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III ANÁLISE DOS RESULTADOS

1.4 Avaliação pedagógica

No final da pesquisa, Helena compreendia ordens simples e as propostas das atividades sugeridas pela professora através da leitura labial e da expressão corporal. Ela tentava se expressar através de sons sem significado e por gestos naturais. Além disso, seu desenvolvimento sócio-afetivo foi muito bom, passando a interagir com outras pessoas fora de seu círculo familiar, aceitando a ausência da tia e dirigindo-se para outros ambientes fora da sala de aula sem a presença dela. Seu desenvolvimento cognitivo também pôde ser avaliado positivamente, pois apresentou mudanças que apontavam para várias aprendizagens relacionadas com as Funções Psíquicas Superiores. Helena demonstrava ter adquirido boa atenção voluntária e, em consequência disso desenvolveu sua capacidade de memorizar, abstrair e generalizar.

Assim, Helena procurava objetos que tinham sido retirados de seu campo visual, demonstrando que tinha adquirido a permanência do objeto, combinava objetos semelhantes e empilhava cubos de diferentes tamanhos. E montava quebra-cabeça de até doze peças, embora ainda com auxílio. Seu desenvolvimento psicomotor ocorria de acordo com o esperado para ela considerando seu potencial de aprendizagem. Helena alcançou um grau de maturidade suficiente para interagir em diferentes ambientes e lhe permitir uma independência relativa do adulto. Para Winnicott (1983, p. 80) “a maturidade do ser humano é uma palavra que implica não somente crescimento pessoal, mas também socialização”. Ao trazer essa ideia Winnicott (idem) acrescenta que “a independência não é absoluta. O indivíduo normal não se torna isolado, mas se torna relacionado ao ambiente de um modo que se pode dizer serem o indivíduo e o ambiente interdependentes”. Helena aprendeu “de forma não expressa (mentalmente), a planejar sua atividade”. Ao mesmo tempo ela requisitava a “assistência de outra pessoa, de acordo com as exigências do problema proposto” (VIGOTSKI, 2007, p. 19). Observando-se as aprendizagens que Helena havia adquirido, pode-se compreender que ela buscava resolver seus problemas de acordo com o esquema apresentado por Vigotski. Helena fazia “tentativas diretas de atingir o objetivo”, utilizando-se de seu próprio corpo como instrumento e tentava utilizar-se de fala dirigida à pessoa que estava próxima a ela, às vezes através de sons sem significado, outras vezes apontando para o objeto de sua atenção. Para Vigotski (2007, p. 42) “a potencialidade para as operações complexas com signos já existe nos estágios mais precoces do desenvolvimento individual”. A partir das aprendizagens adquiridas por Helena, observou-se que a criança já estava neste estágio.

2 A “Bonequinha”: uma criança imaginária diante da criança real

No primeiro encontro Alice demonstrou ser uma criança feliz. Sorriu e interagiu com todos os adultos que encontrou no ambiente da Educação Infantil. Porém, a criança não saiu do colo de sua mãe. Ao falar com a professora, a mãe aparentava tranqüilidade. Tal estado foi se alterando através de suas palavras ao relembrar aquela criança que até um ano de idade mantinha uma interação com seus pais como qualquer criança daquela fase. A surdez de Alice foi adquirida após o primeiro ano de vida, e seus pais não aceitavam tal diagnóstico. Stelling (1996, p. 64) aponta que os pais ouvintes que têm um filho que nasceu surdo ou ficou surdo nos primeiros anos de vida “apresentam-se fragilizados nos primeiros tempos, encontram inúmeras dificuldades à sua frente e, quase sempre, alteram seus planos de vida em função desta nova situação”. Esta autora acrescenta que:

Os pais ouvintes com filhos surdos têm que ter assegurado o seu direito de saber tudo sobre a surdez. Precisam habituar-se com a nova situação. Têm necessidade de um tempo para entender o que se passa na relação com este filho „estrangeiro‟, que não compartilha da sua língua e, portanto, é próximo fisicamente, porém distante linguisticamente. E, mal absorveram a ideia de terem tido um filho diferente, é exigido deles uma postura de vida também diferente. (STELLING, 1996, p. 67).

Isso aconteceu com os pais de Alice. Entre todas as mudanças ocorridas em sua vida, uma delas foi a de ter que reorganizar os horários de seus empregos para que cada dia um deles levasse a filha para a escola. Mas isso foi importante para que a professora-pesquisadora pudesse apontar para o pai e a mãe de Alice o potencial de sua filha. Assim, tiveram a chance de compartilhar da educação de Alice. Essa situação era incomum na educação precoce, pois dificilmente um pai acompanhava o filho surdo nesses atendimentos, e tudo que se referia à educação da criança ficava a cargo da mãe. Porém, o pai não quis responder ao questionário pedagógico, ficando essa tarefa para a mãe de Alice.

Resgatando o histórico da surdez, ela se emocionou bastante quando relembrou dos momentos em que a criança ainda ouvia. Assim, ao responder sobre a causa da surdez a mãe disse que desconfiou da falta de audição da filha após uma bronquiolite. Segundo ela, a criança ficou internada durante quatro dias para tratar de sua saúde e, ao retornar para casa, os pais observaram que ela não tinha reação para os sons. Ao ser questionada em que período isso ocorreu, a mãe respondeu que a criança tinha um ano e cinco meses, mais ou menos. Sobre o histórico familiar, ela desconhecia qualquer caso na família relacionado a problema genético ou de síndrome que sugerisse a perda auditiva da criança. Entretanto, lembrou que uma das tias de seu marido era surda, mas que, segundo a família do marido, foi causada por meningite, adquirida, também, na infância. Compreendeu-se que não existia nenhuma relação entre uma surdez e outra. Além disso, segundo a mãe de Alice, a gravidez foi tranqüila, e o bebê nasceu a termo. De acordo com suas respostas ao questionário pedagógico, o período da surdez era conhecido, entretanto, assim como no caso anterior; restava apenas uma suspeita sobre sua causa, pois não havia um laudo médico que a confirmasse.

As respostas da mãe sobre o primeiro ano de vida do bebê foram todas positivas, apontando para um desenvolvimento normal de acordo com os pesquisadores desse período da infância. Na área do desenvolvimento psicomotor, a mãe disse que o bebê sustentava a cabeça; rolava de um lado para outro; sentou-se; engatinhou; levantou-se e caminhou sem ajuda, de acordo com a evolução infantil. Continuando, disse que a criança pegava os objetos que estavam ao seu alcance; trocava-os de uma mão para a outra; batia palminhas, imitando outra pessoa; e procurava aqueles que desapareciam de seu alcance visual. Sobre o desenvolvimento sócio-

afetivo, as respostas da mãe indicaram que a criança tinha um “ambiente suficientemente bom” (WINNICOTT, 1983) que favorecia diferentes experiências e que lhe permitiram as aprendizagens próprias do primeiro ano de vida. Dessa forma, a mãe respondeu afirmativamente quando questionada se o bebê era risonho e se ficava no colo de pessoas fora de seu núcleo familiar. Respondeu, também, que a criança não chorava na presença de pessoas estranhas e nem sem motivo aparente.

As respostas da mãe sobre o desenvolvimento linguístico e auditivo de Alice indicaram uma criança que ouvia todos os sons, inclusive os da voz humana. Assim, a mãe respondeu que Alice se assustava e acordava na presença de barulhos fortes e que se virava ao ouvir esses sons, procurando-os. Além disso, a mãe afirmou que o bebê prestava atenção ao som da fala do adulto, que tentava repetir os sons que os adultos emitiam e que começou a balbuciar e a emitir sons, sem significado. Segundo sua mãe, Alice compreendia os rituais da casa, como a hora do banho, do alimento, de dormir, assim como as palavras que ouvia. Todos esses pontos respondidos afirmativamente pela mãe indicaram que a criança, até um ano de idade, tinha a audição normal. Couto (s.d., p. 18) afirma que “a criança que ouve, partindo do balbucio, entra na fase linguística estabelecendo a relação palavra-objeto [...]”. Portanto, todas as respostas apontavam para pais dedicados com uma criança que se desenvolvia plenamente e que estava pronta para adquirir a língua materna.

Ao ser questionada se a família tinha o hábito de passear com a criança, a mãe respondeu que sim. Ao responder se a criança, no primeiro ano de vida, prestava atenção ao som da fala do adulto, também disser sim, mas que, quando parou de ouvir, foi ficando dispersa e sua atenção reduzida. Desse modo, compreendeu-se que a história de vida de Alice foi marcada por dois momentos. Inicialmente a criança vivenciou as interações do primeiro ano de vida, como criança ouvinte, adquirindo as aprendizagens próprias desse período; depois, como criança surda, a vida se transformou tanto para ela quanto para seus pais. Sendo assim, todos tiveram que se adaptar a essa nova realidade. A mãe de Alice disse que, após ter completado um ano de idade, a criança não emitia sons com significado porque adoeceu, passando a se comunicar com os pais utilizando o gesto de apontar.

Então, ao responder se a criança prestava atenção ao movimento da boca do adulto, nos segundo e terceiro anos de vida, a mãe respondeu que não. Ao ser questionada como a família se comunicava com a criança, a mãe respondeu que era através de gestos naturais e

criados dentro da família. Respondeu, também, que a criança preferia se comunicar por gestos. A mudança de uma modalidade oral-auditiva para uma viso-espacial provocou uma série de interferências na qualidade das interações produzidas naquele grupo familiar e, gradativamente, a

criança foi se tornando desatenta; nem os sons mais fortes despertavam-lhe a atenção. Ao perguntar à mãe se a criança prestava atenção aos sons fortes, como do avião e de fogos de artifício, procurando a fonte sonora, a mãe respondeu que antes, demonstrava ter mais atenção

para esses sons. Sua resposta pode sugerir uma forma de surdez que não ocorre imediatamente, mas que provoca uma perda auditiva progressiva.

Após o diagnóstico de surdez, os hábitos familiares continuaram, mas a forma de comunicação mudou. Diante da surdez e sem a orientação necessária, os pais não souberam manter as interações que permitiriam novas aprendizagens para sua filha. O sonho da criança imaginária se desfez diante da criança real. Nessa situação nova toda a família deveria se (re)estruturar para acolher aquela criança que, não sendo uma estranha, passou a ser e ter uma nova realidade. Um conjunto de sinais visuais foi mantido, em substituição aos sons da fala, como o sorriso e a expressão dos olhos e da face, movimentos que adquirem para a criança surda a equivalência da voz humana (COUTO, s.d., p. 17). No entanto, mesmo diante do novo, o ser humano desenvolve a capacidade de reencontrar seu ponto de equilíbrio. Esse movimento em direção ao (re)equilíbrio se configura como uma das propostas do trabalho de apoio e orientação familiar.

Como Alice já estava com mais de dois anos ao iniciar na educação precoce, a maioria das respostas de sua mãe sobre esse período de vida foi afirmativa em relação às aprendizagens da criança até aquele momento, mas eram aprendizagens que não tinham ligação direta com a percepção auditiva. Assim, a criança tinha autonomia para caminhar sem ajuda, correr, pular, subir e descer escadas, segurar um copo para beber água, tentar tirar e colocar calçados e roupas, assim como interagir com os brinquedos e objetos atribuindo-lhes funções corretas e contextualizadas. Essas foram as aprendizagens que Alice trouxe para a escola. Demonstrava, também, um grau de maturidade suficiente para interagir com crianças e adultos no ambiente escolar, mas apenas na presença da mãe.

Entretanto, a professora observou que Alice ainda usava fraldas e chupeta e que não se detinha por muito tempo nas atividades que ela mesma tinha escolhido. Alice se mantinha ligada à mãe através do olhar, e esta traduzia para a professora todos os desejos da filha. Ao menor sinal de desagrado, a criança corria para a mãe que tratava de solucionar seus problemas. Um dos pontos evidenciados e que deveria ser trabalhado com aquela criança seria a retirada da fralda e da chupeta. Essas duas formas de dependência, provavelmente, estavam impedindo a criança de se desenvolver mais rapidamente e de assumir uma postura mais independente. Além disso, a postura da mãe indicava sua falta de conhecimento sobre a surdez e, como consequência, das potencialidades que sua filha possuía e poderia desenvolver com o auxílio da família.

A professora percebeu que, na troca de olhares entre a mãe e a criança, existia um ponto de tensão entre ambas, que provavelmente estaria ligado à dificuldade de comunicação. Alice e sua mãe desenvolveram um código linguístico entre elas, através do olhar ou do gesto de apontar. Assim, a criança tinha seus desejos realizados, e a mãe recebia dela seu sorriso. Sua mãe comentou que Alice chorava de pirraça e que, na maioria das vezes, não tinha lágrimas. A professora percebeu em sua fala que ela fazia de tudo para não contrariar a filha, por isso estava sempre tão atenta aos movimentos da criança. Provavelmente, em casa, ela dificilmente era contrariada, e este choro do qual sua mãe falou poderia ser uma forma de Alice chamar a atenção de seus pais. Brazelton (1990, p. 7) diz que “quando ocorrem com frequência sintomas cujo intuito evidente é chamar a atenção dos pais, estes devem ser vistos como um sinal de alerta, indicando a existência de problemas latentes”. Neste caso específico, o problema estava na dificuldade de comunicação entre Alice e seus pais. Brazelton (1990, p. 7) acrescenta que “se a criança necessita de um sintoma para expressar seus conflitos, precisa igualmente de atenção genuína dos pais às suas preocupações”.

Alice foi matriculada na EP em dezembro de 2008, porém somente iniciou os atendimentos em fevereiro de 2009, com dois anos e dez meses de vida. No primeiro dia de aula, Alice manteve-se próxima de sua mãe com aquela mesma postura de olhar para ela sempre que desejava algo. Assim, cada atividade oferecida pela professora e que desagradava à criança, esta olhava para a mãe aguardando sua intervenção e seu consentimento para pegar outro objeto. Em vários atendimentos a mesma situação foi observada. A criança pouco interagia com a professora porque estava sempre esperando que a mãe lhe fizesse as vontades. Ao perguntar como era a rotina de Alice, em casa, sua mãe respondeu que a criança não parava para brincar. Estava sempre de castigo, pois, constantemente, fazia travessuras e mexia nos objetos da casa, quebrando-os. Por isso não podia ficar sozinha.

A professora perguntou sobre o horário em que a criança ia dormir, e a mãe respondeu que Alice só dormia por volta de duas horas da madrugada, ou seja, depois que a própria mãe, terminando seus afazeres domésticos, ia dormir. Ao ser questionada sobre essa rotina, a mãe disse que, para trabalhar fora, deixava Alice com uma tia durante o dia. Acrescentou que a criança chegava dormindo e somente era acordada por volta de meio dia. Esta rotina era mantida porque, assim, a tia podia fazer suas tarefas domésticas sem se preocupar com a criança. A professora avaliou que isso se tornou um grande problema, pois interferia não apenas no ritmo biológico de Alice, mas também, nas interações entre a criança e seus familiares.