2. ELEMENTOS DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E SUA EXTENSÃO NA
2.3 Acusação justa com o princípio do promotor natural
Uma interpretação ampliativa do disposto no artigo 5º, incisos XXXVII e LIII
da Constituição Federal permite extrair, além do princípio do juiz natural, a ideia de
imparcialidade e independência também do promotor natural, assegurando ao
acusado, o direito a uma acusação justa.
91MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 31ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 427-428 e 528.
92 Texto extraído de http://www.cnj.jus.br/publicacoes/codigo-de-etica-da-magistratura. Acesso em
15.06.2018.
Para que se possa melhor compreender o surgimento da teoria e sua
consolidação no direito brasileiro, deve-se, primeiramente, notar o inédito tratamento
dado pela Constituição de 1988 ao Ministério Público, que reservou enorme
importância à instituição.
Referida Carta em seu artigo 127 estabelece que o Ministério Público, como
função essencial à justiça, é fundamental jurisdição Estatal, sendo incumbido de
preservar a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais
indisponíveis.
Nesse sentido, o referido órgão possui a função de promover, privativamente,
a ação penal pública. A Constituição também lhe confere legitimidade para a
propositura de ação civil pública na defesa de interesses difusos e coletivos, bem
como para realizar investigações na fase de inquérito, entre outras funções
determinadas no artigo 129 da Carta.
O Ministério Público possui como princípios institucionais a unidade, a
indivisibilidade e a independência funcional. O princípio da unidade determina que o
Ministério Público constitui um único organismo, não se podendo dissociar o membro
do órgão.
Já o princípio da indivisibilidade consiste na possibilidade de um membro do
parquet ser substituído por outro, sem que esse fato cause a cindibilidade da
instituição. Tais substituições não devem ocorrer, logicamente, de maneira arbitrária,
devendo haver permissão legal para tanto, bem como que o ato decorra de autoridade
com a devida atribuição para este fim.93
Finalmente, o princípio da independência funcional, garante ao membro do
Ministério Público plena liberdade de ofício, não se submetendo às ordens de
superiores hierárquicos, nem de pressões advindas de outros órgãos e poderes da
república. Referido princípio, de suma importância para a instituição, é também
93CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural.
Atribuição e conflito. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 43-45.
resguardado pelas garantias e vedações dos membros do Ministério Público,
semelhantes as garantias pertencentes aos próprios membros do Poder Judiciário.
Nessa esteira, o § 5º, incisos I e II, do artigo 128 da Constituição Federal,
garante aos membros do Ministério Público as seguintes prerrogativas e vedações:
[...] I – As seguintes garantias:
a) vitaliciedade, após dois anos de exercício, não podendo perder o
cargo senão por sentença judicial transitada em julgado;
b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante
decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, pelo
voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa;
c) irredutibilidade de subsídio, fixado na forma do art. 39, § 4º, e
ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 150, II, 153, III, 153, § 2º, I;
II - as seguintes vedações:
a) receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários,
percentagens ou custas processuais;
b) exercer a advocacia;
c) participar de sociedade comercial, na forma da lei;
d) exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função
pública, salvo uma de magistério;
e) exercer atividade político-partidária;
f) receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de
pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as
exceções previstas em lei.
Como se percebe, tais garantias e vedações asseguram que os membros do
parquet oficiem de maneira independente e imparcial. Ademais, na mesma linha dos
magistrados, para os casos em que constatada parcialidade do promotor de justiça, a
legislação processual civil e processual penal determinam o impedimento, para os
casos de parcialidade por causas objetivas, bem como impõem a suspeição para as
hipóteses de parcialidade por causas subjetivas, tais hipóteses exigem o afastamento
do promotor do caso dando-se lugar ao seu substituto legal.
Expostos as funções, os princípios e as prerrogativas basilares da instituição,
passa-se a análise do princípio do promotor natural. Conforme já ventilado, o artigo
5º, incisos XXXVII e LIII estabelecem que não haverá juízo ou tribunal de exceção e
que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.
Uma interpretação ampliativa e coerente desses direitos fundamentais, em
consonância com os princípios e garantias postos ao Ministério Público pela própria
Constituição Federal, permite extrair da Carta o princípio do promotor natural, o qual
resguarda aos cidadãos o direito de não ser acusado por um promotor de exceção,
bem como de ser processado – e não apenas sentenciado – pela autoridade
competente.
Nesse sentido, Guilherme Madeira Dezem salienta:
A partir da leitura do termo “processado”, tem-se entendido que se
refere ele à ideia do promotor natural. Também não se pode esquecer
que o princípio do promotor natural é vinculado à ideia de
inamovibilidade, bem como à ideia de que o promotor ocupe
efetivamente cargos determinados por lei.94
Com efeito, o princípio do promotor natural, surge da necessidade de coibir
que o Procurador Geral de Justiça, possa designar, arbitrariamente, os membros de
Ministério Público para atuarem em determinado caso concreto, fato que poderia
afetar a independência e imparcialidade do promotor.95 Nessa toada, Hugo Nigro
Mazzilli destaca a importância do princípio, o colocando como o primeiro direito do
acusado:
Realmente, este é o primeiro direito do acusado: não apenas o de ser
julgado por um órgão independente do Estado, mas, até mesmo antes
disso, o de receber a acusação independente de um órgão do Estado
escolhido previamente segundo critérios e atribuições legais, abolidos
não só o procedimento de ofício e a acusação privada, como enfim e
principalmente eliminada a figura do próprio acusador público por
encomenda, escolhido pelo Procurador-Geral de Justiça.96
Reitera-se que a garantia dada pela Constituição no sentido de o
jurisdicionado ser processado apenas pela autoridade competente, somada a garantia
de inamovibilidade e da independência do membro do Ministério Público, consagra
94 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2018, p. 134.
95No mesmo sentido é o entendimento de Nelson Nery Junior: Isso quer significar que o jurisdicionado
tem a garantia constitucional de ver-se processado e julgado pelas autoridades competentes,
previamente estabelecidas pelas leis processuais e de organização judiciária. Estão vedadas as
designações discricionárias de promotores ad hoc pelo Procurador-Geral de Justiça, feitas a pretexto
da unidade e chefia da instituição. (NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição
Federal. 12. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 204).
96 MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p.
79.
em absoluto a existência do princípio do promotor natural no ordenamento
constitucional.
Aqui, vale transcrever o entendimento de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro,
veemente defensor da existência do princípio:
A teoria do promotor natural ou legal, como anteriormente afirmado,
decorre do princípio da independência, que é imanente à própria
Constituição. Ela resulta, de um lado, da garantia de toda e qualquer
pessoa física, jurídica ou formal que figure em determinado processo
que reclame a intervenção do Ministério Público, em ter um órgão
específico do parquet atuando livremente com atribuição
predeterminada em lei, e, portanto, o direito subjetivo do cidadão ao
Promotor (aqui no sentido lato), legalmente legitimado para o
processo. Por outro lado, ela se constitui também como garantia
constitucional do princípio da independência funcional,
compreendendo o direito do promotor de oficiar nos processos afetos
ao âmbito de suas atribuições.
Este princípio, na realidade, é verdadeira garantia constitucional,
menos dos membros do parquet e mais da própria sociedade, do
próprio cidadão, que tem assegurando, nos diversos processos em
que o MP atua, que nenhuma autoridade poderá escolher Promotor ou
Procurador específico para determinada causa, bem como que o
pronunciamento deste membro do MP dar-se-á livremente, sem
qualquer tipo de interferência de terceiros.
Esta garantia social e individual permite ao Ministério Público cumprir,
livre de pressões e influências, a sua missão constitucional de defesa
da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis. Qual a garantia que se poderia dar a alguém,
à própria sociedade, de que a lei seria cumprida, na hipótese de ficar
ao arbítrio de determinada autoridade a escolha do membro do
Ministério Público para examinar da conveniência ou não de promover
ação penal em face de alta autoridade pública; para promover ou não
ação cível contra poderosa fábrica que polui o ar de determinada
região pobre; para promover ação visando a apurar abuso e omissões
de autoridades; para coibir abuso de autoridade ou poder econômico;
para intervir, em geral, nos processos nos quais está em jogo direito
social ou individual indisponível? Certamente nenhuma.97
Desse modo, para que se configure a efetividade do princípio é necessário
que cada órgão da instituição possua suas atribuições fixadas em lei, bem como que
o promotor de justiça ocupante do cargo seja o responsável legal pelo ofício daquele
órgão.98
97 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural.
Atribuição e conflito. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 50-51.
98 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural.
Atribuição e conflito. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 51.
Deve-se ressaltar também, que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a
existência do princípio na Constituição, em histórico acórdão de relatoria do Ministro
Celso de Mello, o qual vale citar a sua ementa:
"HABEAS CORPUS" - MINISTÉRIO PÚBLICO - SUA DESTINAÇÃO
CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS - A QUESTÃO
DO PROMOTOR NATURAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
- ALEGADO EXCESSO NO EXERCÍCIO DO PODER DE
DENUNCIAR - INOCORRENCIA - CONSTRANGIMENTO INJUSTO
NÃO CARACTERIZADO - PEDIDO INDEFERIDO. - O postulado do
Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional
brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas
efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção.
Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada
tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que
lhe assegura o exercício pleno e independente do seu oficio, quanto a
tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver
atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção
se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados,
estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio
assenta-se nas clausulas da independência funcional e da inamovibilidade dos
membros da Instituição. O postulado do Promotor Natural limita, por
isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão
visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do
Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável. Posição dos
Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE,
MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO. Divergência, apenas,
quanto a aplicabilidade imediata do princípio do Promotor Natural:
necessidade da "interpositio legislatoris" para efeito de atuação do
princípio (Ministro CELSO DE MELLO); incidência do postulado,
independentemente de intermediação legislativa (Ministros
SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS
VELLOSO). - Reconhecimento da possibilidade de instituição do
princípio do Promotor Natural mediante lei (Ministro SYDNEY
SANCHES). - Posição de expressa rejeição a existência desse
princípio consignada nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD,
OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES.99
Demonstrada a plena vigência do princípio do promotor natural na ordem
constitucional brasileira, se faz importante esclarecer a questão da formação grupos
especiais, com a finalidade de auxiliar o trabalho do promotor de justiça ou do
procurador da república, pelo Ministério Público e o eventual conflito da criação de tais
grupos com o princípio do promotor natural.
Com a cada vez maior sofisticação e complexidade de crimes cometidos por
grandes organizações criminosas, bem como a necessidade de haver um maior
intercâmbio de conhecimento e de informações entre os membros do parquet com a
finalidade de combater com mais agilidade e eficiência tais crimes, a Lei Orgânica
Nacional do Ministério Público (lei nº 8265 de 1993) e a Lei Complementar que
determina as normas de organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público
da União (lei complementar nº 75 de 1993) estabeleceram a possibilidade de criação
dos denominados Centros de Apoio Operacional100 e Câmaras de Coordenação e
Revisão101, respectivamente.
Além desses mencionados grupos previstos em lei, o Ministério Público
Federal tem se valido da criação de Forças-Tarefas as quais reúnem diversos
procuradores com a finalidade de integrar e qualificar as investigações de determinado
caso.
Para que não violem o princípio do promotor natural, esses grupos especiais
devem sempre atuar com o devido consentimento do promotor natural, não podendo
100Art. 33. Os Centros de Apoio Operacional são órgãos auxiliares da atividade funcional do Ministério
Público, competindo-lhes, na forma da Lei Orgânica:
I - estimular a integração e o intercâmbio entre órgãos de execução que atuem na mesma área de
atividade e que tenham atribuições comuns;
II - remeter informações técnico-jurídicas, sem caráter vinculativo, aos órgãos ligados à sua atividade;
III - estabelecer intercâmbio permanente com entidades ou órgãos públicos ou privados que atuem em
áreas afins, para obtenção de elementos técnicos especializados necessários ao desempenho de suas
funções;
IV - remeter, anualmente, ao Procurador-Geral de Justiça relatório das atividades do Ministério Público
relativas às suas áreas de atribuições;
V - exercer outras funções compatíveis com suas finalidades, vedado o exercício de qualquer atividade
de órgão de execução, bem como a expedição de atos normativos a estes dirigidos.
101Art. 62. Compete às Câmaras de Coordenação e Revisão:
I - promover a integração e a coordenação dos órgãos institucionais que atuem em ofícios ligados ao
setor de sua competência, observado o princípio da independência funcional;
II - manter intercâmbio com órgãos ou entidades que atuem em áreas afins;
III - encaminhar informações técnico-jurídicas aos órgãos institucionais que atuem em seu setor;
IV - manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de
informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral;
V - resolver sobre a distribuição especial de feitos que, por sua contínua reiteração, devam receber
tratamento uniforme;
VI - resolver sobre a distribuição especial de inquéritos, feitos e procedimentos, quando a matéria, por
sua natureza ou relevância, assim o exigir;
VII - decidir os conflitos de atribuições entre os órgãos do Ministério Público Federal.
Parágrafo único. A competência fixada nos incisos V e VI será exercida segundo critérios objetivos
previamente estabelecidos pelo Conselho Superior.
usurpar sua competência. Dessa forma, o promotor natural do caso é quem deve
exercer os atos de execução, sendo auxiliado pelo respectivo grupo especial.
Por conseguinte, não há que se falar em violação do princípio do promotor
natural, pois referidos grupos não vinculam o promotor natural, se prestando apenas
para auxiliar os membros do Ministério Público de maneira a dar maior presteza e
coordenação para as suas atividades, em absoluta consonância com o interesse
público.102
No documento
CIDADANIA E PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL Paradigma da Operação Lava Jato
(páginas 59-66)