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A TIPICIDADE DO ILÍCITO CIVIL NOS SISTEMAS ABERTOS: SUA RELAÇÃO COM O TRIDIMENSIONALISMO JURÍDICO

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 169-172)

INDETERMINADOS E DETERMINADOS PELA FUNÇÃO.

38. A TIPICIDADE DO ILÍCITO CIVIL NOS SISTEMAS ABERTOS: SUA RELAÇÃO COM O TRIDIMENSIONALISMO JURÍDICO

Ainda que o Código Civil não tivesse expressamente afirmado a ilicitude do ato abusivo, para nós o ilícito ocorreria do mesmo modo, já que – defende-se – não é ilícito apenas o que a lei diz ser, característica dos tipos fechados, tradicionais, mas também são ilícitos os atos que violam princípios, numa concepção sistêmica, defendida por FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO em dissertação segura sobre o tema 188 e que implica a atipicidade dos ilícitos civis – só o direito penal, na verdade, exige a previsão específica do ilícito 189.

O ilícito o é pelo resultado, o que pode ocorrer ainda que não haja previsão específica na lei configurando-o como tal. Trata-se de concepção muito mais consentânea com o sistema aberto adotado em geral na atualidade brasileira – por exemplo, no Código de Defesa do Consumidor – e, em particular, no Código Civil pátrio.

188

“Teoria dos Ilícitos Civis”, editora Del Rey, Belo Horizonte, 2003, p. 72/74. O autor, pernambucano, enfatiza com propriedade que a concepção tradicional tem o evidente defeito de imobilizar o direito, apontando que “engessar os ilícitos possíveis, subordinando-os ao legislador, seria esvaziar a densa carga valorativa dos princípios, porquanto estariam desprovidos de eficácia determinante”. É o mesmo problema da concepção do ilícito atrelado à noção de culpa, necessariamente, do que se discorda em outro ponto do trabalho.

189

Como é cediço, no Direito Penal só pode haver ilícito com expressa previsão legal, dado o princípio “nullum crimen, nulla poena sine praevia lege” – o princípio da reserva legal. Nesse caso, o tipo fechado para as normas penais é essencial à própria manutenção do Estado de Direito, uma conquista histórica contra o arbítrio, motivos históricos que em nada se correlacionam com o Direito Civil, no qual, ao contrário, o alargamento da noção de responsabilidade civil, por exemplo na admissão da teoria objetiva, é que representa uma conquista histórica de vulto. O ilícito no sistema aberto é o avanço, não a rígida tipicidade do sistema fechado.

Por esse sistema, como se sabe abre-se ao juiz a possibilidade de dar concreção às situações fáticas partindo-se não só da literalidade da lei, mas de princípios, cláusulas gerais e conceitos funcionalmente determinados ou indeterminados nela expressos, declaradamente um dos objetivos buscados pelo novo Código Civil, segundo dito por seu maior responsável 190.

A conduta do juiz, ao dar concretude 191 a conceitos abertos, indeterminados, é eminentemente ética e axiológica. Uma ótica positivista, típica do Código Civil de 1916, de modo algum permitiria seja aferir o ilícito objetivo, independente de culpa, seja admitir o ilícito atípico, sem definição específica em lei.

Esse aspecto – a atitude ética e axiológica do juiz na análise do abuso – é realçado pelo jurista peruano SESSAREGO, que após defender que o direito só pode ser apreendido como uma unidade conceitual a partir da integração dinâmica das três dimensões (“la coexistencial, la forma y la axiológica”), afirma que o desvio de direito de sua finalidade específica se deve ao mau uso que determinados setores de seres

190

O maior responsável pelo atual Código Civil, MIGUEL REALE, em obra editada no decorrer de seu trâmite, dizia de forma precisa que o objetivo de concretude “impõe soluções que deixam margem ao juiz e à doutrina, com freqüente apelo a conceitos integradores da compreensão ética, tal como os de boa-fé, eqüidade, probidade, finalidade social de direito, equivalência de prestações etc., o que talvez não seja do agrado dos partidários de uma concepção mecânica ou naturalística do direito, mas este é incompatível com leis rígidas de tipo físico-matemático. A “exigência de concreção” surge exatamente da contingência insuperável de permanente adequação dos modelos jurídicos aos fatos sociais “in fieri” (“O Projeto do Código Civil”, Editora Saraiva, São Paulo, 1986, p.84). Este trecho mostra claramente que a repressão ao abuso, tornada concreta por análise casuística do juiz, em atenção justamente à finalidade social do direito, à boa-fé e aos bons costumes, só pode ocorrer por meio da aceitação de teorias jurídicas que realcem os valores postos em conflito, de que é exemplo a teoria tridimensional realiana: fato, valor e norma, integrados, permitem a concretude ansiada, já que o exercício valorativo é imprescindível para a definição a cada caso do ato abusivo.

191

O termo concretude é polêmico, pois há quem prefira “concretitude”, como assinalado por MIGUEL REALE. Mas o consagrado mestre, humanamente, ao decidir-se por concretitude (ob. cit., p.13) equivoca-se ao dizer que o “Dicionário do Aurélio” não registra “concretude”, pois o termo está, sim, anotado como “qualidade de concreto”, mesmo sentido apontado para concretitude (“Novo Dicionário Aurélio”, Ed. Nova Fronteira, 2a ed., 1986, pp. 447 e 448).

humanos fazem do ordenamento jurídico, em contraste com as exigências da vida humana em sociedade e das exigências axiológicas 192.

192

CARLOS FERNANDEZ SESSAREGO, “Abuso del Derecho”, Editorial Astrea de Alfredo Y Ricardo Depalma, Buenos Aires, 1992, pp. 46/49. Confira-se: “La desviación del derecho de su específica finalidad social se debe al mal uso que hacen, determinados sectores de seres humanos, del aparato normativo en contraste con los requerimientos de la vida humana social y de las exigencias axiológicas. Es una distorsión que no niega el valor y la función del derecho, sino que sólo nos muestra una desviación normativa que debe superarse. No significa el fracaso del derecho sino solamente lo que debería ser una transitoria inadecuación entre sus elementos, buscada y querida por un determinado grupo para privilegiar injustamente ciertos particulares intereses en el seno de la comunidad. Es una situación que la colectividad vivencia como contraria a los valores jurídicos y que debe necesariamente cambiarse mediante una acción concertada de las fuerzas sociales, a través de la presión de la opinión pública, utilizando mecanismos jurídicos. La lucha por el derecho es, por ello, un cotidiano y constante afán del hombre".

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 169-172)