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Organizadores psíquicos e o conceito “não”

Spitz (2004, p. 118) explica o termo „organizador‟ como utilizado pela embriologia e que “refere-se à convergência de várias linhas de desenvolvimento biológico em um ponto específico no organismo do embrião”. A consequência desse processo vai levar “à indução de um conjunto de elementos agentes e reguladores chamados „organizador‟, que influenciará processos de desenvolvimento posteriores”. Dessa forma, Spitz (2004, p. 119) procurou observar esse desenvolvimento biológico nos setores da personalidade. Sendo assim, ele compreendeu que “o resultado dessa integração é uma reestruturação do sistema psíquico em nível mais elevado de complexidade. Esta integração é um processo delicado e vulnerável que, quando bem sucedido, conduz ao que chamo de um „organizador‟ da psique”.

A partir desse estudo Spitz (2004, p. 120) concluiu que o organizador psíquico marca “um ponto crítico, claramente visível no comportamento da criança”, sendo ele “de importância extraordinária para a progressão ordenada e livre do desenvolvimento infantil”. Ele acredita que “se a criança estabelecer e consolidar com êxito um organizador no momento apropriado, seu desenvolvimento pode prosseguir na direção do próximo organizador”.

Spitz cita três momentos bastante significativos em termo de organização psíquica. Além disso, são momentos que propiciam inúmeras aprendizagens para a criança, principalmente nos primeiros dois anos de vida. Pode-se entender que a base dessas aprendizagens é a linguagem não verbal; assim, a criança surda pode ter acesso a todas elas. Tais organizadores são os que continuam evoluindo para a autonomia da criança surda e para o significado linguístico.

3.4.1 O sorriso no processo interativo

Spitz cita o sorriso como o primeiro organizador psíquico, sendo ele uma “resposta de sorriso recíproco”. Ele diz que o sorriso é o sintoma visível de que houve a “convergência de diversas correntes de desenvolvimento no aparelho psíquico”. Para Spitz (2004, p. 119), “o estabelecimento da resposta de sorriso indica que essas correntes foram agora integradas, organizadas, e irão operar, daí em diante, como uma unidade distinta no sistema psíquico. A emergência da resposta de sorriso marca uma nova era no modo de vida da criança”.

3.4.2 A ansiedade do oitavo mês

Outro momento que provoca mudanças radicais tanto na personalidade da criança quanto em seu comportamento é denominado por Spitz (2004, p. 162) como “ansiedade do oitavo mês”, que ele considerada como o segundo organizador psíquico. De acordo com seus estudos, a idade em que isso ocorre se situa por volta do oitavo mês de vida, e esta variação depende de fatores muito significativos: a capacidade de dois indivíduos se relacionarem, a qualidade dessa relação, a personalidade dos envolvidos, as condições ambientais e culturais, entre outros fatores.

Segundo Spitz (2004, p. 162), a ansiedade do oitavo mês é a prova de que a criança reconhece todos como estranhos, com exceção de uma única pessoa que, “dotada com atributos estabelecidos pelo cognitivo (olhar) e pelo afeto, não é mais confundida com nenhuma outra”. Ele acredita que, ao atingir o segundo organizador psíquico, a criança demonstra ter um grau de amadurecimento capaz “de descarregar tensão afetiva de uma maneira intencional, dirigida, ou

seja, voluntariamente”. Para Spitz (2004, p. 163), isso permite não apenas “uma satisfação mais eficiente das necessidades, como também a realização voluntária e dirigida da obtenção de prazer”. Ele conclui que “o encaminhamento bem-sucedido das transições de uma fase para a seguinte age como um catalisador para uma mudança brusca no desenvolvimento infantil”. (2004, p. 165).

3.4.3 “Não”: o balançar da cabeça e a proibição

Para Spitz “o meneio negativo da cabeça „não‟ é o terceiro organizador psíquico. Ele o considera também, e talvez principalmente, o primeiro conceito abstrato formado na mente da criança”. De acordo com este autor:

[...] torna-se bastante evidente que não é imitação pura e simples. É verdade que a criança imita o gesto da mãe. Mas é a criança que escolhe as circunstâncias em que deve usar esse gesto e, mais tarde, quando deve usar a palavra „não‟. Ela usa primeiramente o gesto, quando recusa algo, seja uma solicitação ou um oferecimento. (SPITZ, 2002, p. 188).

Spitz (2002, p. 189) continua dizendo que “não é simplesmente um traço de memória onde a criança associou o gesto e o meneio de cabeça da mãe, mas, sim, uma evidência de que a criança é capaz de apreender seu significado”. “[...] esta fase do desenvolvimento é marcada pelo conflito entre a iniciativa da criança e as apreensões da mãe”. O autor conclui que “o estudo cuidadoso das circunstâncias que levam a criança ao domínio do gesto de meneio negativo da cabeça revela que é o resultado de um complexo processo dinâmico”. Spitz (2002, p. 189) enfatiza que “o principal fato intelectual necessário para tais abstrações e generalizações não pode ser explicado através da simples acumulação de traços de memória”.

Fazendo um paralelo entre a criança ouvinte e a criança surda Quadros e Schimiedt (2006, p. 20) dizem que por volta de dois anos de idade a criança surda começa a utilizar a negação não manual através do movimento da cabeça para negar, bem como o uso de marcação não-manual para confirmar expressões comuns na produção do adulto. Tal fato constatado por essas autora pode ser comparado ao uso do meneio de cabeça a que Spitz se refere, indicando que a criança ouvinte já adquiriu o conceito; porém, somente depois é que faz uso da palavra. Isso comprova que a criança surda, antes de utilizar a língua como um instrumento, seja ela oral ou de sinais, utiliza o gesto e a expressão corporal para expressar esse conceito adquirido em suas experiências.

Vigotski (2008, p. 34) cita que Wallon, Koffka, Piaget, Delacroix e muitos outros, estudando o desenvolvimento de crianças ouvintes, e K Buehler, em seu estudo sobre crianças

surdas, constataram que dois pontos importantes ocorrem na criança antes que ela compreenda o verdadeiro significado da palavra. Primeiro, ela não faz um relacionamento entre palavra e objeto; de início considera a palavra como um atributo ou propriedade do objeto e primeiro “apreende a estrutura externa objeto-palavra antes que consiga apreender a relação interna entre o signo e o referente”. O segundo ponto faz referência ao fato de que a descoberta da criança sobre o significado ou conceito linguístico passa por “uma série de longas e complexas transformações [...]”.

Vigotski (2008, p. 104) acredita que “o desenvolvimento dos conceitos, ou dos significados das palavras, pressupõe o desenvolvimento de muitas funções intelectuais: atenção deliberada, memória lógica, abstração, capacidade para comparar e diferenciar.” Ele conclui que “esses processos psicológicos complexos não podem ser dominados apenas através da aprendizagem inicial”. Sua afirmativa vai ao encontro das de Spitz e diante desses estudos não se pode negar que, para a criança surda chegar a utilizar uma palavra ou um sinal, precisará vivenciar inúmeras experiências com o auxílio do adulto ou brincando com outras crianças e, assim, poderá se apropriar de seus significados.