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O ABUSO COMO ILÍCITO: DESNECESSIDADE DE CULPA

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 53-57)

É fora de dúvida que o ilícito, ou sua caracterização, independe de culpa. Ao se admitir, ou ao se filiar, à teoria objetiva do abuso do direito, é preciso necessariamente admitir-se o ilícito sem culpa, ou seja, é preciso admitir-se a responsabilidade objetiva do agente, como pressuposto indispensável à aceitação da referida teoria.

Não há dúvida de que o novo Código Civil, ao prever no artigo 187 a configuração do abuso no mero fato do exercício manifestamente excessivo dos limites impostos pelo fim econômico ou social do direito, ou pelos bons costumes, ou ainda pelo seu exercício irregular (já aí no artigo 188, I), francamente aderiu à teoria objetiva. Também abusa de seu direito quem desatende à boa-fé, mas esse aspecto, a ser abordado adiante, não é o único a permitir a ocorrência do abuso – dada a disjuntiva ou aposta no citado artigo 187, que claramente aponta para o abuso se acontecer qualquer das três hipóteses lá previstas: a) desvio do fim econômico ou social do direito; b) desatendimento à boa-fé; ou c) aos bons costumes.

E para nós, efetivamente não se justifica a procura de natureza diversa do ilícito para o ato abusivo, mostrando-se adequada sua colocação como tal no Código Civil.

E isto porque não se pode vislumbrar o ilícito somente no ato conscientemente intencional, no caso do dolo, ou que indeliberadamente tenha causado dano em razão de culpa em sentido estrito. O ilícito também o é pelo resultado do ato, irrelevante a

perquirição do “animus nocendi” ou de culpa – ou nem sequer se poderia admitir a existência da responsabilização objetiva, que parte justamente dessa irrelevância e da análise objetiva dos resultados danosos do ato, contratual ou aquiliano.

Ao se adotar a corrente objetivista, sem investigação do elemento intencional, coerentemente o Código Civil enfatizou o caráter anti-social ou anti-funcional do ato, adotando-se o critério puramente finalístico ou teleológico do desvio de direito de sua destinação social ou do afastamento em relação à boa-fé objetiva e aos bons costumes. Nesse desvio ou afastamento, no exercício excessivo do direito, encontra- se a configuração do ilícito, pelos resultados danosos advindos, repita-se, sem necessidade de outras preocupações ou indagações de caráter investigativo 50.

Por outro lado, também é ilícito o comportamento de quem se despreocupa dos deveres de lealdade, de colaboração, de solidariedade, nesses pontos infringindo a boa-fé objetiva e caracterizando o abuso. Movendo-se na liberdade própria do indivíduo, tem ele a obrigação de conciliar essa liberdade com os direitos dos demais envolvidos na relação jurídica, nisso consistindo o problema da responsabilidade jurídica, como observado por EMMANUEL LÉVY: “c’est ce conflit des libertés et des droits qui constitue aujourd’hui le problème de la responsabilité juridique” 51.

É ilícito o que se desvia de sua finalidade social, ainda que protegido inicialmente pela lei – mas sempre se lembrando que a lei não esgota o direito, nem o

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De todos os que escreveram sobre a matéria, JOSSERAND teve a primazia quanto ao critério finalista e, ao identificá-lo, sintetizar seu conceito de modo insuperável: “L´acte abusif est l´acte contraire au but de l´institution, `a son esprit et à as finalité”. Para o consagrado Mestre francês, existe o abuso do direito quando o ato é exercido de acordo com o direito da pessoa e contrariamente às regras sociais; desse modo, os pretensos direitos subjetivos não passam de direitos funções, que têm finalidade a cumprir e dela não se podem desviar, sob pena de cometimento de um abuso do direito. (“De l´Esprit des Droits et de leur Relativité Théorie dite de l´Abus des Droits”, Paris, 1972).

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legal confunde-se necessariamente com o ilícito, que pode surgir da infração a conceitos determinados pela função, como o abuso, ou de lesão a cláusulas gerais, como a da boa-fé objetiva, ou da violação a princípios gerais de direito, como o que proíbe aproveitar-se da própria torpeza.

Admitir o abuso do direito somente no ato praticado com a intenção de causar dano a outrem é limitar demais o seu alcance, mesmo porque, no mais das vezes, haverá dificuldade em se provar o elemento subjetivo com que tenha agido o ofensor – mesmo que se inverta o ônus probatório, a este socorrerá sempre o princípio geral pelo qual a boa-fé se presume, devendo ser provada a má-fé pela vítima que, não o conseguindo, muito freqüentemente não terá sucesso em seu pleito indenizatório.

Os adeptos da teoria subjetiva partem do princípio, equivocado, de que só há ilícito onde houver culpa ou dolo, esquecendo-se de que também existe o ilícito decorrente da responsabilidade objetiva, na qual não se perquire sobre a intenção ou culpa do agente, mas examinam-se apenas os resultados concretos do ato danoso em face, por exemplo, de uma atividade exercida pelo ofensor que se caracterize como de risco (Código Civil, art. 927, parágrafo único).

Essa busca das intenções e das culpas não restou despercebida a PONTES DE MIRANDA, que alertava que “Os inimigos da teoria do abuso do direito são os que vêem nas leis regras abstratas, duras (“Dura lex sed lex”), cargas de forças atributivas de situações jurídicas subjetivas absolutas (“neminem laedit qui suo iure utitur”), isto é, os que buscam o fundamento para regular o bom e o mau social, não nos fatos e

resultados, mas nas intenções, nas culpas 52”. Observa-se, assim, que não apenas os inimigos da teoria do abuso do direito procuram as intenções e as culpas, mas também os que só a enxergam nas condutas dolosas ou culposas, criando um limite injustificável à sua aplicação social, por deixarem de considerar o resultado, em si, do ato danoso praticado.

Por outro lado, a teoria da responsabilidade que decorre da culpa é a mais fácil de se entender e de aceitar, já que deriva de uma noção natural, e universal, de que aquele que causa um dano culposamente – por ato doloso ou culposo em sentido estrito – deve responder pelas conseqüências de sua conduta. É teoria que serve tanto para os países de cultura jurídica com raízes romanas, e de direito codificado, como para países que seguem a “common law”, dizendo mesmo ROSCOE POUND que “It became orthodox common law that liability was a corollary of fault” 53, o que nos remete aos ainda defensores de que só pode existir o abuso se o ato for emulativo, intencionalmente destinado a causar prejuízo à vítima.

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“Comentários ao CPC de 1939”, Edit., Rio, 1947, vol. I, nota final I, p. 521.

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POUND mostra de modo direto a universalidade da noção de responsabilidade decorrente da culpa, a partir do século XIX, apontando a influência nesse ponto do Direito francês (como para nós, em relação ao Código Civil de 1916) no sistema jurídico anglo-americano: “ Modern law has given up both the nominate delicts and quase-delict, as things of any significance. The French civil code made the idea of Aquilian culpa into a general theory of delictal liability, saying, “Every act of man which causes damage to another obliges him through whose fault it happened to make reparation.” In other words, liability is to be based on an act, and it must be a culpable act. Act, culpability, causation, damage were the elements. This simple theory of liability for culpable causation of damage was accepted universally by civilians until late in the nineteenth century and is still orthodox. Taken up by text writers on torts in the last half of that century, it had much influence in Anglo-American law”.

(“An Introduction to the Philosophy of Law”, New Haven and London, Yale University Press, 1982, edictal revist of 1953, pp.81/82).

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 53-57)