• Nenhum resultado encontrado

Especialização por resoluções dos tribunais: A reserva de lei, a separação

3. O CASO DA OPERAÇÃO LAVA JATO E A CONSISTÊNCIA DA APLICAÇÃO DO

3.1.2 Especialização por resoluções dos tribunais: A reserva de lei, a separação

Exposta a política de especialização de varas atualmente implantada pelo

Poder Judiciário e seus objetivos, passe-se a analisar a questão da

constitucionalidade das resoluções emitidas pelos tribunais com a finalidade de

promover tais especializações.

Com efeito, são dois os aspectos mais polêmicos em torno das mencionadas

resoluções dos tribunais, quais sejam, se os tribunais teriam atribuição para emitirem

tais resoluções, bem como se o conteúdo dessas normas estaria violando o princípio

do juiz natural.

Quanto ao primeiro ponto, tem-se que tanto o Superior Tribunal de Justiça

quanto o Supremo Tribunal Federal já firmaram entendimento no sentido de admitir

as especializações de varas dos tribunais por meio de resoluções.

Nesse sentido, o leading case no Supremo Tribunal Federal foi o HC

88.660/CE de relatoria da Ministra Cármen Lúcia no qual prevaleceu o entendimento

de que o artigo 96, I, a, da Constituição Federal confere autonomia ao Poder Judiciário

para cuidar da distribuição das atribuições internas de seus órgãos, veja-se:

Art. 96. Compete privativamente:

I - aos tribunais:

a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos,

com observância das normas de processo e das garantias processuais

das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos

respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;

Dessa forma, entendeu-se que o disposto no inciso II, d, do mesmo artigo

96162 da Constituição não restringe a autonomia do Poder Judiciário no que se refere

a organização da competência de seus órgãos, não estando tal matéria adstrita ao

campo exclusivo de lei.

Destacou o Supremo Tribunal Federal, naquela oportunidade, que

entendimento diverso – no sentido de ser competência restrita ao Poder Legislativo

cuidar da organização das atribuições dos órgãos do Poder Judiciário – implicaria em

mácula significativa ao princípio fundamental da separação dos poderes assegurado

pela Constituição Federal, pois conferiria ao Poder Legislativo influência dominante

sobre o Poder Judiciário, subtraindo a independência necessária para o adequado

exercício da jurisdição.

Referido posicionamento do Supremo Tribunal Federal, contudo, é objeto de

críticas por parte da doutrina que entende que as cada vez mais frequentes e

numerosas resoluções possuem caráter menos legitimo do que uma lei em sentido

estrito, não conferindo a publicidade e transparência necessária a tais atos:

[...] não se pode deixar de questionar a menor legitimidade da “escolha

política” de um órgão interno do Poder Judiciário para editar um ato

normativo que terá a mesma repercussão que uma lei em sentido

estrito. A reserva de lei é expressão de democracia, já que reflete a

vontade de que determinada matéria, por sua importância, seja

disciplinada pelo Parlamento, isto é, o órgão que é expressão do corpo

eleitoral e da soberania popular [...].

Ao mais, e como consequência do primeiro ponto, é de se observar,

também, que a reserva de lei assegura maior transparência,

estabilidade e uniformidade nos critérios de distribuição de

competência, do que sua disciplina em regulamentos ou resoluções

internas dos tribunais. Tais normas muitas vezes são absolutamente

desconhecidas dos operadores do direito que, não raro, são

surpreendidos ao verem declarada a competência ou incompetência

de um órgão jurisdicional, com base em um ato cujo âmbito de

publicidade é muitíssimo restrito.163

Quanto ao segundo aspecto polêmico das resoluções, referente ao

cumprimento do princípio do juiz natural, tem-se que de forma frequente, referidas

II - ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder

Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169: [...]

d) a alteração da organização e da divisão judiciárias;

163 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2014, p. 266-267.

normas determinam a redistribuição de inquéritos e até de ações penais já em curso

para a vara especializada.

Esse fato vem sendo ratificado pelos tribunais superiores sob o argumento de

que a mera redistribuição genérica dos processos não violaria o princípio do juiz

natural, justamente por não se tratar de redistribuição de processo especifico para

determinado juiz e sim de todos os processos que versem sobre a matéria atinente a

vara especializada, o que não configuraria juízo de exceção.

Outro argumento reiteradamente utilizado pelos tribunais superiores é o de

que a alteração da competência absoluta em razão da matéria, exige a redistribuição

dos processos para a nova vara competente, excetuando a regra da perpetuatio

iurisdicionis, conforme determina, por analogia, o artigo 43164 do Código de Processo

Civil.

A respeito de tais entendimentos, é oportuno colacionar os seguintes julgados:

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL.

INSTALAÇÃO DE NOVAS VARAS POR PROVIMENTO DE

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. REDISTRIBUIÇÃO DE

PROCESSOS. NÃO-CONFIGURAÇÃO DE NULIDADE.

PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA. 1. A al. a do inc. I do art. 96

da Constituição Federal autoriza alteração da competência dos órgãos

do Poder Judiciário por deliberação dos tribunais. Precedentes. 2.

Redistribuição de processos, constitucionalmente admitida, visando a

melhor prestação da tutela jurisdicional, decorrente da instalação de

novas varas em Seção Judiciária do Tribunal Regional Federal da 3ª

Região, não ofende os princípios constitucionais do devido processo

legal, do juiz natural e da perpetuatio jurisdictionis. 3. Ordem

denegada.165

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. TRÁFICO DE DROGAS.

REDISTRIBUIÇÃO DO PROCESSO. CRIAÇÃO DE NOVA VARA NA

COMARCA. ALTERAÇÃO DA COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA

MATÉRIA. TESE DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL.

NÃO OCORRÊNCIA. ORDEM NÃO CONHECIDA. 1. Consoante a

jurisprudência desta Corte Superior, não ofende os princípios do juiz

natural e da perpetuação da jurisdição a redistribuição de processo

pela criação de nova vara especializada na Comarca com

164 Art. 43. Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial,

sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo

quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta.

consequente alteração da competência em razão da matéria, para fins

de melhor prestar a jurisdição e não de remanejar, de forma

excepcional e por razões personalíssimas, um único processo. 2. A

redistribuição do processo do paciente não foi casuística, mas

decorreu de alteração de regras de competência material do órgão

judicial, por razões de reorganização judiciária. 3. Habeas corpus não

conhecido.166

Em que pese a boa intenção desse entendimento por parte dos tribunais

superiores, no sentido de melhorar e tornar mais célere a prestação jurisdicional,

nota-se uma evidente fragilização do princípio do juiz natural, o qual garante ao

jurisdicionado, no processo penal, um julgamento realizado pela autoridade

competente predefinida em lei no momento do fato a ser julgado.

No caso da resolução nº 20/2003 do Tribunal Regional Federal da 4ª

Região167, que especializou dentre outras varas a 2ª Vara Federal de Curitiba (que

166 STJ, Sexta Turma, HC 322.632/BA, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 01.09.2015.

Ainda, no mesmo sentido: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM

AGRAVO. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE GESTÃO FRAUDULENTA. ARTIGO 4º DA

LEI Nº 7.492/86. COMPETÊNCIA. ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL.

IMPROCEDÊNCIA. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO. OFENSA REFLEXA AO TEXTO DA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DOSIMETRIA DA PENA. MATÉRIA COM REPERCUSSÃO GERAL

REJEITADA PELO PLENÁRIO DO STF NOS AUTOS DO AI Nº 742.460-RG. 1. O deslocamento da

competência em decorrência de criação de vara especializada não ofende os princípios do juiz natural,

da vedação ao juízo de exceção, ou da perpetuatio jurisdictionis. Precedentes: RHC 117.487-AgR, Rel.

Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 7/3/2014, HC 108.749, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda

Turma, DJe 7/11/2013, RE 667.442, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 25/6/2013, ARE 723.727,

Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 7/2/2013, e HC 91.253, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma,

DJe 14/11/2007. [...] 5. Agravo regimental DESPROVIDO. (STF, Primeira Turma, ARE 802.238

AgR/SP, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 05.08.2014); HABEAS CORPUS. DENÚNCIA POR

QUADRILHA ARMADA, CONCUSSÃO, FALSIDADE IDEOLÓGICA, PROSTITUIÇÃO INFANTIL E

CORRUPÇÃO DE MENOR. REDISTRIBUIÇÃO DOS AUTOS PARA VARA ESPECIALIZADA EM

CRIMES CONTRA CRIANÇA E ADOLESCENTE. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DO

JUIZ NATURAL. [...] 3 - A jurisprudência desta Corte e do Supremo Tribunal Federal têm admitido a

especialização de Varas Criminais por meio de resolução, visto que a Constituição da República, em

seu art. 96, I, "a", estabelece ser atribuição dos Tribunais dispor sobre a competência e o funcionamento

dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos. 4 - A criação de varas criminais especializadas

vem ao encontro do propósito de organização de um sistema de justiça célere e apto a enfrentar

satisfatoriamente as lides penais. 5 - Embora a competência, como regra, seja fixada no momento da

propositura da ação penal, a criação de Vara especializada em função da matéria, de natureza

absoluta, consubstancia motivo hábil à redistribuição do feito criminal, tal como na espécie. 6 - No caso,

a Resolução nº 15/2007, do Tribunal de Justiça do Paraná, estabeleceu a competência da 12ª Vara

Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba para o processamento e

julgamento de determinados crimes contra a criança e adolescente, dentre eles, o de prostituição infantil

(art. 244-A do ECA), a que responde o paciente. 7 - Ordem não conhecida. (STJ, Sexta Turma, HC

180.840/PR, Rel. Ministro Og Fernandes, julgado em 05.03.2013).

167 O PRESIDENTE DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, usando de suas atribuições

legais e regimentais, tendo em vista o decidido no PA nº 03.11.00025-8, pelo Conselho de

Administração, em sessão realizada no dia 26 de maio de 2003, e

posteriormente teve sua numeração alterada para 13ª Vara Federal de Curitiba168)

para processar e julgar crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou

ocultação de bens, direitos e valores em toda a Seção Judiciária do Paraná, tem-se

que a referida resolução determinou a redistribuição dos inquéritos policiais e

procedimentos em andamento para a vara especializada, ressalvando que as ações

penais já em curso permaneceriam nas varas de origem.

Apesar do acerto da resolução ao não estabelecer a redistribuição das ações

penais em curso, a determinação para que os inquéritos e demais procedimentos

fossem redistribuídos não respeitou a garantia protegida pelo princípio do juiz natural

que, conforme visto no capítulo segundo desta dissertação, estabelece que o cidadão

deve ser julgado pela autoridade competente no momento do cometimento do fato.

Ou seja, para que a referida resolução respeitasse inteiramente o princípio do

juiz natural, está deveria ter efeito apenas para os fatos acontecidos após o início de

sua vigência. Todavia, como se percebe, a referida resolução alterou a competência

de inquéritos e procedimentos de fatos já ocorridos, violando, portanto, o mencionado

princípio.

CONSIDERANDO a determinação contida na Resolução nº 314, de 12 de maio de 2003, do Conselho

da Justiça Federal, que determina a especialização de varas federais criminais para processar e julgar

crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;

CONSIDERANDO que a especialização de varas tem se revelado medida salutar, com notável

incremento na qualidade e na celeridade da prestação jurisdicional;

CONSIDERANDO as dificuldades de processamento dos delitos referidos, por conta da peculiaridade

e complexidade da matéria envolvida;

CONSIDERANDO que os Tribunais Regionais Federais possuem autorização legal para especializar

varas, de acordo com o disposto nos arts. 11 e 12 da Lei nº 5.010/66 c/c o art. 11, parágrafo único, da

Lei nº 7.727/89, resolve:

Art. 1º Especializar as seguintes varas criminais para processar e julgar os crimes contra o sistema

financeiro nacional e de lavagemou ocultação de bens, direitos e valores: [...]

c) 2ª Vara Criminal de Curitiba, Paraná. [...]

Art. 2º [...] §1º As varas criminais especializadas são consideradas juízo criminal especializado em

razão da matéria e terão competência sobre toda a área territorial compreendida em cada seção

judiciária. [...]

Art. 6º Os inquéritos policiais e procedimentos em andamento, bem como seus apensos ou anexos, de

competência das varas criminais especializadas serão a elas redistribuídos no prazo de noventa dias,

observando-se as cautelas de sigilo, ampla defesa e devido processo legal.

§ 1º. Os inquéritos policiais e outros procedimentos em tramitação nas varas ora especializadas,

relativos a outros delitos, serão redistribuídos às demais varas da circunscrição.

§ 2º. As ações penais não serão redistribuídas. [...].

A respeito desse tema, Guilherme Madeira Dezem possui o mesmo

entendimento aqui exarado:

[...] entendemos que apenas os fatos cometidos após a instalação

desta vara é que deveriam ter curso na vara especializada.

Entendemos que a garantia do juiz natural é incompatível com a

aplicação das exceções previstas no artigo 43 do novo CPC.169

Essa situação de não observância do princípio do juiz natural não ocorreu

apenas na resolução acima explicitada de nº 20/2003 do Tribunal Regional Federal da

4ª Região, tendo se repetido em diversos outros tribunais. Não raro, referidas

resoluções determinam a redistribuição de ações já em curso perante outras varas,

afrontando ainda mais o princípio. Tal cenário demonstra uma clara tendência do

Poder Judiciário em privilegiar princípios como o da efetividade da justiça e da

razoável duração do processo, em detrimento do princípio do juiz natural.

Como já ventilado, nota-se a boa intenção e o esforço dos tribunais estaduais

e regionais, bem como dos tribunais superiores em melhorar a prestação jurisdicional

tão criticada por sua excessiva morosidade. Não se pode deixar de pontuar, contudo,

os reiterados descumprimentos ao princípio do juiz natural pelas resoluções dos

tribunais que determinam a redistribuição dos processos e demais procedimentos

relativos a fatos já ocorridos.