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JUSTIÇA COMUTATIVA

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 91-96)

Dentro dessa idéia, da busca do justo em concreto, lembra ANELISE BECKER que "se no auge do voluntarismo jurídico o justo era decorrência necessária da vontade livre dos contratantes, posta naturalmente em contraste pelo próprio mecanismo de formação do contrato, hoje é aquilo que é tido concretamente como justo na situação considerada, traduzindo o conceito de justiça contratual o antigo conceito de justiça comutativa, que exige que o contrato não destrua o equilíbrio que existia anteriormente entre os patrimônios, o que implica que cada uma das partes receba o equivalente ao que haja dado98".

Claro está que esse equilíbrio é relativo e não absoluto, devendo ser analisado de acordo com as peculiaridades do caso concreto. Interessante decisão encontra-se

no v. acórdão do TJRS de 7.6.1988, citado por FLÁVIO ALVES MARTINS 99: "As

cláusulas do contrato devem ser interpretadas segundo as normas do tráfico, de acordo com o que é usual e compatível com a época, com as circunstâncias e com a

técnica com a eleição deste critério subjetivo. Na realidade, dever-se-ia ter preferido, como, a nosso ver, se fazia nitidamente com a antiga redação do art. 17 do Código de Processo Civil, disciplinando-se o de demandar com má-fé, o critério objetivo, por causa da maior facilidade de aferição da configuração mesma do abuso do direito.

Por outras palavras, afigura-se-nos que bastaria, se tivesse sido acolhido o critério objetivo, para que se configurasse o abuso do direito, que não houvesse comodidade ou utilidade somada à existência de prejuízo a terceiro, prescindindo-se, assim, da referência à intenção.

Ainda neste artigo identificamos que, em nome desta significação social de direito de propriedade, se esquivou o projetista, também, de qualquer atitude em prol de pretenso absolutismo respeitantemente ao direito de propriedade.”

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“Teoria Geral da Lesão nos Contratos”. Edit. Saraiva, São Paulo, 2000, p. 101.

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natureza do contrato. Há que se atentar para o bom senso e, principalmente, para o princípio da boa-fé, segundo o qual o contrato deve ser cumprido e executado de acordo com as justas expectativas das partes contratantes. No caso, esse justo equilíbrio, que os contratantes razoável e justificadamente esperavam realizar através do contrato firmado, ficaria violentamente rompido com a exigência de um preço exorbitante e irreal... O contratante não se pode valer de uma cláusula mal redigida para fazer interpretação contrária à boa-fé". A ênfase às "justas expectativas", ao "justo equilíbrio" e ao "razoável" que nada mais são senão a manutenção da proporcionalidade contratual mostra bem, e corretamente, a busca da justiça comutativa, tal qual se frisou. Mas não se pode perder de vista essa busca do que, em última análise, é a procura de uma solução équa a ambas as partes, eqüidade essa devidamente amparada não só pela repressão ao abuso, mas também na vedação ao enriquecimento sem causa, no desfazimento contratual do ato lesivo ou ao qual se aplique a teoria da imprevisão com resolução por onerosidade excessiva, todos, hoje, contemplados normativamente no Código Civil, respectivamente nos artigos 187, 884 e parágrafo único, 157 e §§ e 478. A respeito da identidade entre a teoria da imprevisão e o abuso, lembra ANTÔNIO JEOVÁ DOS SANTOS 100 que "para aqueles que sustentam e se apóiam nas teorias subjetivas, a configuração do abuso do direito não depende da obtenção de vantagem por quem pratica o ato abusivo. Existe apenas a intenção de causar dano a outras pessoas. Estas circunstâncias não se encontram na teoria da imprevisão. Entretanto, aceito o abuso do direito em sua face objetiva, ou seja, como o exercício antifuncional de um direito, teríamos que a falta de

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concedimento serve como uma das aplicações para o surgimento da imprevisão. A teoria do abuso do direito nasceu como uma instituição tendente a combater o fundamento individualista-liberal que comprimia o direito a uma qualidade absoluta e incondicionada. Os fins do direito devem satisfazer as exigências da justiça e da eqüidade; do social e solidarista; da moral, dos bons costumes, da boa-fé, do bem comum, enfim". Como, para nós, o abuso deve ser analisado objetivamente, também no vetusto princípio "rebus sic stantibus" ter-se-á a possibilidade concreta de aplicação da teoria do abuso.

Em todos esses casos, o que está por trás é a busca da justiça comutativa, da aristotélica procura da justiça do caso concreto, da eqüidade, enfim. A repressão ao abuso insere-se na busca do justo. É sua razão ontológica de existência.

A idéia de equilíbrio contrapõe-se naturalmente à noção de abuso, o que se aplica também ao direito. Logo, a quebra do equilíbrio entre as partes no contrato, ou do equilíbrio nas relações e convivência sociais, configurará no primeiro caso cláusulas contratuais abusivas e, no segundo caso, o abuso extracontratual - ilícitas ambas as situações.

Daí poder dizer-se que o abuso é atributo do injusto, em seu sentido de comutatividade quebrada ou lesada e, portanto, desequilibrada, já que, no sentido aristotélico, a justiça comutativa ou corretiva, “ao contrário da justiça distributiva, que dá a cada um segundo seus méritos, serve para equiparar as vantagens e as

desvantagens em todas as relações de permuta entre os homens, tanto voluntárias quanto involuntárias (Et. nic., V, 4, 1131 b 25)” 101.

Ou seja, as relações entre os homens devem ser, em regra, comutativas, salvo quando a própria natureza dessas relações permita legitimamente a quebra do equilíbrio que é inerente a essa comutatividade – equiparação das vantagens e desvantagens nas relações de permuta humanas –“v.g”., em contratos aleatórios nos quais o equilíbrio ou a proporcionalidade das prestações são meramente circunstanciais.

Quebrado o equilíbrio das relações humanas, contratual ou extracontratualmente, ter-se-á o abuso, o excesso característico da desproporção e, pois, ilícito a ser coibido.

E frisa-se nesse passo que a idéia de justiça deve, sim, ser perseguida. Inseguros com a visão positivista segundo a qual é ela inalcançável, por sua variabilidade e indefinição, a assertiva só serve para o desestímulo e a acomodação do julgador, do intérprete do direito, de seu operador, enfim, antecipadamente desculpados de não buscar o que deveria ser, sempre, a finalidade última do direito: o justo, a proporção correta entre ato e recompensa ou castigo, entre prestação e contraprestação; equilíbrio, em suma, desde a concepção aristotélica de busca da virtude "no meio", ou seja, na equidistância das paixões, na análise isenta e desinteressada dos interesses em conflito. Ao perdedor sempre haverá a noção pessoal da injustiça causada no caso concreto – se a ele coube, por exemplo, a pecha

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“Dicionário de Filosofia”, NICOLA ABBAGNANO, Edit. Martins Fontes, São Paulo, 4ª ed., 2000, página 163.

da conduta abusiva, e suas conseqüências –, mas o fato não justifica que se tenha por desimportante o tema, nem que se olvide de procurar a Justiça como finalidade última do direito. O equilíbrio contratual, no qual se insere a necessidade de prevenção e repressão ao abuso do direito, insere-se na busca, repita-se, da justiça comutativa, a qual, quebrada, justificará a sanção ao abuso, a composição dos danos, se havidos, ou o desfazimento do ato ilícito, com ou sem prejuízo, seja ele contratual ou aquiliano.

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 91-96)