2. ELEMENTOS DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E SUA EXTENSÃO NA
2.8 Consequências do descumprimento do princípio do juiz natural
Conforme já frisado, o princípio do juiz natural, em uma de suas expressões,
determina que os cidadãos deverão ser processados e sentenciados somente pela
autoridade competente.
Desse modo, questão muito debatida, especialmente no âmbito do processo
penal, é a de qual seria a consequência da violação do princípio do juiz natural, dada
as disposições que estabelecem as competências tanto na esfera constitucional
quanto na esfera infraconstitucional.
Nessa seara, a doutrina e a jurisprudência possuem posições bastante
conflitantes. No que se refere as competências estabelecidas pela Constituição
Federal há posições doutrinarias no sentido de que a sua violação ensejaria a
inexistência dos atos praticados, bem como posições no sentido de que tais atos
seriam apenas nulos.
No sentido de que a violação das competências postas pela Constituição
ensejaria a inexistência dos atos praticados, se posicionam Ada Pellegrini Grinover,
Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes e José Frederico
Marques.
Para os três primeiros professores, que, conforme já visto, entendem que o
princípio do juiz natural se refere apenas à autoridade constitucionalmente
competente, o cumprimento do princípio seria uma condição para o exercício da
jurisdição, um verdadeiro pressuposto de existência do processo. De modo que caso
desrespeitadas as competências postas na Constituição, o referido processo seria
inexistente.135
Para José Frederico Marques, cuja doutrina não limita o alcance do princípio
apenas as competências colocadas pela constituição, a violação de dispositivos
constitucionais sobre competência resulta na inexistência dos atos praticados devido
135 GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. FERNANDES, Antonio Scarance.
à ausência de jurisdição dos atos proferidos em dissonância com a Constituição
Federal (por exemplo, um Tribunal Militar julgar uma causa de competência da Justiça
Federal).136
No sentido de que referida violação à Constituição geraria apenas a nulidade
do processo, posicionam-se Maria Lúcia Karam e Gustavo Henrique Badaró.137 Para
os referidos professores, a incompetência, mesmo que constitucional, não configura
a inexistência do processo, pois o juiz, apesar de constitucionalmente incompetente,
ainda possui jurisdição, que é uma só. Logo, para os mencionados professores, o vício
da incompetência constitucional gera a nulidade de todo o processo e não a sua
inexistência.
Situação diversa seria a de processo desenvolvido por pessoa que não
pertence aos quadros do Poder Judiciário. Nesse caso, ausente a jurisdição,
inexistentes são os atos jurídicos proferidos:
Não obstante a autoridade dos que sustentam o entendimento de que
o processo instaurado perante órgão constitucionalmente
incompetente seria inexistente, parece desnecessário recorrer a esta
categoria da inexistência, para estabelecer os particulares e mais
extensos efeitos da incompetência decorrente da inobservância de
regras constitucionais. [...] Para sustentar a inexistência do processo,
em tal hipótese, afirma-se que o juiz natural seria verdadeiro
pressuposto de existência do processo, diante de cuja ausência não
se poderia falar em mera nulidade da relação processual. Tal
afirmação já não se compatibiliza com o fato de que, diante do
princípio da unidade da jurisdição, o órgão competente não se
confunde com o órgão dotado de jurisdição. Sendo uma só a função
jurisdicional, abstratamente atribuída a todos os órgãos do Poder
Judiciário, não se pode afirmar que o órgão jurisdicional que
inadequadamente atue no processo, por ser constitucionalmente
incompetente, não seja dotado de jurisdição. [...] A inexistência jurídica
do processo só se dá quando este se desenvolve perante pessoa que,
por não estar investida no cargo judiciário ou por já ter dele se
desligado, não é órgão dotado de jurisdição.138
136 MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. Campinas: Millennium, 2000, p
391-392.
137 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014, p. 552.
138 KARAM. Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002, p. 51-52.
Referido posicionamento, em que pesem os entendimentos contrários, parece
ser o mais acertado, pois coerente com a unidade de jurisdição e com os requisitos
de existência e validade do processo.
Já no que se refere as consequências das violações das normas
infraconstitucionais de competência tem-se que o artigo 567 do Código de Processo
Penal estabelece que a incompetência do juízo anula somente os atos decisórios,
devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz
competente.
Desse modo, diferentemente do que ocorre na hipótese de violação dos
dispositivos constitucionais de competência que enseja a nulidade de todo o processo,
a legislação infraconstitucional estabeleceu consequência especifica, restringindo a
nulidade aos atos decisórios proferidos pelo juiz incompetente.
Aqui, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio
Scarance Fernandes139, José Frederico Marques140 e Maria Lúcia Karam141 admitem
a aplicação do mencionado artigo.
Em sentido contrário, Gustavo Henrique Badaró sustenta que o artigo 567 do
Código de Processo Penal não tem aplicação nem mesmo para a legislação
infraconstitucional, devendo, também nesse caso, ser decretada a nulidade de todo o
processo.142
Respeitado o entendimento em sentido contrário, a posição dos que admitem
a aplicação do referido artigo parece ser a mais acertada, dada a clareza do dispositivo
legal.
139 GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. FERNANDES, Antonio Scarance.
As nulidades no processo penal. 12ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 47.
140 MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. Campinas: Millennium, 2000, p.
391.
141 KARAM. Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002, p. 50.
142 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014, p. 552.
O princípio do juiz natural, como já visto, afeta tanto as disposições
constitucionais quanto infraconstitucionais. Desse modo, a lei infraconstitucional deve
sempre estabelecer normas de concretização de competência em consonância com
os elementos postos pelo princípio, de modo a garantir a imparcialidade e
independência do juízo.
Por conseguinte, não podem os dispositivos infraconstitucionais estabelecer
normas que tornem a escolha do magistrado passível de demasiada subjetividade,
ou, normas que permitam, por exemplo, a escolha deliberada do juiz.
Isso não quer dizer, contudo, que os efeitos do princípio do juiz natural na
legislação infraconstitucional exijam necessariamente a nulidade de todo o processo,
de modo que o Código de Processo Penal ao determinar a nulidade dos atos
decisórios com a consequente remessa ao juiz competente parece preservar a
independência e imparcialidade do magistrado, com evidente ganho também para a
preservação da efetividade e da razoável duração do processo.
Deve-se, ainda, esclarecer a questão do efeito do descumprimento do
princípio do juiz natural relacionada a competência absoluta e relativa no processo
penal.
É cediço na jurisprudência e em parte da doutrina que a competência absoluta
é aquela que decorre de interesse majoritariamente público e a competência relativa
é aquela que decorre do interesse predominante das partes.
Conforme explica Guilherme Madeira Dezem:
A competência absoluta é aquela estabelecida conforme interesse
preponderantemente público, que pode ser conhecida mesmo de
ofício pelo magistrado e também que não é objeto de preclusão,
podendo até mesmo ser alegada em sede de revisão criminal depois
de transitado em julgado o processo. Como a competência absoluta é
retratada de forma a preponderar o interesse público, então ela não
pode ser modificada, sendo improrrogável.
Já a competência relativa é estabelecida no interesse
preponderantemente particular, podendo ser prorrogada. Por poder
ser prorrogada haverá preclusão para a parte caso não seja alegada
no momento oportuno, de forma que não poderá ser alegada em sede
de revisão criminal.143
Acontece que especificamente no processo penal, essa diferença entre
competência absoluta e relativa é bastante mitigada, ao se considerar que mesmo a
competência em razão do local do delito é aferida por interesse predominantemente
público, veja-se, nesse sentido, o posicionamento de Ada Pellegrini Grinover, Antonio
Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes:
Todavia, no processo penal, em que o foro comum é o da consumação
do delito (art. 70 do CPP), acima do interesse da defesa é considerado
o interesse público expresso no princípio da verdade real: onde se
deram os fatos é mais provável que se consigam provas idôneas que
os reconstituam mais fielmente no espírito do juiz. Por isso, mitiga-se,
no processo penal, a diferença entre competência absoluta e relativa
[...].144
Além da maior facilidade de obtenção das provas, é evidente que a
repercussão social do crime no local em que foi consumado tende a ser maior, de
modo que é neste local que a sociedade espera uma resposta efetiva do Estado para
restaurar a ordem social.
Ademais, o próprio Código de Processo Penal não faz qualquer distinção
entre as competências absolutas ou relativas, limitando-se o seu artigo 109 a
determinar que se em qualquer fase do processo o juiz reconhecer motivo que o torne
incompetente, declará-lo-á nos autos, haja ou não alegação da parte devendo o
processo ser remetido ao juízo competente.
Portanto, tem-se que toda essa distinção entre a competência absoluta e
relativa e seus efeitos em relação ao descumprimento das normas de competência
afeta muito mais ao processo civil, perdendo importância no âmbito do processo
penal.145
143 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2018, p. 348-349.
144 GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. FERNANDES, Antonio Scarance.
As nulidades no processo penal. 12ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 41.
145 A jurisprudência dos tribunais superiores, contudo, tem se valido das mesmas regras de
competência relativa do processo civil para o processo penal – posição com a qual se discorda, gerando
preclusão caso não alegada no momento oportuno e não podendo ser determinada de ofício pelo juízo.
Veja-se o seguinte julgado: “[...] 5. Eventual irregularidade quanto à competência territorial do Juiz de
Finalmente, a jurisprudência não costuma se aprofundar tanto no tema ora
discutido, aplicando o disposto no artigo 567 do Código de Processo Penal para
qualquer espécie de incompetência, não fazendo distinção entre as constitucionais e
infraconstitucionais, bem como dando a mesma solução (aplicação do art. 567 do
CPP) tanto para os casos de competência absoluta, quanto para os casos de
competência relativa.146
Expostas as consequências do descumprimento do princípio do juiz natural,
máxime no que tange as regras de competência no processo penal, bem como, ao
longo deste capítulo, todos os elementos e extensões do princípio na Constituição
Federal, verificar-se-á, a seguir, a consistência de sua aplicação na chamada
Operação Lava Jato.
Direito, que expediu o mandado de busca e apreensão e decretou a prisão cautelar em desfavor do
paciente, se convalidou em virtude da ausência de impugnação no momento oportuno. Como é cediço,
a competência territorial é relativa e não absoluta, como pretende o impetrante, motivo pelo qual deve
ser impugnada pelo meio adequado e no momento apropriado, o que não ocorreu na hipótese dos
autos. [...]” (STJ, Quinta Turma, HC 368.217/MA, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em
02.05.2017).
146 PENAL. PROCESSUAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. FALSIDADE
IDEOLÓGICA. OCULTAÇÃO DA PROPRIEDADE DE EMPRESA ENVOLVIDA EM PROCEDIMENTO
FISCAL. DECLÍNIO DE COMPETÊNCIA. APROVEITAMENTO DOS ATOS INSTRUTÓRIOS.
RATIFICAÇÃO PELO JUÍZO COMPETENTE. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. PRECEDENTES. INÉPCIA
DA DENÚNCIA. INOCORRÊNCIA. [...] 2. Nos termos da jurisprudência desta Corte, a modificação da
competência não invalida automaticamente a prova regularmente produzida. Destarte, constatada a
incompetência absoluta, os autos devem ser remetidos ao juízo competente, que pode ratificar ou não
os atos já praticados. 3. Ausente nulidade no caso, porquanto verifica-se que o juízo ratificou os atos
não meritórios até então praticados, tendo apenas intimado as partes para a apresentação de novas
alegações finais ou de novos requerimentos, estando os autos conclusos para julgamento. [...] 6.
Habeas corpus não conhecido. (STJ, Sexta Turma, HC 308.589/RJ, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado
em 06.08.2016); PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO.
NÃO CABIMENTO. FRAUDES EM LICITAÇÕES PÚBLICAS. CONDENAÇÕES CONFIRMADAS
PELO TRIBUNAL REGIONAL. PLEITO DE NULIDADE. NÃO DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO.
APROVEITAMENTO DE ATOS PRATICADOS EM JUÍZO INCOMPETENTE. POSSIBILIDADE.
INTELIGÊNCIA DO ART. 567 DO CPP. WRIT NÃO CONHECIDO. [... ] 2. O reconhecimento de
nulidades no curso do processo penal reclama uma efetiva demonstração do prejuízo à parte, sem a
qual prevalecerá o princípio da instrumentalidade das formas positivado pelo art. 563 do CPP (pas de
nullité sans grief). Precedentes. 3. "A remessa dos autos para a Justiça Federal não implica a
declaração de nulidade de todos os atos judiciais praticados, conforme pretende o impetrante, mas
tão-somente dos atos decisórios proferidos pelo juízo incompetente, nos termos do art. 567 do CPP" (HC
39.713/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, DJ 22/08/2005). [...] 7. Habeas
corpus não conhecido. (STJ, Quinta Turma, HC 320.638/PE, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em
24.10.2017).
3. O CASO DA OPERAÇÃO LAVA JATO E A CONSISTÊNCIA DA APLICAÇÃO DO
No documento
CIDADANIA E PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL Paradigma da Operação Lava Jato
(páginas 82-88)