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ABUSO DO DIREITO E AS RESPONSABILIDADES PRÉ E PÓS CONTRATUAL

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 102-106)

Como regra, o abuso ocorre no curso da relação contratual, na exigência descabida de cláusula que se mostra contrária às exigências da boa-fé. Por princípio geral, o comportamento correto, leal, deve estar presente desde as tratativas negociais e em seguida na formação do contrato, como estabelece o art. 1337 do Código Civil italiano:

"Trattative e responsabilitá precontrattuale. – Le parti, nello svolgimento delle trattative e nella formazione del contratto, devono comportarsi secondo buona fede".

Da mesma forma o art. 227 do Código Civil português, que expressamente exige a ocorrência de culpa para a responsabilização pré-contratual:

"Quem negocia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nas preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte".

Ensina ROGÉRIO FERRAZ DONNINI 109 que essa modalidade de

responsabilidade civil, no direito português, abrange os deveres de proteção, de informação e de lealdade, que, infringidos, quebram a confiança entre os futuros

109

"Responsabilidade Pós-contratual – No novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor", Edit. Saraiva, São Paulo, 2004, p. 50.

contratantes e, em conseqüência, a culpa assim apurada ("in contrahendo") de quem rompeu as negociações imotivada e injustificadamente gera ao lesado a reparação dos danos causados.

O mesmo autor abrange na proteção pré-contratual a repressão ao abuso do direito, bem como as regras dos artigos 113 e 422, este último ao estatuir a cláusula geral da observância da boa-fé objetiva 110.

E a responsabilidade pré-contratual sem dúvida alguma possibilita a ocorrência do abuso, por exemplo no que BREBBIA denomina “retiro de las tratativas” ou na hipótese de “revocación de la oferta”, embora o abalizado mestre argentino exija a ocorrência de culpa do agente em tais situações, considerando que a doutrina do ato antifuncional – do artigo 1.071 do Código argentino, que torna defeso o abuso – não se enquadra exatamente em tais casos 111.

O exercício abusivo do direito, porém, em desconformidade com a boa-fé objetiva, claramente envolve também o pós-contrato, já que o art. 422 do Código Civil exige sua observância na conclusão e na execução da avença, o que envolve o curso

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ob. cit., pp. 58/59; art. 113: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração"; art. 422: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". Ensina o citado autor: "Portanto, o novo Código Civil, no art. 422, ao determinar que na conclusão do contrato têm de ser observados os princípios de probidade e boa-fé, trata da responsabilidade pré-contratual, além desse dispositivo ser considerado o que se denomina "cláusula geral", que tem origem no § 242 do Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB). A cláusula geral de boa-fé (art. 422 do novo Código Civil) exige, dessa forma, que as partes observem nas fases pré-contratual, contratual e pós- contratual os princípios da boa-fé e probidade".

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Confira-se a opinião de BREBBIA, que remete o abuso à doutrina da responsabilização subjetiva: “En el fondo del problema del abuso del derecho, el investigador se encuentra con el hecho innegable de que siempre que se ejerce un derecho de manera contraria a los fines que la ley tuvo en cuenta al reconocerlo, se presume la existencia de culpa. Cuando en nuestro derecho positivo se alude a ruptura intempestiva, se está aludiendo en realidad a una ruptura culposa. No puede dejar de ser tal, la ruptura efectuada arbitrariamente, la cual necesariamente vicia el deber de diligencia especial creado entre los precontratantes como consecuencia de las tratativas preliminares".(“Responsabilidad Precontractual”, Buenos Aires: Ediciones La Rocca, 1987, p. 68).

da relação negocial, mas igualmente a responsabilização pessoal após sua extinção, ainda que cumprido regularmente o contrato em todos os seus termos. É o que a jurisprudência e a doutrina alemãs chamaram de "culpa post pactum finitum", alicerçada na idéia de que, mesmo finalizada a obrigação, deveres acessórios ou conexos continuavam a existir, não por estarem previstos no contrato, mas porque embasados na proteção decorrente da boa-fé objetiva – base também do art. 187 do Código Civil ao vedar o abuso do direito entre nós.

Exemplo tirado da jurisprudência alemã, inteiramente aplicável ao direito brasileiro na relativização do direito de propriedade à sua função social 112 e aos direitos de vizinhança 113 é o que trata da compra e venda de um terreno com bela vista para um monte, com garantia pré-negocial de que tal vista não seria tirada do comprador, porque proibidas edificações no local, o que se comprovou pelo respectivo plano de urbanização.

Concluído e cumprido o contrato, meses após o próprio vendedor adquire área contígua, entre o terreno e o monte, consegue mudar o plano de urbanização e constrói no local impedindo a vista do anterior comprador, que a essa altura havia construído sua moradia, certo de que a vista do monte estava perenemente assegurada. Embora não houvesse qualquer cláusula prevendo aquela situação – a alteração do plano de urbanização, possibilitando a construção antes defesa –, o

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CF, art. 5º, inc. XXIII: "a propriedade atenderá a sua função social"; Código Civil, art. 1228, § 1º "O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas".

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Art. 1227: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha".

comprador do terreno demandou exigindo indenização de vulto, perdendo nas instâncias inferiores mas vencendo no Tribunal de Revista alemão.

Embora não se tivesse utilizado a teoria do abuso do direito na ação tedesca, para nós seria ela perfeitamente possível, a uma pelo dever geral de boa-fé do art. 422 do Código Civil, a duas pela função social da propriedade, que engloba o respeito aos direitos de vizinhança, limitando igualmente o direito de construir – art. 1299,

Código Civil 114 - ao respeito aos demais proprietários, mormente quando tenha

faltado visivelmente o dever de lealdade pós-contratual, em atitude de desprezo ao antes prometido, frustrando a legítima expectativa do comprador do terreno que teve posteriormente sua vista perdida pela conduta individualista e não solidária do vendedor.

Ou seja, o comportamento das partes deve ser leal não somente nas negociações contratuais e no curso do contrato, mas também após seu adimplemento regular, por exemplo quando a conduta posterior da parte transgrida a cláusula geral de boa-fé e caracterize-se como abusiva, o que poderá levar a demanda indenizatória dos prejuízos causados ou, conforme o caso, de abstenção do ato que se quer coibir – “v.g.”, se a construção abusiva ainda não houver sido levantada. Frise-se apenas que entre nós não é necessária a verificação de conduta culposa, somente, já que, como aqui se defende, o ilícito abusivo é de natureza objetiva, prescindindo do elemento culpa.

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Art. 1299: "O proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos".

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 102-106)