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PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 165-169)

INDETERMINADOS E DETERMINADOS PELA FUNÇÃO.

36. PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL

Também recebe tratamento constitucional o princípio da solidariedade, no artigo 3º, ao preceituar ser objetivo fundamental da República a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”.

O dever constitucional de solidariedade social não poderá limitar-se a um estado interior, a um sentimento de amor entre os cidadãos, devendo, ao invés, traduzir-se “em formas efetivas de aproximação, em que ao conflito se faça substituir a confraternização e a colaboração”, como com correição ensina CELSO RIBEIRO

BASTOS 182. Daí porque de nada adiantaria a lei maior apontar como diretriz a

solidariedade se esta não pudesse espraiar-se também no âmbito do direito privado, alcançando as relações jurídicas correspondentes – por exemplo, na exigência de um comportamento contratual regido pela boa-fé objetiva, cujas características impõem conduta leal, cooperativa e solidária, como é cediço na doutrina e jurisprudência nacionais e estrangeiras.

Em substancioso artigo no qual relaciona mercado e solidariedade social, JUDITH MARTINS-COSTA defende que a expressão “deveres que decorrem da solidariedade social” possui largo espectro de aplicação, dada sua ampla vagueza semântica, relacionando sua atuação em normas jurídicas que implementam planos econômicos, certas regras tributárias, preceitos de direito administrativo, urbanístico, previdenciário e, especificamente no campo do direito privado, em regras de direito de família, nas normas que consagram a responsabilidade objetiva, etc. 183. Quando se

182

“Comentários à Constituição do Brasil”, 1º volume, CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS; Edit. Saraiva, São Paulo, 1988, p. 445. Acentua-se a necessidade de se superar uma concepção egoísta de vida, para melhor enfrentar as dificuldades e os antagonismos decorrentes das fraquezas humanas.

183

“A Reconstrução do Direito Privado”, ob. cit., pp. 628/629. A necessidade de se dar eficácia ao objetivo constitucional é enfatizada pela autora, ao expor que a existência de deveres decorrentes da solidariedade social impõe-se ao intérprete constitucional, “à medida que não seria admissível considerar as suas normas como vazias de significado e eficácia verdadeiramente normativos, devendo-se, por isso mesmo, buscar a sua concreção” (p. 628).

fala em responsabilidade objetiva, particularmente, vemos a relação possível da solidariedade com o abuso, ou nas relações contratuais em geral, no abuso por oportunismo de quem se aproveita das más condições financeiras do devedor para firmar com ele uma renegociação excessivamente onerosa, por exemplo em um mútuo bancário (aproximando-se aí do instituto da lesão, sem que necessariamente os requisitos de configuração desta encontrem-se presentes).

No mesmo sentido, ROSA NERY correlaciona a proibição do abuso como decorrência do princípio constitucional da solidariedade social, na imposição a uma parte de não se aproveitar excessivamente da fraqueza da outra; anota que a solidariedade inspira a noção de função do Direito que, por seu turno, faz emergir nos institutos jurídicos uma vida nova, que se comunica por valores que se tornam prevalentes 184. Tem-se aí a mesma idéia que defendemos, no sentido da necessária valoração principiológica para se aceitar a figura do abuso, impossível numa visão estritamente positivista; e é ainda o que a mesma autora mostra da importância do sentido da solidariedade, “na medida em que o sistema de Direito Privado se expande na mesma cadência em que se alarga a idéia de ordem pública”.

Em suma, tem-se que o princípio constitucional da solidariedade, previsto como objetivo fundamental da República em seu artigo 3º, tem relação direta e aplicabilidade concreta no sistema aberto do Código Civil, especificamente no que concerne ao abuso do direito ligando-se à sua repressão, em nome da prevalência social dos interesses protegidos e, portanto, da prevalência ética do equilíbrio contratual.

184

37. TRIDIMENSIONALIDADE

A figura do abuso do direito apareceu, justamente, como noção demonstrativa da imperfeição da lógica jurídica tradicional, que não vislumbra alternativa entre as categorias da licitude e da ilicitude, afirmando a ocorrência do ato abusivo entre os atos proibidos, no sentido técnico de atos ilícitos, e os atos permitidos, no sentido técnico de atos lícitos. Para CUNHA DE SÁ mostra-se como um terceiro gênero, de um ato juridicamente proibido ao lado do ato ilícito185 (para nós é ilícito objetivo, como já exposto).

Afastando-se dessa lógica jurídica tradicional, somente numa visão tridimensionalista do direito é possível conceber-se a repressão ao abuso do direito, já que, necessariamente, examina-se a realidade fática a partir de um juízo axiológico, valorativo da conduta que se imputa como abusiva em face de um aparente bom direito. Uma visão unidirecional exaure-se na norma e uma visão bidirecional no enquadramento norma-fato, silogisticamente, sem possibilitar o exame do que DINO PASINI, citado por MIGUEL REALE, chama de visão integral da realidade do direito, após distinguir na realidade jurídica um momento teleológico ou funcional que, claramente, como valor, é o que possibilita a análise de um comportamento alegadamente abusivo, a nosso ver 186.

185

Ob. cit., p. 332.

186

"Por sua vez, DINO PASINI distingue na realidade jurídica um momento condicionante ou situacional (o fato), um momento normativo ou estrutural (a norma) e um momento teleológico ou funcional (o valor)

E o próprio Mestre Reale, ao esclarecer pontos da tridimensionalidade do direito especifica que defende, torna claro que a norma jurídica não pode ser interpretada abstraída dos fatos e valores que condicionaram o seu advento, nem dos fatos e valores supervenientes, bem como da totalidade do ordenamento em que ela se insere. E a sentença, afirma, deve ser compreendida como uma experiência axiológica concreta e não apenas como um ato lógico redutível a um silogismo – afirmação que, para nós, é essencial para a interpretação e solução do comportamento abusivo, o qual, repita-se, carece de significado numa visão que não abranja o valor enquanto aspecto teleológico ou funcional da realidade jurídica 187.

sublinhando – e com essa observação situa-se ele na perspectiva do que eu denomino ”tridimensionalidade específica" – que a consideração desses aspectos particulares não nos deve fazer esquecer a visão integral da realidade do direito"; "Vita e Forma nella Realtà del Diritto", Milão, 1964; "apud" MIGUEL REALE, "Teoria Tridimensional do Direito", Ed. Saraiva, 1979, 2ª ed., São Paulo, p. 30.

187

"Teoria Tridimensional..", p. 62. Importa ainda frisar o conceito exposto de experiência jurídica "como modalidade de experiência histórico-cultural, na qual o valor atua como um dos fatores constitutivos dessa realidade (função ôntica) e, concomitantemente, como prisma de compreensão da realidade por ele constituída (função gnoseológica) e como razão determinante da conduta (função deontológica)" (p. 63). Esse último aspecto, ao se apontar o valor como razão determinante de conduta, é essencial para a aceitação da teoria do abuso do direito, impossível de ser pensada sem o plano axiológico, ao menos em sua natureza finalística, como apresentada pelo Código Civil – pois o abuso pressupõe sempre interpretação valorativa do comportamento examinado, para se concluir pelo eventual excesso ou desvio de seus fins.

38. A TIPICIDADE DO ILÍCITO CIVIL NOS SISTEMAS ABERTOS: SUA

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