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28.USO NOCIVO DA PROPRIEDADE E O ABUSO DO DIREITO

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 129-136)

Como tem sido visto, o comportamento abusivo não se iguala à conduta ilegal, pois esta diz respeito à violação da lei, enquanto o ato abusivo concerne à infração de um direito aparente, ato tornado ilícito pelo desvio de sua finalidade social ou econômica.

Nesse sentido, o uso nocivo da propriedade também não se confunde com a ilegalidade, conforme se extrai dos antigos artigos 554 e 555 do Código Civil de 1916, hoje artigos 1277 e 1280. Poderá tratar-se de uso ilegal, como ensina o mestre ARRUDA ALVIM, se o direito de propriedade for exercido fora dos limites fixados nas normas constitucionais, nas normas de sobredireito e com desrespeito aos direitos de vizinhança, tais como descritos na lei civil 138.

Ou seja, havendo lei e esta prevendo o que seja uso nocivo da propriedade, em ocorrendo a conduta esta será ilegal. Nada tem a ver com o abuso do direito.

Mas pode ocorrer que, a uma, exista lei que não preveja determinada conduta como nociva, ou que não exista lei a ser considerada no caso em análise, hipóteses nas quais, embora o ato não possa ser acoimado de ilegal, poderá caracterizar-se como abusivo, se configurados os requisitos antifinalísticos – com muito maior razão, também se emulativos – que o definam como tal.

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Como ensina VILSON RODRIGUES ALVES, em expressiva obra sobre a matéria, as leis "lato sensu" não exaurem o conceito de uso nocivo da propriedade e nem, com maior razão, a inexistência delas levará a que se conclua pelo não-mau uso da propriedade 139.

O mesmo autor não identifica no uso nocivo da propriedade o abuso do direito140, mas para nós a razão está com quem faz tal identificação, mormente em relação à normalidade do exercício do direito de propriedade e seu relativismo quando em conflito com os direitos da vizinhança.

A análise é especialmente pertinente ao antigo artigo 554 do Código Civil de 1916, reproduzido em sua essência pelo atual artigo 1277, "caput" do atual Código, com maior explicitação de seu alcance no parágrafo único do mesmo artigo 1277. Confira-se a norma, prevista no Capítulo referente aos direitos de vizinhança e, apropriadamente, na seção relativa ao uso anormal da propriedade:

"O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha:

Parágrafo único - Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as

139

"Uso nocivo da propriedade", Edit. RT, 1992, São Paulo, p. 330.

140

Ob. cit., pp. 342/343. Vilson Alves afirma que os artigos 554 e 555 do Código Civil de 1916 já limitam o direito de propriedade, “o que torna absolutamente inócua a invocação das regras jurídicas alusivas a abuso do direito, ou mesmo a emulação, diversamente do que se dá no Direito italiano, na forma do art. 833 do Código Civil”. Em sentido contrário, ou seja, afirmando o abuso nas relações de vizinhança, cita o autor José de Aguiar Dias, Jefferson Daibert, Maria Helena Diniz, Washington de Barros Monteiro, Cunha Gonçalves, Silvio Rodrigues, Marco Aurélio da Silva Viana, dentre outros.

normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança”.

A expressão "uso anormal da propriedade" tem nítida correlação com o chamado exercício regular de direito de que já cuidava o artigo 160, I, do Código Civil de 1916, reproduzido pelo artigo 188, I, do atual Código e que até a entrada em vigor deste lastreava para a maior parte da doutrina a figura do abuso do direito – como já visto, por interpretação "a contrario sensu" tem-se por ilícito o exercício irregular de direito, o que nada mais é senão o seu exercício anormal, que na espécie, à vista do antigo artigo 554 do Código Civil de 1916 era indicado como "mau uso da propriedade":

“Art. 554. O proprietário, ou inquilino de um prédio tem o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurança, o sossego e a saúde dos que o habitam”.

Equiparado o mau uso da propriedade ao seu uso anormal, do qual poderá decorrer a nocividade à vizinhança, tem-se que essa anormalidade é característica do abuso, seja pelo uso irregular de direito que continua previsto no Código Civil, agora no artigo 188, I, seja porque a anormalidade – ou seja, o mau uso – configura o desvio da finalidade social da propriedade, ou de sua função social, enquadrando-se as

hipóteses do artigo 1277, "caput", do Código Civil no conceito legal determinado pela função do artigo 187.

Inequívoco, no caso, que a expressão "interferências prejudiciais... provocadas pela utilização de propriedade vizinha", contida no art. 1277 tem o mesmo sentido da anterior "mau uso da propriedade vizinha", explicitado somente, no parágrafo único do mesmo artigo 1277, em face de quais circunstâncias devem ser consideradas tais interferências à segurança, ao sossego e à saúde dos vizinhos. E na medida em que se exige o prejuízo, também se evidencia que a decorrência da má utilização da propriedade é ainda sua nocividade, cuja cessação pode ser exigida mesmo diante de decisão judicial declarando a tolerabilidade das interferências: "Ainda que por decisão judicial devam ser toleradas as interferências, poderá o vizinho exigir a sua redução, ou eliminação, quando estas se tornarem possíveis" (art. 1279).

Resta claro, aqui, tratar-se de hipótese ligada ao abuso do direito e não à mera legalidade ou não da conduta. Esta é legal – tanto que o juiz determina sua tolerância ao ofendido –, mas em razão do abuso, contido no excesso, na má utilização da propriedade em relação ao vizinho, interferindo de forma prejudicial em sua saúde, sossego ou segurança, pode o prejudicado exigir, quando possível, a redução ou eliminação desse abuso (que são as interferências prejudiciais), por via de ação de obrigação de fazer ou de abstenção de ato, dependendo das circunstâncias, com a cominação de pena pecuniária para o caso de descumprimento da ordem judicial. Será caso então de aplicação do artigo 287 do CPC, com a nova redação dada pela lei 10.444, de 07de maio de 2002: "Se o autor pedir que seja imposta ao réu a abstenção da prática de algum ato, tolerar alguma atividade, prestar ato ou entregar

coisa, poderá requerer cominação de pena pecuniária, para o caso de descumprimento da sentença, ou da decisão antecipatória de tutela (artigos 461, § 4º, e 461-A)". Tais artigos, por sua vez, cuidam e prevêem as chamadas “astreintes” (como forma de inibir a conduta do ofensor e garantir a efetividade da prestação jurisdicional).

A noção de abuso no exercício anormal de direito de propriedade também é apontado por HELY LOPES MEIRELES, em comentários ao citado artigo 554 do Código Civil de 1916, ao dizer que tal preceito consagra "o princípio da relatividade do direito de propriedade, ou, mais adequadamente, o da normalidade de seu exercício. O que a lei está a dizer é que ao proprietário ou possuidor só é lícito o uso regular do imóvel, sem abuso ou excesso na fruição de seus direitos. Toda utilização que exceder a normalidade vale dizer, os padrões comuns de uso da propriedade, segundo a destinação e localização do imóvel, erige-se em mau uso, e como tal pode ser impedida pelo vizinho, por anormal 141".

Também WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO afirma que o legislador pátrio abraçou indubitavelmente a teoria da anormalidade, apontando-a na interpretação em senso contrário do artigo 160, I, do Código Civil de 1916 (188, I, do atual Código) e exemplificando que haverá abuso se alguém, em sua propriedade, provocar emissão de fumaça, ou produzir ruído, em virtude de profissão, excessivos,

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fora do normal, do comum, configurando mau uso da propriedade a ser reduzido às devidas proporções, por via judicial 142.

Do mesmo sentir é a opinião de WALDIR ARRUDA MIRANDA CARNEIRO, ao defender que será anormal a utilização da propriedade que ultrapasse os limites dos incômodos que devem ser tolerados pelo homem comum, penetrando na esfera do dano ao sossego, à saúde ou à segurança dos vizinhos, o que caracterizará o abuso do direito. O autor refere-se primordialmente ao mau uso da propriedade em razão de ruídos e barulhos excessivos 143, em dado momento afirmando, com razão, que:

"Equívoco comum na verificação da normalidade do uso de certo imóvel, no que concerne às perturbações sonoras, é o de tomá-lo sob o ponto de vista do agente produtor do ruído e não sob o do vizinho. Excessivo e anormal é o barulho capaz de prejudicar o sossego ou a saúde do vizinho, não obstante a utilização do imóvel possa ser considerada normal, na perspectiva de quem o utiliza" (ob. cit., pág. 23).

Essa observação e a anterior endossam a idéia do abuso objetivo, independente de qualquer intenção de causar prejuízo ao vizinho, como erradamente dá a entender o § 2º do artigo 1228 do Código Civil.

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Revista Forense 249/398; palestra realizada em reunião do Conselho Técnico de Economia, Sociologia e Política, em 25.4.74.

143

Outros exemplos clássicos de uso anormal da propriedade são festas noturnas com excesso de barulho, altas horas da madrugada; poluição de águas, criação de animais que exalem maus cheiros ou enxameiem moscas, etc. (in "Perturbações Sonoras nas Edificações Urbanas", Edit. RT., 2ª ed., São Paulo, pág. 22).

CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA 144 afirma que na composição dos conflitos de vizinhança penetra-se terreno peculiar, no qual “não falta à sua noção básica a idéia de responsabilidade objetiva ou aplicação da teoria da responsabilidade sem culpa, ou da determinação da responsabilidade alicerçada na noção do abuso do direito”.

Por fim, interessante síntese é feita por CARLOS ALBERTO DABUS MALUF

145

, em obra específica sobre as restrições que atingem o exercício da propriedade, ao dizer que “aquele que não usa da sua propriedade de modo ordinário, segundo as condições normais da situação do imóvel, do tempo e do lugar, mas antes procede com abuso do seu direito, sem o respeito devido à esfera de ação e aos interesses dos vizinhos, sem proveito próprio sério e legítimo, com mero intuito malévolo, ou por espírito de chicana, bem assim aquele que cria um risco novo, exercendo uma atividade legítima, mas nociva a terceiros, será responsável pelos danos que produzir a estes e às coisas destes”. No exercício de uma “atividade legítima, mas nociva a terceiros”, resta clara a objetividade da responsabilidade em análise, abuso sem intenção de dano e sem culpa, decorrente apenas da teoria do risco criado.

144

“Instituições de Direito Civil”, vol. IV Edit. Forense, Rio, 19ª ed., 2005, atualizada por Carlos Edison do Rego Monteiro Filho, em itálico no original.

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29.ABUSO NO PODER FAMILIAR E OUTRAS QUESTÕES DA

No documento O abuso e o novo direito civil brasileiro (páginas 129-136)