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A PRÓPRIA LEI PODE CONTER O ABUSO?

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 182-186)

INDETERMINADOS E DETERMINADOS PELA FUNÇÃO.

42. A PRÓPRIA LEI PODE CONTER O ABUSO?

Embora aqui se analise o abuso do direito, tão-só no exercício do direito, é questão intrigante, e sempre atual, se a própria lei pode conter, em si, o abuso, por ser contrária ao direito e à justiça.

Deve-se ter em mente, seja qual for o conceito que se tenha de justiça, que o direito, mesmo o direito positivo, não é senão uma ordem estabelecida para servir a justiça 200. Se as leis deixam de observar essa finalidade, contrapondo-se aos fins do ordenamento jurídico e, portanto, deixando de ter como fim último a busca do justo, ter-se-iam leis abusivas que não deverão ser obedecidas pelo juiz, nada obstante a regra geral que lhe é imposta de estrita obediência à ordem jurídica.

O exemplo histórico das leis nazistas pode levar à conclusão de que há leis que, por terem abandonado o direito, são arbitrárias e não devem ser cumpridas. Ao contrário de HANS KELSEN, que para ser coerente a seu posicionamento doutrinário - pelo qual nada fora da norma jurídica positiva pode ser questionado pelo juiz – legitimou as decisões dos Tribunais alemães à época do nazismo, GUSTAV RADBRUCH (também empedernido positivista, até então), à vista de julgamentos de conteúdo político e não jurídico dos Tribunais tedescos, elaborou o conceito de "arbitrariedade legal", de "leis que não são direito", com as seguintes conseqüências,

200

GUSTAV RADBRUCH. "Arbitrariedad legal y derecho supra legal"; trad. por Maria Isabel Azareto de Vásquez; Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1962, p. 37/38; in "Crítica à Dogmática e Hermenêutica Jurídica", PLAUTO FARACO DE AZEVEDO, Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, Porto Alegre, p. 67.

apontadas por PLAUTO FARACO DE AZEVEDO: "quando não se pretende de nenhum modo realizar a justiça, uma vez que a igualdade, que constitui seu núcleo, é conscientemente deixada de lado na formulação do direito positivo, as normas assim elaboradas não constituem apenas direito injusto, mas carecem da própria natureza jurídica". E, após afirmar que setores inteiros do direito nacional-socialista não atingiram a categoria de direito válido, afirma RADBRUCH a necessidade de uma preparação "para fazer frente a qualquer possibilidade de retorno do Estado sem direito, mediante a superação fundamental do positivismo, que impossibilitou toda capacidade de defesa contra o abuso da legislação nacional-socialista". 201

Em termos de Brasil, bons exemplos de leis arbitrárias são os Atos Institucionais, ao negar, por exemplo, a possibilidade de impetração de habeas corpus contra atos ditos revolucionários (AI n° 5, de 13/12/1968), ou ao determinar o fechamento do Congresso para impor alterações legislativas (por ocasião da Emenda Constitucional 7/77, por exemplo).

Apesar da inegável força dos argumentos de RADBRUCH, mormente em face do contexto histórico em que emitidos, não se poderá, porém, chegar ao ponto de considerar que, dada sua abusividade, determinadas leis não terão atingido a categoria de direito válido. Confrontado com tais leis, caberá ao juiz - quando possível - descobrir-lhe um sentido diverso do pretendido pelo legislador, em esforço hermenêutico que busque afastar os efeitos nefastos das normas arbitrárias. Ou, se

201

obra citada, pp 67/69: "Como exemplos de "leis que não são direito" refere RADBRUCH as determinações que pretendiam atribuir ao partido nacional-socialista a totalidade do Estado, porquanto todo partido é necessariamente uma parte que se insere e vive no Estado; todas as leis que estipulavam tratamento infra-humano ou negavam direitos humanos a certos homens; as disposições que estabeleciam penas sem consideração à diferente gravidade dos delitos, cominando igual pena a ações da mais diversa gravidade, amiúde a pena de morte, tudo com o fito de atender a necessidades momentâneas de intimidação".

não for possível interpretar tais leis de modo a afastar de todo seus efeitos não desejados, ao menos atenuar ao máximo esses efeitos, quando da inevitável aplicação da lei ao caso concreto. Não há, porém, como negar a tais leis sua existência, validade e eficácia, se editadas em conformidade com o processo legislativo vigente, por mais questionada que possa ser sua origem.

Não se nega, em suma e por fim, que haja leis abusivas e despidas de legitimidade social. Mas não se vislumbra como negar validade a tais leis, se regulares sob o aspecto formal, o contrário caracterizando o também indesejável - por seu completo subjetivismo e conseqüente ausência de direcionamentos objetivos - "judge made law", um direito dependente apenas da visão de mundo de cada juiz e de sua vivência e filosofia pessoais. Ambas soluções ruins, mas pior aquela ausente de qualquer controle objetivo.

Para ao menos minimizar a possibilidade do abuso na lei é que se criou – esta a nossa visão – o princípio da proteção do núcleo essencial (“Wesensgehalt”) dos direitos fundamentais, previsto por exemplo na Constituição alemã (art. 19.2 : “Em nenhum caso um direito fundamental poderá ser afetado em sua essência”), portuguesa (art.18,3 : “As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, têm de revestir caráter geral e abstracto e não podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”) e espanhola (art.53.1 : “Os direitos e liberdades reconhecidos no capítulo II do presente título vinculam todos os poderes públicos. Somente por lei, que em todos os casos deve respeitar seu conteúdo essencial, poderão ser regulados esses direitos e liberdades (...)”).

O chamado respeito ao núcleo essencial permite que o juiz afaste a arbitrariedade, contida na lei, para adequá-la ao direito fundamental que não poderá, nunca, ser afetado em sua essência, em sua substância, para utilizarmos a expressão tedesca. E mesmo que a Constituição brasileira não tenha contemplado expressamente esse princípio, protetivo do núcleo essencial dos direitos

fundamentais, ensina SUZANA DE TOLEDO BARROS que 202:

“Não há dificuldade técnica em hauri-lo da própria natureza destes direitos, uma vez que não faria sentido uma intervenção do legislador no âmbito de um direito fundamental para destruí- lo”.

E mais, que 203:

“O núcleo essencial constituiria o conteúdo mínimo de um direito, insuscetível de ser violado, sob pena de aniquilar-se o próprio direito”.

Em suma, caracterizada a abusividade da lei por ter sido afetada a essência de um direito fundamental, caberá ao juiz afastar a arbitrariedade e negar validade e eficácia ao que, nessa hipótese, na verdade não integra o ordenamento jurídico.

202

“O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais”; Brasília Jurídica, Brasília, 1996, p.94.

203

idem, p.95. Os poderes inerentes ao direito de propriedade, por exemplo, podem ser limitados pelos direitos de vizinhança, mas nunca a ponto de impedirem a disposição, uso e gozo do bem, conteúdo mínimo desse direito. Defende-se que, na hipótese de invasão do núcleo essencial do direito, a lei será abusiva e, na medida da abusividade, desconsiderada – por exemplo, se a lei impedisse a alienação de um bem, logo sua disposição, à população de determinada cidade ou bairro.

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 182-186)