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Princípio que também se estende ao delegado natural

2. ELEMENTOS DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E SUA EXTENSÃO NA

2.4 Princípio que também se estende ao delegado natural

Embora a jurisprudência ainda não possua posicionamento consolidado, uma

parcela da doutrina já admite a existência do princípio do delegado natural, garantidor

da atuação independente e imparcial do delegado.

Desse modo, deve-se apontar, de início, a previsão constitucional da figura do

delegado de polícia, integrante do Poder Executivo, a qual garante aos cidadãos a

segurança pública preservadora da ordem e da incolumidade das pessoas e do

patrimônio, exercendo a função de polícia judiciária e a de apurar as infrações

penais.103

102 Nesse sentido o STJ já decidiu: “não ofende o princípio constitucional do promotor natural a denúncia

oferecida por Promotor de Justiça integrante do grupo especializado para acompanhar as ações penais

relativamente a crimes de extorsão mediante sequestro, tráfico de entorpecentes, praticados em bando

ou quadrilha.” (RSTJ - 39/213).

103 Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para

a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes

órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e

estruturado em carreira, destina-se a:

I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e

interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras

infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme,

segundo se dispuser em lei;

II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho,

sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;

A fase investigativa do inquérito policial, apesar de possuir natureza

administrativa, possui inegável importância para o processo penal. Ademais, o

delegado, no caso de prisão em flagrante, é o primeiro a realizar o juízo de tipicidade

do fato104, sendo também o primeiro responsável pela garantia dos direitos

fundamentais e humanos do acusado.

Por conseguinte, não seria razoável esperar do delegado uma atuação que

não estritamente imparcial e independente, ao se considerar sua evidente relevância

para a condução das investigações criminais.

Nessa esteira, e em se tratando o inquérito, conforme já salientado, de

procedimento administrativo, comandado por um membro da administração pública,

impõe-se a observância do princípio da impessoalidade105, conforme determina o

artigo 37 da Constituição Cidadã:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos

Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios

obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,

publicidade e eficiência [...].

Somado a esse dever constitucional de impessoalidade do delegado, o artigo

2º da lei nº 12830/2013, para parte da doutrina, positivou a existência do princípio do

delegado natural, veja-se:

Art. 2o As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações

penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica,

essenciais e exclusivas de Estado.

§ 1o Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe

a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou

outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração

das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a

competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as

militares. [...].

104 LIMA FILHO, Eujecio Coutrim. Princípio do Delegado Natural e o sistema de garantias

constitucionais. Disponível em https://canalcienciascriminais.com.br/principio-delegado-natural.

Acesso em 04.11.2017.

105 ARAÚJO, Moacir Martini de. O princípio do delegado natural como efetivação do estado democrática

de direito. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 3, n. 1, p. 27-41, jan/jun 2012.

§ 2o Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a

requisição de perícia, informações, documentos e dados que

interessem à apuração dos fatos. [...]

§ 4o O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em

curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior

hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de

interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos

procedimentos previstos em regulamento da corporação que

prejudique a eficácia da investigação.

§ 5o A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato

fundamentado.

§ 6o O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por

ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que

deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.

Como se percebe, os parágrafos 4º e 5º do referido artigo estabeleceram a

vedação da avocação ou da redistribuição do inquérito policial pelo superior

hierárquico, salvo nas hipóteses expressamente previstas de inobservância de

procedimento que prejudiquem as investigações, e de motivos de interesse público.

Restou estabelecido, ainda, que a remoção do delegado dar-se-á somente por ato

fundamentado.106

Destarte, tem-se que em decorrência do disposto acima, restou vedado, no

direito pátrio, a figura de um delegado de exceção, nomeado após a ocorrência do

fato107, por superiores hierárquicos, privilegiando-se o delegado natural e a sua

imparcialidade e independência.

Aqui, cumpre salientar a importância de se garantir ao delegado tais garantias

para que possa oficiar sem influências de poderes políticos e econômicos, devendo

atuar unicamente conforme a sua consciência caso a caso.

Nesse sentido, é o entendimento de Eujecio Coutrim Lima Filho:

106 PERAZZONI, Franco. O Delegado de Polícia como Sujeito Processual e o Princípio do Juiz Natural.

RDPJ, Brasília, ano 1, n. 2, p. 197/215, jul-dez, 2017.

107 Nesse sentido, conforme aponta Moacir Martini de Araújo, o princípio também afasta a ocorrência

de dois tipos de vícios: “O primeiro, a figura do delegado-xerife que, no afã de perseguir um desafeto

ou algo do tipo, leva às últimas consequências a investigação criminal e, não muito difícil, o resultado

de meses de investigação, como podemos observar em algumas operações policiais supersensíveis,

que acabaram sendo prejudicadas pelo fato de seu coordenador levá-las por circunstâncias pessoais.

Por outro lado, a impunidade inerente ao agente que vive na política de ‘proteger os seus’ também será

fadada ao insucesso diante da prática de tal princípio à autoridade policial.” (ARAÚJO, Moacir Martini

de. O princípio do delegado natural como efetivação do estado democrática de direito. Revista Brasileira

de Ciências Policiais. Brasília, v. 3, n. 1, p. 27-41, jan/jun 2012).

Assim, a excessiva discricionariedade que havia na avocação de

procedimentos investigativos e a possibilidade de designação de um

delegado diferente daquele com atribuição original passou a ser

limitada pelo princípio do delegado natural positivado no sistema

jurídico brasileiro. Consequentemente, a remoção da autoridade

policial só poderá ocorrer por ato fundamentado.108

Ademais, apesar de a jurisprudência ainda ser escassa a respeito do princípio

do delegado natural, o Poder Judiciário já proferiu decisões reconhecendo a sua

validade, como a do Juiz de Direito Fernando Antônio de Lima, que aponta de forma

coerente a vigência do princípio em benefício da cidadania e em consonância com os

direitos fundamentais fixados pela Constituição:

Para fins, pois, de garantia do interesse público nas investigações

criminais, subtraindo os Delegados das pressões internas e externas,

é possível dizer que hoje já exista o princípio do Delegado Natural. [...]

Como o direito penal constitui a mais lancinante das penetrações

estatais nos direitos fundamentais, a atividade persecutória penal

cerca-se de limites sérios, graves, impositivos. Ultrapassá-los implica

fragilizar, desestabilizar e até anular a atividade de apuração,

acusação e julgamento dos crimes. Se a acusação e o julgamento não

se contentam com o arremedo de proteção dos direitos humanos, isso

permite supor que os titulares dessas atividades estatais terão

funcionalmente certas garantias de independência, como a

inamovibilidade, a vitaliciedade, o juiz natural. Mas, de nada bastará a

garantia aos titulares dessas duas atividades persecutórias acusatória

e de julgamento se a primeira ponta, a primeira que lida com o fato

criminoso, a que chega primeiro, no início da manhã do delito,

despir-se do mínimo de garantia de independência. Tais garantias, portanto,

aos Delegados de Polícia os diretores e detentores primaciais do

direito de investigar permitem que a investigação seja efetiva,

coerente, eficaz, sem arranho a direitos fundamentais, sem receio de

descontentamento a qualquer sorte de influência, seja externa, do

poder político e do poder econômico, seja interna, da própria

instituição da qual faz parte. [...] Trata-se, portanto, de uma garantia

de que desfruta não apenas o Delegado de Polícia como ser humano

mas, também, toda a sociedade, para a qual é interessante uma

investigação criminal sem nódoas, sem perseguições, sem

truculências, sem prevaricações. Uma investigação criminal

simplesmente independente.109

108 LIMA FILHO, Eujecio Coutrim. Princípio do Delegado Natural e o sistema de garantias

constitucionais. Disponível em https://canalcienciascriminais.com.br/principio-delegado-natural.

Acesso em 04.11.2017.

109 Processo nº 0001985-98.2014.8.26.0297, Vara do Juizado Especial Cível e Criminal do Foro de

Jales - SP.

Destarte, tem-se que uma interpretação ampliativa dos dispositivos

constitucionais, incluindo-se do próprio princípio do juiz natural, bem como

considerando o disposto na legislação infraconstitucional atualmente em vigor,

permite concluir pela solidificação do princípio do delegado natural, garantindo um

delegado independente e imparcial e resguardando, em mais essa esfera, os direitos

do cidadão.