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Autonomia e as aprendizagens complexas

III ANÁLISE DOS RESULTADOS

1.2 Autonomia e as aprendizagens complexas

Para Vigotski (2007, p. 156), “um sistema funcional de aprendizado de uma criança pode não ser idêntico ao de uma outra, embora possa haver semelhanças em certos estágios do desenvolvimento”. Apesar de a professora ter focado seus objetivos no processo de autonomia de Helena, através da sua separação da tia e do caminhar livremente, muitas aprendizagens foram adquiridas pela criança nesse intervalo de tempo.

Helena desenvolveu a atenção dirigida muito rápido. Mesmo nos momentos em que estava no colo da tia, seus olhos percorriam todo o espaço da sala de aula. Essa atenção visual lhe permitiu olhar para o rosto das outras pessoas e para os objetos. E a tia respondeu positivamente às perguntas do questionário pedagógico sobre o desenvolvimento psicomotor; sócio-afetivo e o desenvolvimento linguístico de Helena dizendo ter ocorrido após seu ingresso na educação precoce. A criança passou a prestar atenção ao movimento da boca do adulto. Segundo a tia, a família se comunicava com Helena falando para ela e apontando para os objetos e situações. Isso fez com que ela olhasse para a professora que também se comunicava com Helena através da fala. Assim, Helena passou a tentar se comunicar através da fala, por um processo de imitação, mas também, porque estava ouvindo alguns sons relacionados à área da voz humana. De início seus sons não tinham significado. Isso ocorreu no período em que recebeu o AASI. Todavia, seu aparelho teve um problema que não foi solucionado no período em que Helena estava sendo atendida. Mesmo sem o aparelho a criança continuou tentando emitir os sons da fala, mas não evoluiu para os sons com significado. Acreditou-se que, se ela continuasse a usá-lo, poderia adquirir o conceito linguístico através da audição com a ajuda do aparelho de amplificação sonora e o trabalho especializado de fala. Entretanto, compreendeu-se, também, que o fato de Helena ser uma criança bastante atenta estava relacionado com sua percepção auditiva, sendo que uma foi condição para a outra, ou seja, ela era atenta porque tinha um bom resíduo auditivo e, tendo um bom resíduo auditivo, poderia melhor direcionar sua atenção aos estímulos do meio ambiente.

O bom desenvolvimento global que Helena vinha tendo foi confirmado através das respostas que sua tia deu ao ser questionada se, quando estava em casa, a criança prestava atenção à televisão. Respondeu que sim. Isso era um ponto positivo para que Helena passasse a se concentrar por um tempo maior em outras atividades. Por outro lado, a criança que tem atenção dirigida desenvolve rapidamente sua memória e outras funções psíquicas mais complexas. Helena passou a se interessar por duas atividades desenvolvidas na sala de aula que se tornaram muito importantes para outras aprendizagens da criança.

Livro ilustrado

Helena gostava muito de folhear os livrinhos de histórias infantis que havia na sala de aula. Sabendo que o interesse da criança auxiliaria no processo de aprendizagem, a professora passou a adotar essa estratégia com ela. Algumas atividades são mais interessantes para uma criança do que para outra. As atividades que Helena realizava na sala de aula, na maioria das vezes, eram escolhidas por ela. A atividade que envolvia o livro ilustrado era uma delas.

A professora colocava vários livros na frente de Helena que folheava cada um deles. Às vezes, a criança escolhia apenas um, colocando os outros de lado. Folheava as páginas, uma de cada vez, com cuidado. Para uma criança na sua idade isso era muito significativo porque, geralmente, ainda não conseguem fazê-lo com a mesma atenção de Helena. No início, mesmo os livros estando de cabeça para baixo, e Helena não tendo esta percepção visual, continuava a folheá-lo até a última página. Às vezes, se detinha em uma figura olhando seus detalhes. Ria, vocalizava alguns sons olhando para a professora e apontava para as imagens daquela página. Seu comportamento sugeria que, em seu pensamento, muitas situações se inscreviam naquela gravura ou cena. A professora, procurando acompanhar sua imaginação, apontava, também, para as gravuras nomeando-as e dramatizando. Vasconcelos, falando do material didático utilizado com o surdo, enfatiza a importância do material visual. Pode-se incluir aí o livro ilustrado. De acordo com esta autora:

Em todas as classes, ao lado do material convencional, nacional ou estrangeiro, a gravura é o nosso principal material. É usada com finalidades as mais variadas: aquisição de vocabulário, ilustração de conhecimentos, leitura labial, redação, avaliação psicológica. Para esta última finalidade, usamos uma coleção com temas sugestivos e de conteúdo emocional. (VASCONCELOS, apud CEIV, 1982, p. 30).

“Cantinho da Boneca”

Outra atividade preferida por Helena estava em um canto da sala de aula: tinha uma cozinha em miniatura com uma pia, pratos, copos e talheres, um fogão e panelinhas. Ao lado tinha uma geladeira, com ovos, garrafas para água e algumas vasilhas. Depois que ela passou a caminhar e a ficar sozinha na sala de aula com a professora, teve oportunidade de explorar os espaços e ali estava sua brincadeira preferida. Ao chegar, a criança se dirigia para esse “cantinho” e convidava a professora para brincar com ela. Sua comunicação era bastante clara: quando a professora estava olhando, Helena olhava para ela e, com algum objeto da “cozinha” nas mãos, esticava os braços fazendo um convite ou oferecimento para a professora. Ao se

aproximar, as duas se envolviam numa grande brincadeira. Helena repetia um ritual: fazia a comida, oferecia para a professora, e as duas comiam juntas; depois colocava água no copo e oferecia para a professora; por último, lavava a louça guardando-a nos lugares certos. Às vezes, além da professora, Helena trazia uma boneca para a brincadeira. Na imaginação de Helena, a boneca era uma criança que, talvez na regra da brincadeira, fosse ela mesma. A professora, conversando sobre essa atividade com a tia, esta disse que enquanto estava na cozinha fazendo suas tarefas, Helena ficava ao seu lado e pedia para ajudá-la.

Vigotski (2007, p. 108) diz que “a criança em idade pré-escolar envolve-se num mundo ilusório e imaginário onde os desejos não realizáveis podem ser realizados, e esse mundo é o que chamamos de brinquedo”. Segundo este autor a imaginação “não está totalmente presente na consciência de crianças muito pequenas”; entretanto, acreditou-se que Helena estava começando esse processo através da sua brincadeira, pois naquele período ela estava com mais de dois anos e meio. Seria possível dizer que Helena, como uma criança surda, estava adquirindo as primeiras aprendizagens dentro de uma faixa estabelecida pelas pesquisas como a ideal. Vigotski considera “o começo da imaginação humana na idade de três anos”. As brincadeiras de Helena possuíam muita imaginação e ela sempre criava situações novas, mesmo aquelas com o mesmo tema. Outro fato importante que apontava para suas várias aprendizagens através dessa atividade era o fato de que existiam regras e Helena as seguia. Ela era a sua tia naquele momento em que brincava. Assim, agia como sua tia, obedecendo às mesmas regras que envolviam a situação real. Para Vigotski essas regras não são aquelas “previamente formuladas e que mudam durante o jogo, mas as que têm sua origem na própria situação imaginária”.

As brincadeiras de Helena se tornaram mais criativas, marcadas pelo desenvolvimento da atenção voluntária, da capacidade de memorização, abstração e generalização. Fica reconhecido, assim, que a criança surda, através de suas ações, desenvolve-se a partir das funções elementares para as mais complexas. Nascimento (2007, p. 172) fala da importância da participação da família na sala de aula, pois, observando a ação da criança, o adulto “passa a compreender que o surdo possui grande potencial a ser desenvolvido, da mesma maneira que todas as crianças: brincando”. Portanto, observou-se que a tia de Helena, compreendendo essa forma de “ensinar”, investiu nas brincadeiras com a criança e sempre que chegava aos atendimentos dizia que Helena estava brincando direitinho com suas irmãs e primas. E assim, nesse espaço lúdico vivenciado tanto na escola quanto em casa, Helena adquiriu maior grau de atenção. Para Nascimento (2007) durante a brincadeira “a criança observa e explora diferentes objetos adquirindo a capacidade de classificá-los de acordo com seus

atributos”; além disso, “cria soluções novas para os diferentes problemas que surgem em cada atividade e vai adquirindo, aos pouco, noção de tempo e espaço”.