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PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E ABUSO

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 161-165)

INDETERMINADOS E DETERMINADOS PELA FUNÇÃO.

35. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E ABUSO

O princípio da proporcionalidade nasce no Direito Administrativo, no contexto do Poder de Polícia, destacado por Otto Mayer que "a condição da proporcionalidade, inerente a todas as manifestações do poder de polícia, deve produzir seu efeito também ao zelar pela boa ordem da coisa pública ("guter Stand des Gemeinwesens"), guardando a conduta reguladora do Estado, como medida de intensidade, as exigências ditadas pelo interesse público, sem constranger o indivíduo a suportar restrições além do grau necessário à satisfação do bem estar da comunidade” 176.

Mostra-nos DAVID DINIZ DANTAS que a proporcionalidade surge como uma necessidade de solução de um problema prático, qual seja, a conciliação entre dois ou mais princípios constitucionais que conflitem em um caso concreto 177. Como, pelo princípio da unidade da Constituição, inexiste hierarquia que priorize aprioristicamente este ou aquele princípio, a proporcionalidade surge para que se atinja a concordância prática entre o que chamamos em outro ponto do trabalho de direitos em colisão. Por

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"Le Droit Administratif Allemand". Paris: V. Giard & E. Brière, 1904, vol. II, p. 60: "..la condition de la proporcionalitè, inhérente à toutes les manifestations du pouveir de police, doit produire son effet"; "apud" Juarez Freitas, in Parecer sobre a Emenda Constitucional nº 40, à Associação dos Magistrados do Rio Grande do Sul – AJURIS, 16.12.2003, não publicado; p. 19; Juarez Freitas no parecer retro citado, lembra a expressão de Fritz Fleiner, para quem " a polícia não deve utilizar canhões para abater pardais" ("Institutionen des Deutschen Verwaltungsrechts". Tübingen: Scientis Verlag aalen, 1963, p. 404: "Die Polizei soll nicht mit Kanenen auf Spatzen schiessen"). Aponta, corretamente, que "Com a mesma energia que realçou a estrutura teleológica dos preceitos normativos (= toda lei pressupõe uma finalidade), a doutrina sublinhou, sem hesitar, que os fins inerentes às normas deveriam ser perseguidos dentro e nas fronteiras da proporcionalidade"; p. 20;

177

Ob. Cit., pp.265/268. “In verbis”: “É precisamente no tocante aos conflitos entre normas constitucionais – especialmente normas de direitos fundamentais – que o denominado “princípio da

proporcionalidade” mostra toda sua virtualidade prática como “princípio de interpretação”: em

situações reais em que bens jurídicos igualmente elevados ao status de dignidade constitucional, encontram-se em antagonismo. A proporcionalidade e a razoabilidade são os critérios argumentativos utilizados pelo intérprete para restringir a aplicação de determinado direito fundamental”.

meio da proporcionalidade privilegia-se um determinado princípio no caso concreto, mas sempre procurando-se respeitar o “núcleo essencial” do princípio perdedor, já que, ao contrário do conflito entre normas-regras, em que vige o postulado “all or nothing”, no conflito entre princípios um é aplicado, mas o outro permanece vigorando – embora inaplicável naquele determinado caso concreto.

Apesar de nascido no Direito Público, e aplicado nas principais nações européias 178, é inegável a importância de tal princípio no Direito Privado, nas relações obrigacionais entre particulares, já que inere à proporcionalidade a manutenção do equilíbrio contratual, a inexistência, “v.g.”, de lesão ou de onerosidade excessiva a qualquer das partes – circunstâncias que, ocorridas, são demonstrações concretas de desproporção, nas quais pode estar contido o abuso.

Em sua já citada tese de livre-docência, analisa ROSA MARIA NERY179 como

foi difícil o caminho para que, entre nós, a cultura jurídica admitisse a proporcionalidade no direito de obrigações, já que partimos de uma estrutura legislativa completamente atrasada, distante da evolução jurídica cultural da Europa, à época, com leis altamente protetivas dos credores – até mesmo permitindo a usura livremente, na lei de 24 de outubro de 1832 (§ 1º: “o juro ou premio de dinheiro, de qualquer espécie, será aquelle que as partes convencionaram”) – e com uma visão

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Na França, por exemplo, anota PAULO BONAVIDES (“Curso de Direito Constitucional”, Malheiros Editores, São Paulo, 8ª ed., p. 377) que embora o princípio não seja nominalmente empregado no Direito Constitucional, no entanto é comum o uso do termo proporção pela justiça administrativa, principalmente em questões relacionadas com os limites do poder discricionário da Administração (“pouvoir discrétionnaire” e “détournement du pouvoir”). Na Alemanha, anota BONAVIDES dois julgamentos paradigmáticos quanto à proporcionalidade, o “Luth-Urteil”, de 15 de janeiro de 1958, respeitante ao direito de opinião, e o “Apotheken-Urteil”, de 11 de junho do mesmo ano, concernente ao livre exercício de profissão, e suas limitações, em ambos os casos tendo o Tribunal de Karlsruhe firmado interpretação sobre direitos fundamentais com base no aludido princípio, formado pelos elementos adequação, necessidade e proporcionalidade “stricto sensu”.

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dos juízes aprioristiamente contrária aos devedores, sem qualquer consideração, por exemplo, à base objetiva do negócio jurídico fora das relações mercantis, mormente no artigo 131 do Código Comercial 180.

Na mesma obra chega-se à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mormente decisões relatadas pelo eminente civilista RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR, que enfrentou de modo claro e sem meias palavras a desproporcionalidade de situações jurídicas diversas, como as prestações devidas por empréstimos bancários tomados (STJ, 4ª Turma, REsp. nº 401.011-GO, j. 29.5.2003, DJU 13.6.2003 – decisão monocrática em que se enfatiza a necessidade do intervencionismo judicial nos contratos quando suprimida a liberdade de escolha por parte do devedor dos bancos, sujeito a todo tipo de taxas escorchantes). E, após citar outras tantas decisões do então Ministro do STJ (tese, pp. 161/172), de inegável visão progressista, conclui-se no entanto que viceja entre nós uma falsa noção de descumprimento dos contratos, possibilitando intolerável desproporção nas prestações devidas, com “o surgimento de uma casta que se beneficia dos negócios e uma multidão dos que se escravizam com a realização dele, gerando desigualdades” (p.173).

180

Art. 131 - Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases:

1 - a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras;

2 - as cláusulas duvidosas serão entendidas pelas que o não forem, e que as partes tiverem admitido; e as antecedentes e subseqüentes, que estiverem em harmonia, explicarão as ambíguas;

3 - o fato dos contraentes posterior ao contrato, que tiver relação com o objeto principal, será a melhor explicação da vontade que as partes tiverem no ato da celebração do mesmo contrato;

4 - o uso e prática geralmente observada no comércio nos casos da mesma natureza, e especialmente costume do lugar onde o contrato deva ter execução, prevalecerá a qualquer inteligência em contrário que se pretenda dar às palavras;

5 - nos casos duvidosos, que não possam resolver-se segundo as bases estabelecidas, decidir-se-á em favor do devedor.

As questões expostas mostram a necessidade de se prestigiar o princípio da proporcionalidade – repita-se, nascido no Direito Público para atenuar o poder do Estado contra os particulares – também no Direito Privado, pois obrigações desproporcionais são desviadas de sua função social e de sua finalidade de direito, além de ferirem a boa-fé objetiva, podendo em conseqüência caracterizar abusividade e, nessa medida, justificar a intervenção do Poder Judiciário no cumprimento dos contratos 181.

181

Tome-se o seguinte acórdão do STJ, também relatado por RUY ROSADO DE AGUIAR JR.: “A cláusula que permite a retenção de 90% das parcelas pagas durante a vigência do contrato, mesmo em não se aplicando a regra do CDC 53 para as relações estabelecidas antes da vigência do CDC ou para as relações que não sejam de consumo, deve ser considerada abusiva, reduzindo-se o direito de retenção a 10% dos valores pagos, aplicando-se “in casu” o CC 413” (STJ, 4ª Turma, REsp. 57789-6- SP, j. 25.4.1995, v.u., DJU 12.6.1995) – grifei. A importância do julgado está no enquadramento de uma cláusula penal visivelmente desproporcional como abusiva, independente de se estar ou não diante de uma relação consumerista, aplicando-se a regra de proporção e eqüidade do atual artigo 413 do Código Civil para solução do caso concreto (413: “A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”).

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 161-165)