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2 «Adágios de carregação»

No documento Castigar a rir. Vol. I (páginas 104-108)

CAPÍTULO III. «GATO ESCALDADO, ETC.»: LUGARES-COMUNS, PROVÉRBIOS E

III. 2 «Adágios de carregação»

Outra espécie de lugares-comuns são os modismos ou «adágios de carregação»,

como lhes chama José Daniel – frases que «pegam» e ficam na moda, invadindo o

discurso até que caem em desuso, desaparecendo por vezes tão rapidamente como

chegaram. O Almocreve enumera algumas:

De cada vez se vai augmentando, e enriquecendo mais a nossa lingoa Portugueza, com adagios de carregação, huns que vem nos comboios nas bocas da equipagem dos Navios, outros compostos pelos brejeiros cá Nacionaes, que tanta honra dão á Praia de Santos, e ás tabernas de Lisboa:

177 «He o tempo voraz destruidor da natureza […] na idade da decadencia, esfria o sangue, nubla-se o

cérebro, e as potencias da alma desvigorizão-se, e destas primicias se tira, que burro velho não aprende língua» (Ibidem, CX, pp. 4-5. Negritos meus).

178 «A cada momento observamos immensas provas; todos os animaes conservão idéas como já disse, e

tem reminiscência, ou maior, ou menor conforme a disposição, ou organisação do animal mais, ou menos perfeito, buscando cada hum o bem, e temendo, ou fugindo ao mal; por cujo motivo se prova, que o gato escaldado da agoa fria tem medo» (Ibidem, CXII, p. 4. Negritos meus).

179 «[…] o homem intelligente combina, e deduz das primícias o concluso das cousas, segue-se, que para

o bom entendedor meia palavra basta» (Ibidem, CXV, p. 5. Negritos meus).

180 «Quando a natureza excede, ou transcende os limites taxados, ou marcados pela mesma natureza, as

suas producções são mais fracas, ainda que sobresaião em tamanho: as pessoas de figura agigantada quasi sempre são pusilânimes […] assim o espirito proprio para animar huma pessoa mediana em estatura; enserrado em corpo pequeno, fica muito opprimido, e quer por todas as partes rebentar: este he o motivo porque gente pequena tem sempre o coração ao pé da boca: ora como estes argumentos servem para ambos os sexos, e igualmente para os animaes, os quaes tambem são dotados de huma alma irracional, mas que opera com analogia á nossa, se prova claramente que não errão os sábios quando dizem que da mulher, e da sardinha, nem da maior, nem da mais pequenina» (Ibidem, CXIV, pp. 5-6. Negritos meus).

181 «[…] donde se segue, que todo o homem para continuar a viver, necessita comer, o qual nisto vai

buscar hum encosto para a natureza, e por esta mesma razão não he destituido de fundamento o dizer- mos: vá-se encostar ao que comeo hoje» (Ibidem, CXIII, p. 6. Negritos meus).

182 «Canastras. Foi este jogo inventado pelos aprendizes dos canastreiros de Casellas, no 4º anno das

testemunhas falsas, em que seus mestres por causa deste jogo lhes tem feito ver por muitas vezes o fundo da canastra; e deste mesmo jogo se tirou o termo politico de cada hum dizer no meio da sua ira, olha que te vou ao canastro» (Comboy, 15, p. 10. Negritos meus).

84 que sequito não teve, Está bom José põe lá? quanto se não louvou: ó carinhas vamos ás Barraquinhas? Que immensas vezes se não repetio por mofa aos Valentes: tenha dó que faz a creança em pó? Porque bocas não andou: pois sim mata-te bem que a macaca logo vem? Onde fica a memoria: de Izabel Beata com o seu treliquetim, treliquetim, treliquitó, onde fica: Poe a meza Louriçá com o seu Zigue Zágue? (Almocreve, CVIII, p. 1).

Uma frase suscita particular interesse ao editor: «Ó paisinho compra o melro?»

Seria, na altura, recente – «um novo ditado» – e de uso generalizado: «domina em todas

as ruas». José Daniel dedica-lhe uma explicação minuciosa

183

.

Outros aforismos curiosos, alguns usados ainda hoje com o mesmo significado,

surgem no Almocreve de Petas, como «morra Marta, morra farta»

184

, «ir buscar lã e vir

tosquiado»

185

, «quem espera por sapatos de defunto morre descalço» (truncada)

186

,

«achar uma agulha num palheiro»

187

.

No Comboy de Mentiras, assinale-se a referência à expressão «esperem-lhe a

pancada», hoje mais usada na variante «esperem-lhe pela pancada», numa lista das

«várias qualidades a que são propensos os homens», como atributo dos

«dissimulados»

188

.

183«Ora se estes, e outros ditérios tem merecido a maior approvação nesta incansavel qualidade de gente,

porque não descobriremos a origem de hum novo ditado que hoje domina em todas as ruas: Ó Paisinho compra o Melrro? Soavão as trombetas, as rabecas, os tambores, as trompas, as castanholas, e as marimbas [...] a gritaria […] que acompanhava o instrumental tudo deixava perceber, que era festa de Pretos: hum Mestre Çapateiro curioso de todos os quatro costados, que se não dava hum espirro na rua, que elle não soubesse logo quem o tinha dado […] destrancou a porta, para ver o que aquillo era, mas como sentisse que a folia hia para diante, foi acompanhar o farrancho, e com o escuro da noite introduzio-se na manada […] depois de uma grande balharota, e tocadella, se determinou o brequefesta [corruptela de breakfast] da côdea [o sapateiro comeu e bebeu até que…] deu hum espirro, aqui encordoarão todos, reparárão no intruzo, e disserão; que quer cá este Merro. O Mestresinho enfeitou-se logo, e respondeo: Este Melrro vende-se, se algum tem barbas de o comprar ha de lhe custar caro, huns algarves que estavão pelo mar, dentro de hum bote entrárão a gritar, ó Paisinho compra o Melrro: enfureceo-se o Çapateiro, prega hum bofetão em hum dos pretos, atirão- lhe estes com as garrafas, chama-se pela ronda, fojem os festeiros, e foi o pobre Mestre com cara de bezerro para o Limoeiro; e daqui vem que quando se diz a hum preto ó Paisinho compra o Melrro? elle muito soberbo responde: tem gaiora? Que he o mesmo que dizer quer cadeia a horas de ceia» (Almocreve, CVIII, p. 1-2).

184 «[…] não me querião dar de comer, mas erguime, e fui ao almario, e dixe, morra Martha, morra farta,

e dei na pá do bucho com meio arratli de assucari mesmo crú, que pilhei; mas inda aqui estou» (Ibidem, XVI, p. 4).

185 “…..o miserável, que não levava real, não teve mais remedio, que deixar as fivellas de prata dos

çapatos, succedendo-lhe o mesmo, que succedeo ao Amado, que foi buscar lã, e veio tosqueado.” (Ibidem, XVI, p. 3)

186 «[…] o pobre homem consta que foi para casa descalço esperar pelo pobre, a quem fez a esmola, como

quem espera por çapatos de defuntos» (Ibidem, XXVIII, p. 1-2). Cfr. o filme Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, de João César Monteiro (1971).

187 «Victorina Thereza de Biscaia perdeo os dias passados huma agulha de cozer […] indo buscar hum

cesto de palha a hum palheiro para botar huma gallinha; e porque a dita agulha lhe faz grande falta para as suas costuras […], promette boas alviçaras a quem lha entregar, porque sabe que nesta Cidade ha gente capaz de achar huma agulha em hum palheiro» (Almocreve, LIII, p. 8).

188 «Certos observadores, que ha neste Reino Petista, tomárão por sua curiosidade a empreza de

85

Quatro anos depois, no Hospital do Mundo, o autor usa, invertendo a ordem

habitual da frase, um provérbio ainda hoje em voga: «o segredo é a alma do negócio», a

que acrescenta: «a graça da panela é o sal, a alegria do mundo é o sol e a máquina

eléctrica dos Autores é o gasto das suas obras»

189

.

No mesmo periódico surge ainda o adágio «dá Deus nozes a quem não tem

dentes», num contexto inesperado que lhe confere comicidade, com uma nota de humor

negro na «receita» final

190

.

Ao criticar um dos seus alvos favoritos – os velhos que se desviam da norma

social vigente, assumindo comportamentos que se esperava fossem exclusivos dos

jovens –, o conformista José Daniel, obediente à máxima «Nunca contrafaça a natureza»

(Hospital, VII, p. 17), cita um provérbio hoje pouco usado, mas corrente pelo menos

desde o século XVI: «enfeitai o cepo, parecer-vos-á mancebo»

191

.

seguinte; e aqui se remette para cada hum de per si ver se está nella incluído […] O dissimulado – Esperem-lhe a pancada» (Comboy, 14, p. 8).

189 «Cada vez estimo mais empregar-me nestes Folhetos, porque me recreio, e applico; e como todos

temos obrigação de não sermos ociosos, antes quero que se diga de mim: muito tem trabalhado este homem! do que se pergunte, em que occupa este homem o seu tempo? Nestes termos ajudem-me Vv. mm., e verão como me animo á empreza; a alma do negocio he o segredo, a graça da panella he o sal, a alegria do mundo he o Sol, e a Máquina Electrica dos Authores he o gasto das suas Obras» (Hospital do Mundo, VI, p. 21-23. Negritos meus).

190 «ENFERMEIRO.

Aqui está, Senhor Doutor, este homem, que assim como ha muitos, que se sangrão em saude, assim quer elle arrancar todos os dentes da boca, não lhe doendo, nem tendo hum só, que seja podre; e vem aqui para saber se desta operação lhe póde resultar algum prejuízo; porque a perigar a sua vida, então não se quer expôr; mas desenganado de que se lhe não seguirá damno algum, está resolvido a começar a operação. Quando tal lhe ouvi, fiquei mais tôlo do que elle; e querendo indagar a origem de similhante mania, respondeo-me: que elle possuía huma fazenda muito abundante de nogueiras, as quaes, logo que comprou a dita fazenda, lhe davão lucro sufficiente para a sua subsistencia; porém que ha dois annos a esta parte, lhe não dão as nogueiras nem huma só noz: o que lhe tem feito huma differença grande nos seus interesses. E como sempre ouvira dizer a muita gente: dá Deos nozes a quem não tem dentes, he a razão porque quer arrancar os seus, para ver se as nogueiras assim lhe produzem, lembrando-se que do mal o menos, que antes não ter dentes, do que morrer de fome. MEDICO.

Com effeito custa a crer o que se passa neste Hospital, e a variedade de juizos, que se encontrão por esse mundo! Huns querem arrancar os dentes para terem nozes, outros darião quantas nozes há por terem dentes. Pela informação, vejo que esse homem acha certa antipathia entre as nozes, e os dentes: e com effeito não se engana, que se tem quebrado muitos dentes, por quererem partir nozes. Se elle semeando os seus dentes, lhe nascessem nozes, era justo que arrancasse a dentuça; porém como isto não he da ordem da natureza, e esse homem no seu modo de pensar he hum tôlo de cabeça esquentada. Recipe. Huns banhos do mar, e estar sempre acompanhado de alguem, que o vigie; porque não succeda pôr os dentes com outro dono; e de repente, sem que elle o saiba, cortem-lhe as nogueiras da fazenda, para lhe fazer perder por este modo o prejuizo, em que está do ditado que ouvio. E se ainda assim persistir na mesma teima, enfermaria dos doudos com elle, que em lugar de nozes, cá se lhe darão as amêndoas» (Ibidem, VII, p. 9-10. Negritos meus).

191 «Quer V. m. huma lista das modas, talvez lembrando-se do adagio enfeitai o cêpo, parecer-vos-ha

mancebo. Que importa que as casas tenhão novo o frontespicio, se o madeiramento interior se desfaz em caruncho! Órgão velho, faltando-lhe algumas teclas, tudo quanto sôa he desafinado; e por mais que o pintem por fóra, nem por isso muda de tom. Huma lista de modas, usadas por hum homem de sessenta e nove annos, fazem nelle tanto effeito, como huma vela acceza posta á luz do meio dia»

86

III.3. Bordões «enjoativos»

Diferentes dos aforismos e dos provérbios são os bordões de linguagem, usados

sobretudo na oralidade para tornar o discurso mais fluente. A atenção crítica que lhes

dedica José Daniel, enumerando-os em jeito de aviso aos leitores, sempre com uma nota

de ironia, é sinal da importância atribuída à oralidade: os folhetos destinavam-se, em

larga medida, a ser lidos em voz alta, perante uma audiência

192

. Numa sociedade

composta por uma maioria esmagadora de analfabetos, o seu êxito residia na atracção

que exerciam não apenas junto dos leitores, mas, sobretudo, dos ouvintes.

Avisos. Pimentel Torrado da Costa avisa ao público, que vista a grande falsificação de bordões, que hoje se vendem para os instrumentos, elle tem huma grande partida delles, que são verdadeiros, e bons, pois apenas falla, diz mais de cem vezes: = foi elle = com effeito = vai se não quando = não tem dúvida: além de outros que tem ajuntado de varias pessoas, como por exemplo = vamos ao que importa: = ora pois: = quero dizer: = tal sim senhor, e cousa que o valha: = todavia: = deixe-me assim dizer: = por exemplo: = faça v. m. de conta, etc. toda a pessoa que delles precizar fique sem elles, se os não quizer (Almocreve, CXIV, p. 8)193.

Também o Comboy de Mentiras trazia «avisos». Um deles anunciava: «Sahio á

luz Arte de fallar Portuguez por espaço de duas horas sem se entender palavra,

segundo o affectado modernismo: o mais fica para a vista» (Comboy, 21, p. 16). E logo

no folheto seguinte voltava ao tema dos bordões, sublinhando ser o seu uso

«enjoativo»

194

.

(Ibidem, IX, p. 20). Ver SANTOS, Maria do Rosário Calisto Laureano – «A Comédia Ulissipo de Jorge Ferreira de Vasconcelos. Estudo e edição crítica». [Em linha]. Tese de Doutoramento em Estudos Portugueses – Literatura Portuguesa do Séc. XV e XVI. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2006, p. 123. [Consult. 02.11. 2017]. Disponível em

https://run.unl.pt/handle/10362/15004 .

192 CHARTIER, Roger – «Introdução. A cultura do objecto impresso». In CHARTIER, Roger (coord.) –

As Utilizações do Objecto Impresso. Lisboa: Difel, 1998, p. 18-19.

193 Outras listas de bordões: «Faz-se saber pela repartição dos que andão á pesca do candeio, a respeito

dos que dizem a sua asneira nas sociedades ao pé da letra, para logo lhe direm á mão, que se não deve dizer = v. m. para fazer isso ainda ha de comer hum moio de sal = porque os taes amigos levados da curiosidade, protestão ceder todo o domínio directo, que tem em algumas marinhas sitas na banda d’além, se acaso algum dos Senhores, ou Senhoras, em quanto viverem, comerem hum moio deste género» (Almocreve, CXXV, p. 8). «Sahio á luz hum livro intitulado compendio de apegadilhos, em que se mostrão os que há em muitas conversas, como por exemplo, = neste cumenos = á certa confita = vai senão quando = havéra de fazer = tim tim por tim tim = nanja que eu tal diga = o meu creto perdido = eu truve para aqui = ouvisto dizer = má ochas = heide ir em cata delle = ora faça v. m. de conta = bonda isto = salva tal lugar = e outros muitos desta natureza, recheando estas conversas com mais de trezentos, e dahi, e dahi, e dahi; quem se quizer estruir nesta linguagem, compre o livro, e eu delle, que o mais he botar o seu dinheiro na rua» (Ibidem, CXXI, p. 7-8).

194 «Aqui appareceo hum homem galantissimo na sua conversação, pelo bordão que tem, em tudo quanto

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