz que:

[...] muitos intelectuais da educação buscam em Vigotski legitimação para a defesa do relativismo cultural, da concepção do progresso pedagógico como um

processo de negociação de significados culturais, de interação entre o saber cotidiano do indivíduo e outros saberes [...]. (DUARTE, 2006, p. 84).

Este autor faz referência à teoria vigotskiana, ressaltando a evolução do homem a partir de um o processo social e histórico. Sobre isso, Duarte diz que:

Vigotski também tinha claro que uma psicologia deveria ser adjetivada como marxista não por estabelecer correspondências diretas entre o pensamento de Marx e os dados obtidos nas pesquisas experimentais em psicologia, mas sim por enfocar os processos psíquicos como processos histórica e socialmente produzidos, da mesma forma como Marx procurou analisar cientificamente a lógica da sociedade capitalista como um produto sócio-histórico. (idem, p. 13).

Na época, a teoria vigotskiana ofereceu um grande desafio aos professores que atuavam com o surdo, uma vez que eliminava a antiga imagem daquele aluno que, estando limitado pelas situações presentes, não poderiam avançar em seu processo de aquisição de conhecimento. Mesmo diante das pesquisas mais avançadas no campo da surdez e da educação do surdo, era necessário avançar ainda mais nas questões que envolviam o processo de ensino e de aprendizagem para o aluno surdo. Portanto, principalmente nos primeiros anos de vida da criança surda, os conceitos de Vigotski ampliaram ainda mais as relações familiares e sociais da criança, além de valorizar sua história de vida e o próprio mundo infantil. Ao trazer a questão do conceito ou significado lingüístico, Vigotski toca no ponto mais desafiante e de maior vulnerabilidade tanto para educadores quanto para o próprio surdo. Assim, ele defende que:

O desenvolvimento dos conceitos, ou dos significados das palavras, pressupõe o desenvolvimento de muitas funções intelectuais: atenção deliberada, memória lógica, abstração, capacidade para comparar e diferenciar. Esses processos psicológicos complexos não podem ser dominados apenas através da aprendizagem inicial. (VIGOTSKI, 2008, p. 104).

Além da área linguística, outro desafio para o surdo envolvia a questão das interações sociais. O surdo, principalmente aquele que apresentava grau severo ou profundo, tinha poucas possibilidades de interação em seu grupo social. Para Vigotski (apud DUARTE, 2006, p. 235), as relações humanas têm um papel primordial para a aquisição de todo o conhecimento. Assim, ele diz que “pensamento realista e fantasia têm a mesma origem, a capacidade de abstração e generalização que o pensamento humano vai desenvolvendo na atividade social”. Com isso, percebeu-se o quanto a criança surda deixava de aprender em suas primeiras interações dentro de seu grupo familiar, quando este parava de se comunicar com seu filho surdo ou diminuía consideravelmente essa atividade, limitando-se às interações mais diretas e ligadas às necessidades básicas da criança.

O papel da escola tornou-se fundamental como mediadora entre a criança e sua família. Com isso compreendeu-se que a Pedagogia Histórico-Crítica permitiria uma mudança de percepção na qual o surdo teria condições de adquirir todo o conhecimento que lhe era de direito, além de aproximá-lo de seu grupo familiar. Sobre o potencial da criança surda, Fernandes (1999, p. 76-77) defende a idéia de que “uma criança surda que não tenha sido exposta a nenhum tipo de língua (oral-auditiva ou espaço-visual), verificamos que apresenta mecanismos cognitivos, ou seja, processos mentais em atividade”. A autora reforça a ideia de que a falta de uma língua não implica perdas cognitivas.

O INES que sempre esteve buscando novas propostas educacionais que contemplassem o surdo de forma mais abrangente, em seu desenvolvimento global e não apenas linguístico, encontrou na concepção vigotskiana um excelente suporte teórico. Assim, o Projeto Político Pedagógico (PPP) do CAP/INES foi construído a partir da abordagem sócio-histórica. Entre os objetivos do PPP estão: “formar cidadãos autônomos, críticos e solidários com competência comunicativa e com capacidade de argumentação nas relações interpessoais” e “promover atividades curriculares que desenvolvam os aspectos cognitivos, linguísticos, emocionais e sociais respeitando as diferenças e assegurando a plena socialização do aluno na comunidade surda e ouvinte” (CAP/INES, 1993).

Entretanto, nesse documento encontra-se a expressão sócio-interacionista. Para tentar compreender esta expressão, recorre-se aos estudos de Duarte (2006, p. 178), assinalando que “a inclusão da teoria de Vigotski no modelo interacionista é quase uma unanimidade entre os educadores brasileiros [...]”. Esse autor esclarece, então, que “a origem do modelo interacionista está na classificação epistemológica empregada por Piaget”. Duarte aponta que “o interacionismo é um modelo biológico de análise das relações entre organismo e meio ambiente, modelo esse empregado por Piaget para analisar desde o desenvolvimento da inteligência até as formações sociais”.

Assim, Duarte elucida que “sendo o modelo interacionista um modelo biologizante, naturalmente não permite uma abordagem realmente historizadora do ser humano, isto é, não permite uma abordagem que leve à compreensão do homem como um ser histórico e social”. Esse pesquisador conclui que “por esta razão, constitui-se num equívoco a denominação „sócio- interacionismo‟ dada por psicólogos e educadores brasileiros à teoria de Vigotski” (idem, p. 179). Compreende-se com isso que a expressão sócio-histórica seja mais apropriada dentro da abordagem vigotskiana que o CAP/INES se propõe a desenvolver com seus alunos surdos.