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Se já é difícil definir, caso a caso, a boa-fé objetiva, que se dirá da análise concreta da lesão aos bons costumes, também fator a vincular e condicionar o escorreito exercício de direito – à sua falta, o art. 187 do Código Civil também caracteriza o abuso.

Poucas noções são, no direito, tão impregnadas pela moral como a de bons costumes – até se confundem moral e direito, na verdade, no momento em que couber ao julgador apontar determinada hipótese de conduta como ofensiva aos bons costumes "e à moral", sempre um termo acompanhando o outro, como se fossem coisa única, de único significado. Tanto que VICENTE RAÓ os definem como “o modo constante e comum de se proceder de acordo com os ditames da moral social, segundo cada povo as concebe”. 86

E coisa única não são, ou confundir-se-iam continente (a moral) e o conteúdo (bons costumes). E englobe-se ainda a moral ética, no conceito amplo de que esta abrange a multiplicidade possível de condutas humanas, desse modo podendo-se falar numa ética na filosofia, na religião, na vida privada, pessoal ou profissional, e assim por diante.

O conceito jurídico determinado pela função, de que o abuso do direito é exemplo, é típico dos sistemas jurídicos abertos, flexíveis, que dão ao juiz a possibilidade – mais do que isso, o dever processual – de fixá-lo e precisar o seu

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“Ato Jurídico”, 4ª ed. Anotada, rev. e atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval; Edit.RT., São Paulo, 1997, p. 138.

alcance ao caso concreto. É nesse contexto que nasce a necessidade de fixação da ofensa aos bons costumes como conduta abusiva, o que será sempre difícil, anota FLÁVIO TARTUCE 87, pela variação de acordo com aspectos subjetivos, espaciais e temporais. E, realmente, cada julgador poderá ter uma visão diversa do “bom” ou do “mau” costume – já que dependente de suas condições pessoais próprias -, análise que também mudará de lugar e de época para época. Pense-se, por exemplo, no costume de se ir à praia com os biquínis atuais, até a década de sessenta ou setenta do século passado; mesmo hoje, porém, tente-se roupa de praia equivalente em qualquer país islâmico – e a ira fundamentalista recairá sobre o incauto infeliz, com toda certeza.

Um bom exemplo tirado da jurisprudência foi a decisão polêmica do Supremo Tribunal Federal que, por maioria, proibiu a “farra do boi” em Santa Catarina, considerando-a um “mau costume”. Verifique-se a ementa, frisando-se que o abuso ter-se-ia configurado na exposição dos animais à crueldade, em argumento que seria por certo risível na Espanha, em face do que acontece numa tourada: “Costume – Manifestação cultural – Estímulo – Razoabilidade – Preservação da fauna e da flora – Animais – Crueldade. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do art. 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’” (STF, RE 153531, j. 03.06.1997. Legislação: Leg. Fed., CF, ano – 1988; artigos. – 215, 225, § 1º, inc. VII,

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“Novo Código Civil – Questões Controvertidas”, Vol.2, Coordenação de Mário Luiz Delgado e Jones Figueirêdo Alves, Edit. Método, São Paulo, 2004, p. 93.

CF-88. Observação: Votação: por maioria; resultado: conhecido e provido; Origem: SC – Santa Catarina; Partes: recte.: Apande – Associação Amigos de Petrópolis – Patrimônio, Proteção aos Animais e Defesa da Ecologia e outros; recdo.: Estado de Santa Catarina; publicação: DJ 13.03.1998. p. -3; Ementário vol.1902-02, p. 388, rel. p/o acórdão: Marco Aurélio, rel. Francisco Rezek; Sessão: 2ª - Segunda Turma).

De qualquer modo, a dificuldade na conceituação de bons costumes é

generalidade, apontando CUNHA DE SÁ 88 que se contrapõem duas concepções,

uma de ordem sociológica dos bons costumes, que procurará o conceito no exame da opinião socialmente dominante, desse modo aceitando-se sua natureza variável e contingente, como antes expusemos; ou então, uma concepção idealista dos bons costumes, de matiz filosófico ou religioso, que o autor luso admite, em termos de moral cristã, pela existência de preceito constitucional que reconhece o catolicismo como religião tradicional de Portugal (art. 46).

Fica-se com o caráter variável e contingente da noção de bons costumes, até porque o Estado brasileiro é laico, não havendo justificativa legal para se preferir os ditames de determinada religião em relação a qualquer outra ou em face de visões agnósticas ou ateístas. Mas não se pode deixar de reconhecer a grande influência dos

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Ob., cit., p.190 - “Não há, todavia, unanimidade na doutrina portuguesa: assim, Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, ob. cit., II, p. 341, embora não se referindo concretamente ao problema, parece desviar-se deste entendimento ao afirmar que a moral pública «é o conjunto das regras morais aceites pela consciência social», aquela que «corresponde ao sentido ético imperante na comunidade social» e que, conseqüentemente, «não se trata de usos ou práticas morais, mas de idéias ou convicções morais; não da moral que se observa e se pratica (mores), mas daquela que se entende dever ser observada (bonus mores)», nem tão pouco ainda «da moral transcendente, religiosa ou filósofa, mas da moral positiva (hoc sensu)»; neste sentido vai igualmente Vaz Serra, Objecto da obrigação – A prestação – Suas espécies, conteúdo e requisitos, no «Boletim do Ministério da Justiça» nº 74, pp.174 e segs. (máxime, pp. 190 e 191), sustentando até que o critério das concepções morais dominantes na sociedade «não se afigura o melhor, pois na sociedade podem dominar critérios reprováveis, que não convenha manter».

postulados cristãos na conformação dos bons costumes entre nós, como também não se pode aceitar que, sempre, o critério das concepções morais dominantes na sociedade seja o adotado, pois muitas vezes este é reprovável, “v.g.”, no notório costume da “fezinha” no jogo do bicho ou na exploração das rinhas de galo. Esta última, principalmente, costume “contra legem” de visível abuso e crueldade em relação aos animais 89.

Por fim, sob o aspecto dos bons costumes poder-se-ia dar certa razão aos que vêem no abuso um conceito sociológico, pois aí se tem efetivamente que considerar o fato social e suas contingências espaciais, temporais e pessoais na caracterização do que sejam bons costumes. No entanto, admitido que seja o matiz sociológico, nem por isso deixa de se configurar o ilícito a partir do momento em que se encontre presente a lesão aos bons costumes; a conseqüência é a mesma, qual seja, a nulidade da cláusula (se contratual o abuso) ou a ordem judicial de fazer ou não fazer, em caso de responsabilidade extracontratual pelo abuso – e, em ambas as hipóteses, a alternativa

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Interessante rol relativo a infrações aos bons costumes em Portugal nos oferece JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU (“Do Abuso de Direito”, Almedina, Coimbra, 1999, p. 65): “Diversas normas do Código Civil se referem aos bons costumes. É o caso dos arts. 271.º, n.º 1 (nulidade do negócio jurídico subordinado a uma condição «ofensiva dos bons costumes»), 280.º., n.º 2 (nulidade do negócio com objecto «ofensivo dos bons costumes»), 281.º (nulidade do negócio quando o seu fim «ofensivo dos bons costumes» é comum a ambas as partes), 340.º, n.º 2 (ilicitude do acto lesivo dos direitos de outrem quando – apesar do consentimento do lesado -, aquele acto for «contrário aos bons costumes»), 465.º, al. a) (dever de o gestor de negócios se conformar com a vontade, real ou presumida, do dono do negócio que não seja «ofensiva dos bons costumes»), 1093.º, n.º 1,al. c) (resolução do contrato de arrendamento com fundamento em reiteradas ou habituais práticas «imorais» no prédio arrendado), 1422.º, n.º 2, al. b) (proibição de os condóminos destinarem as suas fracções a usos «ofensivos dos bons costumes»), 2186.º (nulidade da disposição testamentária quando essencialmente determinada por fim «ofensivo dos bons costumes»), 2230.º (consideração como não escrita da condição «ofensiva dos bons costumes» na instituição de herdeiro ou na nomeação de legatário), 2245.º (aplicação do art. 2230.º aos encargos «ofensivos dos bons costumes»)”. São situações em tudo aplicáveis ao direito pátrio, no mais das vezes também previstas em nosso Código Civil como causas de invalidade dos negócios jurídicos por ofensa aos bons costumes, por vezes no elenco genérico dos atos ilícitos – “v.g.”, perda do poder familiar por atos contrários aos bons costumes, art. 1.638, III; vedação a ato de disposição do próprio corpo que contrarie os bons costumes, art. 13; anulação da doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice, art. 550; etc.

de indenização na impossibilidade de manutenção do contrato ou de cumprimento do mandamento judicial cominatório.

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 77-82)